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Desculpas

Há alguns dias o jornalista Juca Kfouri fez um comentário que soou desrespeitoso ao Santos FC. Ao criticar o futebol apresentado pelo clube praieiro no jogo contra o Fluminense o jornalista se referiu ao ataque santista como “Ninguém FC”, o que deixou os torcedores e dirigentes furiosos. Juca, como se sabe, é um renomado cronista de futebol e um torcedor confesso do Corinthians.

O que me chama a atenção nesse episódio é que, passada a réplica de dirigentes e torcedores indignados, esperava-se que o jornalista viesse ao microfone – ou publicasse em sua coluna – trazendo palavras como “Peço desculpas à nação santista pelas minhas palavras que soaram ofensivas. Deixo claro meu respeito e blá, blá, blá…”. É isso que todo mundo faz; é assim que se exige de pessoas públicas, que façam uma mea-culpa pública pela interpretação negativa que fizeram de suas palavras.

Pois Juca, passados alguns dias, escreveu a resposta que se segue, editada para conter apenas o essencial.

“Estamos com uma audiência extraordinária à espera de um pedido de desculpas que não virá porque eu são sou imbecil a ponto de desfazer da história do Santos, (….), jogou como “ninguém”. Como “ninguém”, foi exatamente isso que eu disse. Quem não entendeu, não quer entender, leva ao pé da letra, vá para a escola, estude e entenda o que é uma ironia. E não espere que eu peça desculpas pelo que eu, rigorosamente, não fiz.”

Em outras palavras: ele se negou a pedir desculpas para pessoas que quiseram interpretar suas palavras de forma viciosa. Ele não se achou no dever de pedir perdão pelo uso que os outros fizeram de uma figura de linguagem usada em uma partida de futebol. “Quem não entendeu, não QUER entender”, disse ele (grifo meu). Essa negativa em entender o que o outro quis dizer é a chave da questão, e por isso mesmo as desculpas não fazem sentido.

Essa situação envolvendo Juca Kfouri acontece todos os dias nas redes sociais ao colocarmos pessoas contra a parede exigindo que se desculpem por suas manifestações, tendo como régua as interpretações que outros fizeram de suas palavras. Por isso vejo a resposta correta e digna do Juca como um sinalizador: chega da opressão da geração “woke”. Chega de pedir desculpas para quem se sentiu ofendido – porque assim o desejou. Chega de pedir desculpas por expressões corriqueiras que são desvirtuadas em sua origem, na sua história e na sua intenção apenas para fomentar vitimismo. Chega de ter medo de falar o que se pensa com medo das patrulhas.

Os debates contemporâneos foram nivelados para o nível mais infantil da história. Tratamos uns aos outros como crianças da pré-escola, onde todos se ofendem, tudo machuca sentimentos e as palavras ferem de acordo como as ouvimos – e não pela intenção de quem as proferiu. Chega de pedir perdão de forma humilhante pela opinião e pelas expressões usadas, como se pudesse haver progresso humano sem atritos e palavras fortes de crítica.

Parabéns ao Juca – um dos poucos jornalistas que vi denunciando a promiscuidade obscena entre jornalismo e publicidade – pela coragem de não voltar atrás em suas palavras e por não tratar seu leitores e ouvintes como crianças frágeis, facilmente ofendidas e mimadas. Sua atitude, ao se negar a pedir desculpas pelo que não fez, é sinal de liberdade e autonomia jornalística.

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A los que Luchan

O sistema de patrulha que existe hoje em dia, mormente nas redes sociais, impede (ou dificulta) que as pessoas se posicionem de forma contra hegemônica em alguns temas sensíveis. Isso produz uma espécie de duplicidade retórica, onde o sujeito guarda suas crenças pessoais, porém sua opinião expressa é uma “mentira pública”. Nesse modelo o sujeito diz para você em uma conversa privada: “Sim, eu concordo com você, mas é óbvio que eu não podia falar isso publicamente, pois você conhece aquele pessoal: eles fariam pedacinhos de mim”.

Mais curioso ainda é quando algumas pessoas ficam tão conectadas com essa sua face pública que passam a tratá-la como verdade, mesmo que no íntimo saibam que se trata de algo contrário às suas crenças mais íntimas e mais profundas. Chegam a defender ardentemente algo que discordam e até mesmo desprezam, como os sofistas, tendo como pagamento a aprovação das pessoas que encontram em suas palavras aconchego e esperança. Mentem descaradamente por terem se viciado na aprovação da qual, por fim, se tornam dependentes. As vezes, ao testemunhar as manifestações emocionadas e veementes de alguns sujeitos, fico pensando: “Será mesmo que essa pessoa acredita no que afirma? Ou estará ela apenas aceitando a submissão a um ordenamento social que, caso rompesse, sabe de antemão que não suportaria?”

Muito dessa relação dissimulada com seus próprios valores eu vi na política, nos partidos e nas amizades, mas também no trabalho com o parto humanizado. Testemunhei dezenas de colegas que se aproximaram de mim em inúmeras ocasiões dizendo: “Acho que o que você está fazendo é correto. Não há como aceitar a barbárie imposta à mulheres no momento do parto e nascimento. Eu concordo com sua perspectiva, mas você há de entender a minha situação”. A partir daí falavam das pressões dos colegas, das dificuldades locais, das chefias médicas, do diretor do hospital, da família e da fé pública que tanto prezavam, e que é, em verdade, o maior patrimônio de qualquer profissional. “Eu realmente gostaria de trabalhar guiado por tais perspectivas, mas veja…. não há como”. E como se poderia culpar alguém que percebe o tamanho do gigante que lhe faz sombra? Nem todos tem vocação para Davi, e muito menos para Kamikaze. É compreensível que as pessoas queiram exercer seu ofício sem ameaças, sem violências, sem perseguições e sem ter uma espada apontada diuturnamente contra seu peito.

Em tempos de linchamento virtual, em especial pelos guardiões do politicamente correto, é compreensível que alguns se calem e contem suas verdades apenas entre devaneios – ou no obscuro cenário das alcovas. Entretanto, como diria Bertold Brecht, há que reverenciar aqueles que diante das balas no Pelotão de Fuzilamento das redes sociais abrem a camisa e gritam: “Que venham as balas, pois minha integridade e consciência são superiores à própria vida”.

À “los que luchan”, minha reverência…

Hay hombres que luchan un dia y son buenos;
Hay otros que luchan un año y son mejores;
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos;
Pero hay los que luchan toda la vida,
Esos son los imprescindibles.
(Bertold Brecht)

Abaixo, Mercedes Sosa declamando esta estrofe de Brech na música Sueño con Serpientes de Silvio Rodriguez

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Magnólia Chernobyl

(Uma história baseada em fatos reais)

  • Oi linda, preciso te perguntar uma coisa…
  • Oi, meu amor, manda.
  • Conhece Magnólia Chernobyl?
  • A blogueira? Sim, curto muito os textos dela.
  • Miga, vai descurtindo…
  • Por quê??
  • Vou te mandar o último texto dela pelo whats…
    …….
  • Leu?
  • Li sim, achei bom
  • Bom???? Você concorda com o que ela escreveu???
  • De certa forma sim. Não usaria aqueles termos, e talvez ela tenha sido dura em demasia, mas em essência eu acho que ela está correta. Tem que atacar esses caras mesmo; são pessoas que mais atrapalham nossa luta do que auxiliam. No merci!!!
  • Não acredito que estou lendo isso de você. Não importa o que ela “quis” dizer, mas o quanto isso pode nos atingir. Não percebe??
  • Mas autocrítica é essencial!!! Alguém precisava dizer. Podemos estar indo para um caminho muito errado!!! Ela colocou o sino no pescoço do gato!!
  • Não interessa!! Deixe as críticas para os inimigos!! Precisamos nos proteger!! Ela não tem o direito de falar essas coisas em público. Quem ela pensa que é?
  • Mas é apenas sua perspectiva, sua maneira de ver essa questão. Além do mais, ela está nessa luta há mais tempo que qualquer uma de nós. Como pode pensar em “cancelar” alguém pela sua opinião discordante? Que tipo de tirania é essa? Que movimento monolítico é esse que vocês pensam criar?
  • Então agora os culpados somos nós?
  • Ninguém é culpado!!! São opiniões, perspectivas, pontos de vista!! Se você analisar bem os objetivos de Magnólia são iguais aos seus ou os meus. Ela apenas escolheu uma forma diferente – provavelmente minoritária e contra-hegemônica – mas igualmente honesta e válida de enxergar a nossa questão. Se ela estiver errada, o tempo dirá. Mas silenciar divergências é pura arrogância e preconceito!!
  • Jamais vou aceitar de volta essa traidora ou suas palavras…
  • Traidora??? Do que você está falando?? Que análise moral é essa? Discordar é traição? Ter uma visão diferente a coloca como uma mentirosa, falsa ou oportunista?
  • Eu acho mesmo que foi bom termos esta conversa. Agora sei bem quem você é. Antes disso eu a considerava uma pessoa com limitações, mas agora vejo que entre você e Magnólia não há praticamente nenhuma diferença. Vocês são da mesma laia, vieram da mesma lama. Traidoras, desonestas.
  • Bem, se é assim que pensa de mim pode me colocar na sua lista negra. Quem sabe sou mesmo isso tudo que você descreveu. Apenas me surpreende sua ingenuidade de não ter percebido estas minhas falhas morais em tantos anos de convivência.
  • Eu estava cega. – (Block)
  • Boa sorte – (sua mensagem não pôde ser enviada)

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Superando cancelamentos

Não é de se espantar que Noam Chomsky, J. K. Rowling e Margareth Atwood também se preocuparam com o tema sobre o qual escrevi diversas vezes. Intelectuais como eles estão participando de um movimento que visa estabelecer um freio à política de “cancelamentos” que ocorre entre os progressistas. Junto com Salman Rushdie, Gloria Steinem, Martin Amis e outros escreveram uma carta aberta denunciando a intolerância entre os ativistas de esquerda nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Para mim, os cancelamentos são atos de covardia. Servem para calar vozes e silenciar discordâncias. Seguem-se a percepções moralistas da realidade, julgamentos superficiais e ações oportunistas. Muitas vezes o sujeito é cancelado por um detalhe menor em seu percurso – uma piada que pode ser interpretada como racista ou homofóbica, um gracejo quando tinha 15 anos de idade ou uma acusação vazia de violência de um ex-parceiro(a) – para, assim, atacar a obra inteira, e evitar ter que enfrentá-la com argumentos e evidências.

A “cultura do cancelamento” é uma das marcas da pós-modernidade e das mídias sociais. Personalidades e reputações são transformadas em pó por grupos de guerrilheiros fanáticos que usam da manipulação de emoções compartilhadas para seu intento destrutivo, movidos por vingança e ressentimento. Como eu já disse, não me convidem para cancelar pessoas cujos crimes eu mesmo já cometi. Chega de hipocrisia.

Chega de tribunais midiáticos cheios de juízes raivosos de bunda suja.

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