Sempre me perguntei se haveria alguma razão para que eu fosse um sujeito romântico. Aqui vou conceituar “romântico” como alguém que acredita no amor entre duas pessoas, que pensa que uma relação assim pode gerar filhos e que constituir uma família pode ser um dos objetivos mais nobres da vida. Não se trata do romantismo de gestos externos como flores, bombons, declarações grandiloquentes ou, modernamente, carro de som na porta da casa – substituindo as serenatas. Não… apenas a crença no amor entre duas pessoas.
E vejam, coloco a crença no amor romântico apenas como mais um fetiche humano, tão válido quanto qualquer outro – cintas-liga, poliamor ou roupas de couro incluídas. É uma conexão afetiva de ordem irracional, portanto infensa às análises racionalistas e objetivas. Não acho que alguém se torna “superior” por se dedicar a essa fantasia, mas reconheço que os românticos assim definidos se tornam sujeitos mais fáceis para manter relacionamentos duradouros.
Escrevo isso porque arrumando livros antigos dos meus pais encontrei uma singela pista para o meu acanhado romantismo: uma carta que minha mãe escreveu ao meu pai uma semana antes de ganhar seu primeiro filho, meu irmão mais velho. A carta é um primor de romantismo, como não se encontra mais na literatura, mas também explica porque as mulheres nos anos 50-60 tinham muito mais facilidade para parir. O estado se espírito da minha mãe poucos antes do “grande dia” era de pura excitação com o que estava para ocorrer. Não havia uma linha sequer de angústia, preocupação ou temor, apenas uma viva ansiedade para ter seu filho nos braços…. e uma alegria imensa em poder cumprir aquilo que o “destino” havia legado a ela. Outros tempos, por certo…
Achei invasivo mostrar a carta inteira escrita por ela, mesmo que ambos já tenham partido, mas creio que a última frase é um primor de amor romântico e retrata bem as mulheres de sua época, que apostavam sua felicidade no amor profundo por seu companheiro e por seus filhos, dedicando-se uma vida inteira para que eles fossem felizes.
Lendo a derradeira frase daquela simpática missiva parece que estou assistindo uma novela escrita pela cubana radicada no Brasil Glória Magadan…
“My romance doesn’t need a castle rising in Spain Nor a dance to a constantly surprising refrain Wide awake I can make my most fantastic dreams come true My romance doesn’t need a thing… but you” Carly Simon – My Romance
Em 1996 minha mãe visitou Paris pela última vez. Meu pai não parecia tão entusiasmado com esta viagem, mas ela sabia que seria sua última oportunidade de visitar a cidade dos seus devaneios de menina. Alguns anos depois meu pai perceberia os primeiros sinais da doença degenerativa que, por fim, a levaria. Tão logo voltaram para casa e meu pai me disse que esta havia sido a derradeira viagem, mas só muito tempo depois entendi a razão.
Desta vez meu pai resolveu alugar um pequeno apartamento onde ficaram por 3 meses. Neste período minha mãe escrevia cartas e as mandava para os filhos, netos e amigos. Era uma época anterior à internet quando a única forma de saber como estavam era aguardar as mensagens trazidas pelo carteiro.
Agora com tempo e energia, minha mãe percorreu a cidade inteira a pé. Desenhou em um mapa os trechos percorridos com meu pai e quando retornou ao Brasil me mostrou os rabiscos orgulhosa. Talvez em uma outra vida eu possa estar ao seu lado na “sua” cidade e poderei sentir a real emoção transmitida por ela.
Aqui está um dos cartões postais que ela enviou para sua amiga Marli, com quem estabeleceu uma relação de mãe para filha por muitos anos. Pode-se ver, brotando da caligrafia linda e com letras desenhadas, a emoção de estar na Paris dos seus sonhos. E quando dizia “minha cidade” ela estava realmente falando sério…
Sei que essa lembrança chegará a ela no mundo espiritual, mas não agora. Por certo que a esta hora estará olhando as vitrines da Avenue des Champs-Élysées.
A bientôt, maman…
Aqui e aqui estão dois outros posts que escrevi sobre a ligação de minha mãe com a França.
Uma mensagem enviada para mim sobre um caso de violência obstétrica, dessas que normalmente passam desapercebidas por nós, mas que deixam marcas profundas na nossa existência. O relato abaixo ocorreu na cidade de Botucatu – SP
Ric,
Eu demorei a entender a dimensão da violência que sofri no meu parto.Foi tão difícil convencer o marido de que a presença dele no nascimento do Pedro era importante…. ele se convenceu, se empolgou…
A começar eu fiquei de pé no corredor frio do hospital, onde o único lugar que eu tinha pra me apoiar era o meu marido e o o bebedouro (que foi onde fiquei). Enquanto isso ouvia as enfermeiras me chamarem de fresca, que aquilo ali estava só começando, que eu só ia parir no dia seguinte e olhe lá (!!!). Bem, só pra calar a boca delas, eu pari em 2 horas. Em segundo lugar fui examinada por um residente que me mandou subir na escadinha e deitar na maca, com todas as dores das contrações (não, ele não podia abrir mão daquilo, eram ordens da professora). Depois ela quis demonstrar como se estourava a bolsa e chamou “todo mundo” pra ver (os residentes, eram bem uns 10 – segundo meu marido eram mais de 10 pessoas acompanhando… claro, meu marido foi convocado a sair da sala, ficou constrangido de me ver naquela situação, com aquele monte de estudantes, todos da minha idade, alguns conhecidos dele, de vista, pois ele fazia mestrado na farmacologia e tinha muito contato com os estudantes de medicina, inclusive nas festinhas). Nesse momento eu me senti estuprada, pois eu gritava (não conseguia falar de outra forma) que não era pra estourar, que meu irmão havia me dito que não era pra estourar (pois ele é GO e sabia que podia ocasionar um prolapso de cordão). Ela me ignorou, simplesmente, estourou a bolsa com ar superior (pois quando ela me perguntou o porque não estourar, eu não tive argumentos, nem força pra argumentar) e continuou falando com os alunos.
Dali tive que me levantar pra ir pra sala de cirurgia, andando semi nua pelo corredor, toda ensanguentada. Dei de cara com o meu marido, que já queria bater em todo mundo porque estava impedido de entrar. Eu fiz sinal pra ele ficar quieto, pois no momento já mal conseguia respirar. Já não conseguia raciocinar…
Obedeci, simplesmente, tinha medo de que tudo ficasse pior e que, por vingança me fizessem uma cesárea, pois quando me disseram que eu iria pra sala de cirurgia e eu gritei que “não, eu quero parto normal”, percebi que uma desobediência poderia ser determinante ali. Subi novamente na escadinha e me deitei na mesa de cirurgia. Me entreguei, pensando na frase clássica “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”. As enfermeiras colocaram as minhas pernas nos estribos, enquanto a doutora descrevia o meu quadro pros estudantes. Fechei os olhos, pois não queria ver a cara de ninguém, estava frustrada já antes de parir. Senti que o bebê (que antes eu sentia que estava saindo) já não estava saindo mais… a força que eu sentia antes, do expulsivo, tinha diminuído. Me mandaram segurar naqueles ferros e fazer força, muita força… “Vai mãezinha, que se não parir em 15 minutos, vai ter que ser cesárea e você não quer, não é mesmo?”. Pra “ajudar”, subiu na minha barriga e empurrou. A médica bem boazinha, “olha, tá difícil de sair, vou fazer um cortezinho pra ajudar” (que me rendeu 7 pontos). Nesse momento ela falou que ia colocar o fórceps (pros alunos), mas depois ela desistiu, disse que já estava saindo. E nasceu meu filho, com 2,980Kg. Vi que levaram ele pra uma pia (depois não vi mais, só as costas das enfermeiras, e ele chorando sem parar). O residente fez os pontos errados, a professora deu bronca, mandou tirar e fazer de novo. Eu estava exausta, mas mesmo assim quis me levantar e ir embora. Não deixaram, falaram que eu ia cair, pois estava com hemorragia.
Depois de alguns minutos trouxeram meu filho todo embrulhadinho. Eu queria ver as mãozinhas, os pezinhos…. mas lá estava ele embrulhado, de luvinha, touquinha, meinha. Me mostraram ele como mostram um bebê pra uma mãe que acabou de passar por uma cirurgia. Me deram a ordem: “beija ele, mãe, nem parece que está feliz!”E eu não estava mesmo. Estava triste, chateada, magoada e confesso que rejeitei meu filho naquele primeiro minuto. Eu que o queria tanto já não o queria mais. Levaram ele embora pra incubadora. Eu queria ver meu marido… chorar e dizer que aquele não era o parto da lagoa azul, como eu imaginava… Pedi meu marido, ele veio. Perguntei onde estava o meu filho, ele disse que na incubadora, que ele era lindo e que ele ia pra lá que não queria perder ele de vista. Saiu.
Enquanto isso me colocaram em uma maca e me levaram pra enfermaria. Pedi pra trazer meu filho, que queria ficar com ele. A enfermeira muito sensível disse que só em duas horas, “agora você vai dormir, porque vai passar o resto da vida sem dormir!”Apesar de ter passado a noite inteira em claro, com dores, levantando pra ir ao banheiro, vomitando… eu não consegui dormir (meu pequeno havia nascido às 9h da manhã). Esperei ele chegar. Quando ele chegou dormia, não acordava, só dormia… Pensei, “meu filho é um anjo, só dorme”…
Acordou, mamou mal. Dormiu no peito sem mamar direito. Começou a perder peso, teve icterícia. Vez e outra vinha um pediatra, levava ele, pesava e voltava dizendo que tinha dado complemento porque ele estava perdendo peso. Fiquei 5 dias no hospital. As enfermeiras disseram que era pra eu amamentar de 1 em 1 hora, senão ia ter que ficar mais tempo ainda no hospital. Eu passei todos aqueles dias e muitos, muitos outros acordando de 1 em 1 hora, dia e noite (com despertador do lado), pra enfiar o peito na boca do menino e segurar (ele não fazia questão de mamar – tbém, com soro glicosado na veia e NAN….), quando ele dormia eu o acordava mexendo no queixo, na boca… de medo dele perder peso e ter que ir pro hospital.
Meu marido indignado, queria que eu fosse pra casa. Nem eu, nem ele imaginávamos que aquele momento mágico de estar juntinho com nosso bebê recém nascido se transformaria nisso.Quando cheguei em casa tivemos logo uma briga. Ele chorou falando que não admitia, que aquele monte de estudantes tinha visto o filho dele nascer e ele tinha sido proibido de entrar na sala de parto. Que todos eles tinham visto a mulher dele com as pernas abertas, como ele ia encarar eles os encontrasse na faculdade? O detalhe disso tudo era: marido muito ciumento, muito possessivo. O ciúme dele se transformava em violência. E esse ciúme ficou ainda mais exacerbado depois do parto.
O parto, que poderia ter sido um momento de respeito e de aproximação acabou se tornando um problema nas nossas vidas. Qual foi o grau de contribuição desse evento pra nossa separação? Eu não sei… mas é certo que contribuiu.Não posso deixar de me lembrar desse parto como um evento doloroso. Não posso deixar de culpá-lo por muitos eventos que se sucederam. Quem pode saber se o nascimento do meu primeiro filho tivesse sido diferente, será que não estaríamos juntos até hoje? Se éramos tão apaixonados? Se fizemos um filho com tanto amor? Eu prefiro não pensar e levar a vida adiante. Hoje tenho outro marido, outro filho e mais um pra nascer.
Enfim… não adianta chorar o leite derramado. Mas eu gostaria muito, mas muito mesmo de dar uma resposta à essa GO (que sequer sei o nome, mas ainda vou saber!). Se houvesse uma lei que punisse naquele momento eu a teria denunciado, sem a menor sombra de dúvidas. Ela foi totalmente desrespeitosa, acabou com o meu momento, do meu marido e do meu filho.Nos marcou pra sempre. Eu nunca vou conseguir não chorar esse parto.
M* (que atualmente não consegue mesmo lembrar desse parto sem chorar)