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Cesarianas

“Mulheres que fazem cesarianas são muito corajosas. Afinal, são sete as camadas de tecido cortadas. Vocês devem se orgulhar de suas cirurgias”.

Sempre que vejo este tipo de publicação eu fico confuso. Será mais uma peça de exaltação da tecnologia como forma superior de lidar com os desafios do parto? Será o elogio à escolha por uma grande cirurgia, mesmo quando temos milhares de estudos comprovando ser a via natural a melhor e mais segura forma de trazer um bebê à luz?

Não, as cirurgias não são feitas porque as pacientes são corajosas; esta é uma leitura muito errada do que realmente ocorre. Pelo contrário: para alcançarmos taxas obscenas de cesarianas, as mulheres são assustadas, apavoradas e reduzidas aos seus temores mais primitivos até o ponto em que são obrigadas a ceder à pressão do cirurgião. A estrada do abuso de cesarianas é pavimentada com medo e pintada com as tintas do desmerecimento das qualidades inatas de gestar e parir.

Não há como considerar as mulheres levadas à cirurgia como “corajosas”, porque sequer são adequadamente informadas dos múltiplos riscos associados a esta operação. Se tivessem pleno conhecimento dos riscos e ainda assim escolhessem a cirurgia, talvez pudessem ser chamadas de “corajosas”, mas ainda seria necessário acrescentar outro adjetivo: “temerárias”. Mulheres devidamente informadas sobre o que significa privar o bebê de um nascimento natural conhecem os riscos que vão correr e entendem as múltiplas vantagens do parto fisiológico. Estas dificilmente são convencidas a abandonar a via natural de nascimento.

Em várias partes do mundo, e no Brasil em especial, mulheres se submetem a um número abusivo de cesarianas porque, inegavelmente, esta cirurgia traz inúmeros benefícios…. mas para médicos e hospitais, e não para mães e bebês. Nas cesarianas o hospital organiza com mais eficiência os horários dos procedimentos e as enfermeiras controlam melhor o trabalho a ser realizado. Os médicos não perdem seu descanso, nem suas férias, sequer as madrugadas ou fins de semana; muito menos as cesarianas irão atrapalhar seus horários de consultório. Além disso, a cesariana confere aos profissionais blindagem jurídica – não importa quantas cesarianas faça e nem o resultado trágico delas, o cirurgião sempre se protegerá atrás do escudo do “imperativo tecnológico”. A indústria de drogas e equipamentos lucra – e muito – com o excesso de cesarianas; os anestesista e auxiliares cirúrgicos também ganham seu quinhão na “roda da fortuna” das cirurgias sem indicação. A mãe, desempoderada e sem voz, ganha a ilusão de que fez o melhor possível. Afinal, que mais poderia ela fazer, além de alienar seu parto a “quem entende”?

Um dos resultados práticos da aventura intervencionista na assistência ao parto é a crescente incompetência dos obstetras na assistência ao parto. Habilidades de outrora, como as técnicas para atenção ao parto pélvico (bebê sentado), parto gemelar (de gêmeos), partos longos ou distócias de vários tipos estão sendo perdidas. Estas capacidades foram construídas durante milênios de aprimoramento por meio da observação, mas agora estão sendo aniquiladas pelo atalho cirúrgico – sem que existam claros benefícios para o binômio mãebebê. Na verdade, a assistência ao parto no contexto ocidental mais se assemelha a um teatro onde o espetáculo coloca em risco os figurantes (mães e bebês) para que os atores principais (equipe de assistência) fiquem seguros; só a saúde dos pacientes caminha na corda bamba.

A solução? Somente uma revolução do parto liderada pelas próprias mulheres e com a ajuda substancial de médicos, enfermeiras obstetras e obstetrizes, e o suporte luxuoso das doulas e da população em geral – homens e mulheres. Enquanto o parto for controlado por cirurgiões, o nascimento humano será um evento cirúrgico, que apenas ocasionalmente será fisiológico. O parto controlado por parteiras profissionais será fisiológico, humanizado, centrado na mulher e suas necessidades, e apenas ocasionalmente será cirúrgico. Esta é a escolha que as sociedades vão precisar fazer. O abuso de cesarianas não é um ato de coragem ou bravura; é tão somente desinformação de um lado e oportunismo do outro. E a solução para este dilema não está na conciliação de poderes, mas na tomada de consciência por parte das mulheres e na ação política de todos os atores sociais relacionados ao nascimento seguro.

(E, vamos lembrar apenas, mais uma vez, que este texto fala de cesarianas sem uma clara indicação, não a sua… que, todos sabemos, foi muito necessária.)

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Grilhões

Certa vez uma paciente me procurou com um pedido expresso para que eu “curasse seu útero”. Quando perguntei o que ele tinha ela me mostrou uma ecografia onde aparecia um pequeno mioma subseroso, menor do que dois centímetros.

– Estou com anemia, minhas menstruações são volumosas. Conversei com outro médico e ele me disse que o melhor seria tirar fora o útero. A explicação dele me convenceu pois pareceu correta e lógica.

– E qual foi a explicação que ele lhe deu?, perguntei.

– Ele apenas me questionou: “você ainda deseja ter filhos?”. Eu sorri e lhe disse que não, afinal estou quase com 50 anos e tenho filhos adultos. Ele então disse “O útero só serve para abrigar seus filhos ou acalentar um câncer”. Eu concordei; ele me fez ver que estou correndo risco de ter câncer sem ter qualquer vantagem.

Fiquei em silêncio observando minha paciente. Havia na sua expressão uma clara sinalização. Ela estava contaminada pelo medo, instilado pelo discurso do seu médico. Lembrei do famoso axioma sobre as guerras: “Se quiser um povo dócil, deixe-o apavorado. Quanto mais medo tiverem mais eles vão obedecer às ordens de um tirano travestido de salvador, por mais estúpidas que sejam suas determinações”. Da mesma forma, se quiser um paciente manso, obediente, “colaborativo”, deixe-o em pânico. Diga que se não fizer determinados procedimentos, tratamentos, regimes, etc. ele corre o risco de adoecer ou ter uma morte horrorosa, cheia de dor e padecimento.

O médico a quem ela procurou era um cirurgião. Por certo que para um sujeito com esta formação a cirurgia surge quase sempre como a solução para todos os males. “Se você é um martelo, todo problema é um prego”. Ora, nada mais óbvio: se você amputar seu útero – ou sua mamas – por certo que não terá como desenvolver um câncer nestas topografias. Mas seria esta a cura do câncer, ou apenas a retirada de um desconfortável sofá da sala?

O caso não apresentava justificativas para realizar uma histerectomia. O pequeno tumor benigno não estava envolvido em sua anemia limítrofe. O que ela tinha era uma síndrome característica da perimenopausa, um desacerto hormonal que levava à perda aumentada de sangue. Fiz a ela uma proposta simples e aberta: vamos tratar esta anemia, corrigir a menstruação, observar este mioma, usar alguns medicamentos homeopáticos e retornar em 6 meses para uma nova avaliação. Expliquei a benignidade do seu mioma e reforcei a ideia de que arrancar partes do corpo não é a melhor das alternativas, na imensa maioria das vezes. Ela concordou.

Entretanto, o que mais me impressionou foi a facilidade com que as mulheres aceitam a retirada do útero. Quando meu avô fez um tratamento para câncer de próstata, há muitos anos, uma das etapas era a orquiectomia (retirada dos testículos) para diminuir o aporte hormonal para o tumor. Na época ele tinha mais de 80 anos, e sequer lhe foi perguntado antes da cirurgia se “ainda pretendia ter filhos”. Na saída do centro cirúrgico o urologista comentou comigo que no lugar dos testículos foram colocadas duas esferas de silicone para diminuir o impacto emocional da “emasculação” causada pela retirada deles. Ficou claro que, para os homens, um testículo é mais do que um órgão que “faz filhos e câncer”; ele possuía um evidente valor simbólico, o mesmo valor que era sonegado ao útero. Ali estava um aspecto do “machismo” da medicina que era impossível negar.

A cirurgia mais realizada nos Estados Unidos é a cesariana, e logo depois dela, na lista de prevalência, está a histerectomia (retirada do útero), apesar de que estas cirurgias para miomatose terem passado por um considerável declínio nas últimas décadas. A medicina altamente tecnológica americana tem entre as cirurgias mais realizadas intervenções sobre o mesmo gênero e sobre o mesmo órgão. Se acrescentarmos a episiotomia (corte no períneo durante o parto) na equação veremos o quão poderosa é a crença de que o corpo das mulheres é algo que precisa ser monitorado, controlado, melhorado e consertado pela ciência médica, pois acreditamos que este organismo é intrinsecamente defeituoso, problemático, falho e traiçoeiro.

Mais chocante para mim é ver que, além dos interesses de uma cultura médica que desmerece o organismo feminino, existe uma aceitação tácita das próprias mulheres sobre a inutilidade dos seus órgãos. A forma como descrevem a menstruação (algo nojento, ruim, malcheiroso, etc) mostra como as especificidades femininas são mal vistas por muitas mulheres ocidentais. A maneira fácil como minha paciente aceitou a “inutilidade do útero” também foi chocante; como poderia um órgão que é chamado popularmente de “matriz” ou “mãe do corpo” ser tratado com tanta desconsideração. Por seu turno, o testículo é o símbolo da coragem e da determinação – precisa ter “culhão” para enfrentar tantos desafios. Por certo que este fenômeno é um efeito colateral do patriarcado, que desmerece o feminino em nome de uma ordem centrada nos homens, mas acredito que um contraponto muito mais intenso a essa perspectiva deveria ser disseminado entre as meninas.

Minha paciente fez o tratamento pedido, melhorou da anemia e o mioma se manteve estável. Voltou a algumas consultas com clara melhora. Depois disso ela se mudou com a família para o estrangeiro, para viver em outra realidade depois que ela e o marido se aposentaram. Mais de um ano depois da última consulta o marido, em visita ao Brasil, me procura no consultório pedindo um atestado, exames ou um documento dessa natureza. Na ocasião perguntei a ele como minha paciente estava, ao que ele respondeu:

– Ela está muito bem, mas ficou com vergonha de vir aqui. Ela acabou fazendo a cirurgia lá no exterior.

Não há como culpar uma paciente que faz suas escolhas diante da orientação ampla que recebeu. Posso criticar quem realiza cirurgias inúteis, mas não quem faz escolhas informadas. Este caso, entretanto, me ensinou que existem motivações escondidas no fundo da alma que nos levam a ações aparentemente tolas ou inúteis, mas que estão conectadas a elementos simbólicos e inconscientes. Estas pressões internas são, muitas vezes, muito mais fortes e poderosas que as orientações racionais que oferecemos aos pacientes. Ou como dizia meu amigo Max: “estes condicionantes são poderosos exatamente porque estão distantes da razão”. Isso também determina uma posição humilde para qualquer terapeuta: não é justo curar um sujeito para quem um tratamento – por mais justo e correto que seja – é visto como uma violência. É difícil aceitar uma realidade tão dolorosa quanto esta: para muitos sujeitos existe uma paixão inconfessa pelo sintoma. Curar-se significa libertar-se, mas quem de verdade deseja desfrutar de uma vida sem os grilhões que ao mesmo tempo que lhe aprisionam lhe oferecem segurança?

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Parto e Autonomia

Maozinha

Afinal, quem deve tomar as decisões no nascimento?

Você acha que as equipes de saúde podem tomar decisões por você?
Podem escolher por você? É certo você receber uma episiotomia sem justificativa e sem a sua plena concordância? É razoável ter um fórceps ou um Kristeller aplicado sem que você receba explicações? É correto tomar atitudes sobre o corpo de uma mulher sem consentimento?

É justo que você seja afastada do seu bebê sem explicações detalhadas ou justificativas baseadas em evidências, apenas porque as equipes do hospital querem “dar um banho“, “tirar a sujeira do parto“, “pesar, medir, colocar colírio” ou para fazer “procedimentos de rotina“? Podem estes procedimentos ocorrer sem que você seja consultada?

É justo que seu bebê seja levado para longe de você apenas para ser avaliado em um local cheio de luzes, barulhos e cheiro de desinfetantes a despeito de sua vontade expressa de estar ao lado do seu filho? É adequado interromper a “hora dourada” – os 60 minutos que se seguem ao nascimento – para cumprir normas insensíveis e sem comprovação de sua utilidade? A quem servem estas condutas?

Já parou para se perguntar quem tem o direito de mandar em você e no seu filho no momento sagrado em que um é apresentado ao outro?

Pense bem… afinal, quem manda no seu corpo? Quem determina sobre este bebê, que ainda pulsa no mesmo ritmo do seu coração?

Não se trata de impedir o cuidado oferecido pelos profissionais, mas questionar até onde estas intervenções são criadas para verdadeiramente acrescentar segurança ao momento do parto ou apenas para gerar vantagens para quem atende.

Se você acha que a atenção ao bebê precisa ser revista, para que o melhor da técnica se adapte aos direitos humanos, não aceite mais procedimentos indignos e que não respeitam a ciência e negam autonomia às mulheres.

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