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Auto amor

Nas redes sociais são comuns as mensagens que tentam acalentar os egos dilacerados pela vida competitiva, corações cheios de percalços e derrotas desafiadoras. Esses textos procuram estimular a autoestima combalida das pessoas que sofrem da desconsideração que os outros fazem do seu trabalho, seu corpo imperfeito, seus afetos, sua maternidade, etc. Para isso apostam na auto exaltação, na visão positiva de si mesmos e na desqualificação das críticas maldosas e inconsistentes a que são submetidos . Ou seja… para não ser uma pessoa manipulada pela maldade alheia daqueles que não reconhecem seu “alto valor”, é preciso buscar o oposto, apostando na arrogância e, muitas vezes, no autoengano.

Essas dicas de “influencers” e apóstolos da autoajuda sempre nos servem quando estamos em sintonia. Os sentidos procuram avidamente palavras que se encaixem na nossa necessidade de acolhimento. Ora, é sabido que todos nós acreditamos que o mundo nos deve consideração, admiração e amor para muito além do que efetivamente recebemos. Estamos constantemente a cobrar do resto do planeta o que pensamos ser o nosso devido quinhão de felicidade e conforto – por eles sonegados. Para além disso, o mundo é, via de regra, injusto e severo demais com nossas pequenas ou grandes conquistas. Não recebemos o reconhecimento devido e ainda nos jogam uma crítica por demais feroz sobre nossas falhas e erros. Como lidar com tamanha injustiça?

A resposta a isso pode ser recolher-se em silêncio na humildade, entendendo que nossas virtudes, se forem reais, aparecem inexoravelmente com o tempo. Por outro lado, podemos gritar a plenos pulmões nossas qualidades imaginando que, assim agindo, conquistaremos corações e consciências. Estes são os extremos de nossa reação ao amor que (não) nos dão. Eu prefiro uma posição intermediária: creio que devemos ser humildes até onde nossa simplicidade afete o amor que devemos devotar a nós mesmos, e devemos ser exuberantes até o ponto em que a vaidade destrua nossos princípios. Essa é a lógica que imagino também ser adequada para criar os filhos: “Ame-os infinitamente, mas até o limite da falta, para que seu amor não destrua neles a necessidade de encontrar o amor por si mesmos”.

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Império dos Diplomas

Li uma postagem de profissionais que se sentem cansados pela interferência de curiosos na sua área de atuação. A mensagem, escrita numa caneca de porcelana, dizia: “Por favor, não confunda sua pesquisa no Google com meu diploma”.

Na medicina percebi durante muitos anos o mesmo fenômeno: médicos indignados com as opiniões de “curiosos” ou com as pesquisas que leigos fazem na internet antes da consulta. Apesar de entender a preocupação, no meu modesto ver reclamar desse “fato social” de nada adiantará. As pessoas continuarão a ler, se informar e tentarão encontrar por si mesmas as respostas para seus dilemas e angústias, sejam elas jurídicas, médicas, nutricionais ou de qualquer área técnica. A abordagem dos médicos, dos advogados e de outras profissões deve ser através da absorção desse novo paradigma de conhecimentos disseminados, e não combatê-lo com autoritarismo.

Com todo respeito que eu possa ter pela preocupação dos profissionais, eu creio que esse tipo de manifestação é essencialmente deselegante. Quem faz tais afirmações está usando o conhecido “argumento de autoridade”. Dá a entender que as “pessoas comuns”, com informações de domínio público, curiosas e com interesse em um determinado assunto, não podem questionar a autoridade que é oferecida a alguns através de um diploma. Trata-se do famigerado “lugar de fala” aplicado às conquistas acadêmicas, e bem sabemos o quanto esse tipo de atitude produziu revolta nos últimos anos ao estabelecer “eleitos” que exigiam o monopólio do discurso. Calar a boca do outro, considerando-o indigno de emitir sua opinião, jamais será uma ação positiva.

As pessoas podem sim questionar o que dizem os advogados, médicos, mecânicos e técnicos das mais variadas formações sem terem um diploma exposto na parede. Estes profissionais podem cometer erros de percepção e até de conteúdo, e não é infrequente que sejam alertados pelos seus clientes ou por pessoas que olham através de uma perspectiva distinta. No caso da Medicina, o “Dr. Google” ameaça apenas os médicos inseguros e arrogantes; a informação absorvida pelo paciente não é ruim ou inadequada, e pode mesmo auxiliar o médico a encontrar alternativas de diagnóstico e prognóstico. Esta lógica pode ser usada com os advogados, engenheiros, professores e todas as outras profissões.

Aceitar como imutável e inquestionável a disparidade de saberes, sem permitir a maleabilidade dos poderes, acaba estimulando um autoritarismo do conhecimento formal em detrimento da democracia da informação. É verdade que muitos se alçam à condição de “experts” pela simples leitura de poucas páginas na Internet, mas esse é um efeito inexorável da disseminação do conhecimento. Deve ser refreada, mas não através do silenciamento. Tentar fazer valer o “Império do diploma”, silenciando as vozes populares que questionam o poder dos especialistas, não ajudará o progresso e só aumentará a autoridade dos maus profissionais. 

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Crescer

Tão preocupados estamos em vencer as barreiras constritivas da infância que não percebemos o amadurecimento dos nossos próprios pais. Todavia, uma busca mais consistente pela memória e percebemos as nuances do crescimento que eles enfrentam. Meu pai aos 50 anos era muito diferente do que se tornou aos 90. Ele dizia, próximo do final da vida, uma de suas frases mais marcantes: “Não se passa um dia sequer que eu não escute o ruído estrondoso da queda de uma das minhas antigas convicções”. Ele não diria isso aos 50, mas aos 90 foi capaz de se postar de forma humilde diante do conhecimento e da verdade.

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Há na lista


Quando eu conto que fiz quase 30 anos de análise as pessoas geralmente se espantam e me perguntam, com genuína estupefação: “Mas afinal, o que foi que você descobriu?”

Eu acho que essa curiosidade é legítima, mas sempre fico com dificuldade em dar uma resposta objetiva, baseada em fatos claros para este questionamento. Parece que todo mundo aguarda uma réplica ao estilo: “Descobri que sempre odiei meu pai e amei a minha mãe” (ou vice versa), “durante a gestação minha mãe me rejeitou”, “sempre quiseram um(a) menino(a)” ou então aquela tradicional “nunca me recuperei do fato da minha mãe ter me esquecido no portão da escola”.

Tenho uma regra básica para os eventos marcantes da nossa vida: se eles podem ser resgatados com essa facilidade, emergindo ao consciente como uma bola que largamos no fundo da piscina, então é porque se trata de uma “falsa explicação”, provavelmente algo que usamos no lugar do conflito verdadeiro. Mesmo que eu acredite na dor que cerca tais eventos, eles apenas existem como intensificadores de sofrimentos mais antigos, recônditos e não-sabidos. Estes, por serem violentos e estruturadores de nossa neurose, estão, via de regra, escondidos nos porões úmidos e frios do nosso inconsciente.

Imaginar que uma análise se presta a descobrir estes fatos catastróficos é desmerecer a importância dos pequenos eventos na formação do sujeito. Lembro de uma conversa como uma amiga psicanalista a respeito de um quadro psíquico muito pesado, e a pergunta que lhe fiz: “Que evento escondido em seu passado pode ter ocasionado tamanha repercussão?”, ao que ela respondeu: “as vezes um olhar, uma palavra, ou a falta de ambos”.

A psicanálise atua na sutileza, na delicadeza, nas filigranas do discurso. Sua busca é pela imbricação de afetos, o conflito dos amores, a disputa de desejos e o desatar destes nós que carregamos. Não aguarde de uma sessão o espetáculo ilusório dos “insights” maravilhosos, uma sucessão de epifanias, um “ah-rá!!” a nos confirmar antigas suspeitas ou para abrir “as portas da esperança”. Não, uma análise é algo que se faz até mesmo depois de terminada a sessão, quando nossas próprias palavras fazem eco em nossa mente, ao voltarmos para casa enquanto nossas lembranças dominam a paisagem. A boa análise é paciente e silenciosa, muda a nossa percepção oferecendo um conceito muito mais humilde de nós mesmos. Assim, quando a pergunta “o que você descobriu” me atinge os ouvidos, minha resposta invariavelmente é: “milhares de coisas, mas nenhuma que eu me lembre no momento“.

PS: quando fiz minha primeira sessão de análise eu disse: “Pensava em fazer esta consulta a mais tempo, e tentei lhe ligar faz alguns meses, mas descobri que “telefone de analista não há na lista.” É inacreditável que uma análise tenha se estabelecido depois de um trocadalho miserável desses…

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