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Homossexualidade

Muito se tem debatido nas últimas décadas a respeito dos condicionantes para orientações ou mesmo para a identidade sexual nas sociedades humanas. As explicações variam daquelas vinculadas à biologia e a exposição a substâncias intrauterinas, passando pelas teorias comportamentais da psicanálise ou mesmo a ausência total de qualquer explicação, diante da ausência de condicionantes claros e evidenciáveis. Ainda resta muito a ser descoberto especial no que se refere à sexualidade humana e tantas outras questões imateriais que nos cercam.

Em relação às definições de homossexualidade (ou heterossexualidade) minha posição continua inalterada: só consigo entender a “origem” dessas orientações inseridas na constituição do sujeito, na sua subjetividade, na sua unicidade e na sua delicada estrutura psíquica, indissociável de sua história. O que a impressão simplista nos informa é frequentemente errôneo, e essas simplificações nos fazem perder a dimensão complexa do fenômeno. Para a questão complexa do desejo sexual, só posso admitir uma resposta igualmente complexa e que tem a ver com a intrincada construção de nossa personalidade.

Lembro bem de uma paciente que atendi há muitos anos e que me procurou por questões ginecológicas simples. Separada, tinha uma filha adolescente. Perguntei sobre anticoncepção e ela me contou não usar nenhum método porque tinha uma parceira; estava namorando outra mulher. Ok, nada de mais simples do que atender uma pessoa homossexual, mas o que ela me disse depois foi interessante.

Relatou que jamais se interessou por mulheres durante toda sua vida, mas tão somente por aquela mulher específica. E se viesse a se separar dela (o que achava que ia ocorrer em breve) não se imaginava procurando outra mulher para namorar. Portanto, a construção da sua “homossexualidade” – ou bissexualidade – era absolutamente única, pessoal e específica, e qualquer rótulo que se colocasse sobre ela seria limitante e não contemplaria a verdadeira dimensão do seu desejo.

Uma resposta, que me foi oferecida por uma amiga psicanalista, seria que “sua resposta poderia ser tão somente uma justificativa pra se permitir viver um amor lésbico que ela, de outra forma, não se permitiria viver. Isso porque ela acha que sabe de si mesma, acredita se conhecer, tem uma imagem e uma história de si mas, de repente, se encontra amando alguém que não se encaixa nessa narrativa. Aí cria-se um problema. Dizer “só ela” abre uma possibilidade sem, necessariamente, arranhar essa imagem de si, essa narrativa construída de si mesmo, o que ela pensa e aceita ser. Quase um passe, uma carta que a gente mostra, uma autorização: olha, é isso, é só isso, não precisa se preocupar.”

Claro que pode ser esta a resposta, mas um olhar exterior teria dificuldade para interpretá-la ou classificá-la sem embarcar numa viagem ao seu inconsciente e seus significantes para descobrir este espaço único e subjetivo que ela construiu para o seu desejo. Qualquer interpretação que não percorra esse caminho único será pura selvageria.

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Bolhas

Existe uma série de assuntos que eu adoraria debater até para diminuir um pouco a minha ignorância sobre eles. Quando você vive em uma sociedade branca, num estado branco, sendo de classe média e heterossexual acaba tendo dificuldade para entender as queixas das pessoas que sofrem as consequências por NÃO SEREM como você, as quais não tem a possibilidade de deixar que o fluxo do mainstream as carregue para posições mais privilegiadas. Lembro muito do ativista israelense Miko Peled que, sendo israelense e branco, tinha dificuldades de entender o ponto de vista dos palestinos, pessoas a quem NUNCA via no seu dia-a-dia, e por isso mesmo podiam ser estereotipados e/ou demonizados pela cultura em que estava embebido. Foi apenas o encontro fortuito com palestinos quando moravam em San Diego, nos Estados Unidos (!!!), que o fez acordar para a questão da Palestina, o Nakba, a limpeza étnica e as reivindicações daquele povo.

Miko Peled em seu livro “O Filho do General” agradece de forma comovente a recepção afetiva e compreensiva que teve por parte dos ativistas palestinos, os quais tinham TODAS AS RAZÕES do mundo para odiá-lo, não apenas por ser israelense, mas por ser filho de um general invasor, responsável por boa parte da desgraça afligida ao seu povo. Sem esse carinho e essa fraternidade explícita de pessoas em uma posição aparentemente tão distante, seria muito fácil para Miko manter-se dentro de sua bolha de demonização e ódio ao “inimigo”. Para mim, não foram os argumentos racionais que o convenceram que sua postura estava errada, muito menos os registros históricos a que teve acesso em sua busca pela verdade, mas o afeto e a acolhida amorosa que recebeu daqueles que por muito tempo considerou como adversários e inimigos mortais.

Para as pessoas que tem as mesmas condições que eu é importante serem apresentadas às questões femininas, raciais, de gênero e sociais para que possamos pensar fora de nossa bolha de amizades e relações cotidianas. Sem esse confronto com vivências diversas e sem o contraditório é difícil sair da zona de conforto das nossas convicções e nossas perspectivas. Por isso o confronto de ideias é tão importante.

Infelizmente, em tempos de ódio, isso é cada vez mais difícil. Fiz um comentário na página de uma doula a respeito de uma mensagem que ela postou com um texto assinado por Andrea Dworkin. Disse que o texto (sobre ser lésbica) era sensível e bonito, mas foi escrito por alguém que sofre muito mais criticas do que elogios de dentro do movimento feminista por suas lutas anti-pornografia e acima de tudo por suas atitudes controversas (liberdade para mulheres que mataram maridos abusadores). Ela, por exemplo, era extremamente conservadora e escreveu um livro cujo título era “Right-wing women”. Faleceu aos 58 anos com um quadro avançado de artrite e complicações de obesidade mórbida, mas se estivesse viva estaria ao lado de Trump fazendo campanha por ele e por sua visão de extrema direita.

Meu comentário visava apenas alertar para a origem da mensagem, para não repetir o que o ator José Wilker fez numa reunião de diretores da Globo: um discurso recheado de citações que, depois dos aplausos de todos, avisou serem todas de Adolf Hitler, retiradas do “Mein Kampf”. Infelizmente bastou eu questionar uma autora como esta – mesmo elogiando a visão poética que ela tinha da homossexualidade feminina – para sofrer ataques pessoais. Aí vieram as agressões, ironias, deboches, violências e ataques pessoais que culminaram com um festival de blocks e o fim de qualquer possibilidade de conversa.

Claro, o erro foi meu. Eu não deveria ter feito aquele comentário. Afinal, não é problema meu. Quem quiser que siga, que cite, que admire e que adore. O problema é que isso mantém a bolha e as ilhas de concordância intactas, e não permite que a gente aprenda com o pensamento alheio. Ficamos todos desconectados porque as pessoas não querem debater; querem lutar, destruir opositores, querem “lacrar”, humilhar oponentes, vencer guerras de argumentos, ser o mais irônico possível, ser o super fodão da sua turma (o meme preferido é o negro aquele que é carregado pelo amigos e recebe os óculos escuros da suprema esperteza) e tratar todas as pessoas de quem discordam como inimigos a serem destroçados.

A solução momentânea é se afastar, bloquear, voltar para o seu canto frustrado e esperar que alguém de bom coração se proponha a conversar sem pedras nas mãos. Ter a paciência de aguardar a caridade de alguém sem ódio transbordante e esperar que os ânimos possam arrefecer. Infelizmente, para algumas pessoas, isso nunca vai acontecer, pois as causas são apenas desculpas passageiras para a razão principal que as move: a luta em si e a destruição dos oponentes.

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Principiante

Doutor

Primeiros dias de trabalho no primeiro emprego. Não tinha mais de 27 anos mas carregava uma cara de 20. Trabalhava nesta clínica privada durante a manhã, enquanto à tarde atendia no hospital da aeronáutica. A essas “clínicas de passagem” (“fico aqui até achar algo melhor”) chamávamos “trambiclínicas“. Estão em extinção nos dias de hoje, mas quando me formei havia muitas.

Abri a porta e chamei por um nome de menina. Ela entrou, acabrunhada e tímida. Talvez não imaginasse um doutor adolescente. Quem sabe tivesse medo de me dizer algo, ou escutar alguma coisa que não queria.

Falou de umas dores no seio e algumas outras questões menos importantes. Ela era bonita como são as meninas nessa idade, e seu sorriso era tímido e juvenil. Tinha 19 anos e era estudante. Morava com o pai, e mãe e uma irmã.

Antes de pedir exames, colher o papanicolau e escrever uma receita protocolar resolvi perguntar-lhe sobre sua vida. Talvez houvesse ali algo a dizer.

– Como é sua vida sexual?, perguntei, fingindo uma maturidade e isenção que somente a idade garante.

Ela me olhou sem pestanejar e respondeu “boa”.

– Algum problema com as relações?

– Nenhum, disse ela, parecendo querer abreviar a conversa. Comecei a ter relações há 4 anos e nunca tive problemas.

– Anticoncepcional?, insisti

– Não tomo anticoncepcional, doutor.

Meu semblante ficou severo. Sua resposta de alguma forma me irritou. Esse sentimento pude sentir muitas vezes na vida. Uma mulher que não cumpre nossas “ordens” não está apenas prejudicando sua saúde, está desafiando nosso poder. Aprendi isso de uma maneira brutal ao tentar entender a raiva – às vezes ódio – que os profissionais sentem ao ver pessoas que se recusam a fazer uma cirurgia, tomar uma droga, ou ir para um hospital para ter um filho. Tais recusas são tomadas como ofensas e desconsideração com a autoridade do profissional. Nossa resposta, que deveria ser de acolhimento e respeito pelas decisões soberanas de quem nos procura, em geral é estruturada como violência. Não é lícito aos pacientes desmerecem nosso saber.

– Camisinha? Diafragma? Coito interrompido? DIU? Tabelinha?

A todas estas me respondeu negativamente, sem piscar um olho.

Resolvi agir com a delicadeza de um viking à mesa do jantar após uma batalha.

– Filha (iniciei com a arrogância típica dos donos da verdade, médicos e bispos), você não acha que é muita irresponsabilidade da sua parte agir desta forma em relação à sua vida sexual? Tem 19 anos, estuda, vive com os pais, não tem emprego, não tem renda, tem relações há 4 anos e não usa nenhuma proteção contra uma gravidez indesejada. Você acha certo agir assim? Acha justo que uma gravidez arruíne a sua vida e entristeça sua família? Não lhe parece uma atitude sem juízo?

Ela ficou por alguns instantes me olhando sem nada dizer. Finalmente arqueou as sobrancelhas e me respondeu com uma expressão de desconforto:

– Doutor, eu só tenho relações com meninas.

Silêncio. Passados alguns instantes percebi cada centímetro da minha pele ruborizar. Na minha face o vermelho brilhante denunciava a falha, a incompetência e o preconceito. Tentei falar algo, mas a voz não saía. Queria dizer algo para dar a impressão que “tudo estava bem” e que eu achava “a coisa mais normal do mundo”. Afinal somos treinados para estas situações.

Mentira. Somos produzidos em série para interpretar exames e cuidar de um corpo falsamente biológico. Achamos o erro na molécula, o equívoco no hormônio, a fissura no osso mas na arte do enfrentamento com a crueza da palavra somos garotos que, diante de uma mulher de verdade, nada sabem dizer. Falta-nos a voz. Para saber como enfrentar o choque da fala do outro somente se conquistarmos a mais excelsa das virtudes de um medico: a idade, que por vezes nos brinda com a sabedoria.

O constrangimento havia me roubado a voz e a pose. Dos frangalhos de uma arrogância tola, filha da insegurança infinita que jamais me abandonou, consigo forças para uma última frase, que poderia abrir – ou não – as portas para um novo contato, certo que o anterior havia morrido em sua última fala. Depois de um breve suspiro, pergunto:

– Desculpe. Podemos começar tudo de novo?

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