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Memórias do Homem de Vidro – 07

Simulacrum

Passados alguns anos da saída da residência médica, minha inquietude com a obstetrícia atingia limites preocupantes. Já naquela época eu trabalhava em hospitais de periferia como plantonista do centro obstétrico. Nesses locais, eu po­dia vivenciar o tipo de obstetrícia que se oferecia à grande massa da população brasileira, pois a clientela atendida era basicamente formada por trabalhadores de baixa renda oriundos do cinturão de pobreza que circunda as grandes cidades. Ali, à margem dos grandes centros, os procedimentos rotineiros não diferiam muito daqueles que aprendi no transcorrer da residência médica. As condutas eram to­madas sem um critério sólido de embasamento científico, e atitudes aparente­mente banais, como abolir a tricotomia (corte dos pelos pubianos), eram vistas pelos colegas e pela enfermagem com desconfiança e, muitas vezes, com explí­cita aversão. Eu, entretanto, já estava por demais contaminado com uma forma diferenciada de entender o parto, e essa compreensão se manifestava inexora­velmente na minha prática cotidiana, tornando-se um incontornável gerador de tensão.

Meu ingresso na profissão foi cercado de desafios e conflitos inevitáveis. Algumas auxiliares de enfermagem desses hospitais eram antipáticas aos meus procedi­mentos médicos, e dentre elas algumas eram manifestamente contrárias. Diziam que não achavam correto “deixar uma mulher para ter filhos como uma galinha botando ovo”. Não aceitavam a quebra que eu produzia em um modelo de partos que elas repetiam irrefletidamente havia mais de 20 anos. Para elas, as explica­ções científicas sobre a postura de cócoras, por exemplo, eram completamente inúteis, e me diziam que, “se fosse certo nascer assim, o senhor não seria o único a fazer”. Na verdade, elas acreditavam que eu assistia partos de cócoras só “para ser diferente e chamar atenção”. Nessa época, eu já era alvo do escárnio de al­guns colegas, mas as próprias funcionárias, mulheres que tratavam de mulheres, eram tão ou mais cáusticas. Não foram poucas as que me informaram que não gostavam de trabalhar comigo, porque eu era “cheio de manias”. Minha presença era considerada uma ameaça. Minha pior “mania” era pedir que tomassem cuidado com tudo que fosse dito na frente das grávidas em trabalho de parto, porque sua fragilidade, causada pelo estado alterado de consciência, as tornava facilmente susceptíveis. A entrada de um centro obstétrico, além de ser um local de extrema violência institucional, é também um local onde se encontra muita “patologia da palavra”, que, em se tra­tando do nascimento, pode ser entendida como “a morbidade causada pelo uso inadequado de expressões, atos ou gestos que podem fazer a paciente adentrar o ciclo vicioso do medo-tensão-dor”. Maximilian, meu colega e “guru”, batizou esse processo de verbose.

Lembro-me de uma história em que a desatenção e o uso irresponsável de uma expressão colocou um grupo inteiro de pessoas em pânico. Nesse mesmo hospital de periferia, há mais de 10 anos, uma paciente adentrou o centro obstétrico com uma ultrassonografia demonstrando um abortamento fetal precoce, de menos de 10 semanas. Vinha encaminhada diretamente da clínica de ecografias, e parecia estar já conformada com a perda da gravidez. Apresentava sangramento vaginal moderado e o colo uterino estava aberto. Conversei um pouco com ela, expliquei como seria feita a raspagem uterina e pedi que o marido ficasse por perto para estar ao seu lado quando acordasse da anestesia. Ela concordou, mas pediu que eu falasse com ele, porque se encontrava nervoso e preocupado. Determinei, en­tão, que uma das auxiliares de enfermagem solicitasse a presença do marido para falar comigo.

A funcionária prontamente dirigiu-se à porta de entrada do centro obstétrico e de lá disse em voz alta, dirigindo-se para a pequena aglomeração de familiares que aguardava informações:

— Por favor, o marido da paciente que perdeu o bebê, queira entrar para falar com o médico.

Detalhe: naquele momento, estavam internadas cinco ou seis pacientes em tra­balho de parto. Para cada grávida, existem em média 2,5 acompanhantes, o que significava quase 15 pessoas aguardando, espremidas e ansiosas na pequena sala. Quando a funcionária disse essa frase, todos se ergueram em sobressalto para saber quem era a infeliz paciente que havia perdido um bebê. Afinal, poderia ser qualquer uma das gestantes internadas. Criou-se um alvoroço que só foi con­tornado quando eu expliquei a cada um a confusão, e reforcei que as suas espo­sas/filhas/irmãs, assim como seus bebês, estavam muito bem.

Apesar de a admissão nos centros obstétricos ser marcada por condutas equivo­cadas, como a narrada acima, era no interior deles que ocorriam as mais questio­náveis e insensatas atitudes. Continuava sem entender porque, apesar de termos veículos ágeis e de fácil acesso, como a Biblioteca Cochrane, os livros do Ministé­rio da Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde, poucos médicos se inte­ressavam em discutir medicina baseada em evidências. Sentia-me isolado, por­que, diante dos meus questionamentos, meus colegas frequentemente se justifi­cavam dizendo que suas condutas estavam calcadas em “anos de experiência”, ou que “foram ensinados dessa forma pelo doutor Fulano, que era um grande mestre”. Não era fácil encontrar posturas críticas e criativas; a grande maioria re­petia atitudes e jargões padronizados. Diante desse cenário de conformismo com o modelo vigente, minha prática como obstetra que assistia “partos de cócoras” era vista como “modismo”, algo estranho e sem importância, que apenas algumas mulheres eivadas de fervor místico consideravam digno de consideração. Eu era tratado como “sonhador”, ou alguém que enxergava a medicina de forma român­tica e ingênua.

Meu sofrimento era incrementado pela ausência de explicações convincentes para as idiossincrasias da prática obstétrica. A despeito de ter percebido os maus re­sultados produzidos pela distância que mantínhamos das evidências científicas, eu ainda não tinha as respostas para uma pergunta que me torturava: por que, apesar das provas contundentes de que já dispomos, nós, médicos, continuamos a agir de forma mitológica e repetitiva, reproduzindo terapêuticas comprovada­mente inúteis e/ou perigosas para as nossas clientes? O que nos movia? Por que a distância entre nosso saber e nosso gesto? Por que nossas condutas eram tão afastadas do cientificamente comprovado como útil e seguro?

Naquela época, esse hospital tinha índices de cesarianas superiores a 45%, e questionar a validade de, por exemplo, episiotomias de rotina (entre outras con­dutas corriqueiras e igualmente equivocadas) era considerado quase um sacrilé­gio. Essas perguntas, relativas às práticas comprovadamente ineficazes ou inade­quadas, eram frequentemente respondidas pelos colegas com afirmações do tipo: “É o efeito inercial; agimos assim porque mudar é sempre complicado e difícil. Fomos treinados em um determinado tipo de proceder e nos mantemos nele por hábito”. Em uma frase que acabou famosa através de uma tese da Dra Simone Diniz, uma ginecologista explicava a razão pela qual aplicava episiotomias nas suas pacientes, apesar de saber de sua inutilidade: “Eu até tento não fazer, mas minha mão parece que vai sozinha!”. Também chamavam essa conduta repetitiva e automática de “hábito vicioso”, que poderia ser definido como a “dificuldade em mudar um procedimento previamente conhecido que nos oferece a segurança de um resultado previsível”.

Nada disso me satisfazia. Eu costumava responder a essas afirmações com uma pergunta capciosa: “Se você ganhasse um milhão de dólares na loteria, continua­ria indo para o trabalho de ônibus porque teria dificuldade em romper um hábito de 25 anos?” Nunca escutei nenhuma resposta afirmativa a essa pergunta; ninguém manteria um costume como esse sem ter uma boa justificativa. A tese de “repeti­ção inercial” ou “hábito” parecia querer esconder motivações inconscientes, que provavelmente seriam complexas ou constrangedoras demais para serem explici­tadas.

Mas que motivações inconscientes seriam estas? Tratar-se-ia, por acaso, de sa­dismo por parte dos médicos? Utilizariam eles cesarianas em excesso, enemas, tricotomias, episiotomias etc., muito além do que seria medicamente admissível, apenas para que suas pacientes sofressem intervenções injustificadas? Seriam os médicos tolos, ignorantes e cegos às realidades disseminadas modernamente sobre a validade desses procedimentos? Não pareciam ser estas as respostas. Rebater as críticas a uma prática médica cientificamente equivocada com argumentos de ordem moral me parecia uma tá­tica escapista, muito utilizada para explicar outros fenômenos sociais. Assim era com a criminalidade, tratada como uma mácula social criada pela ausência de va­lores éticos, dessa forma mascarando as questões econômicas e culturais envol­vidas na distribuição da riqueza. Não me permitiria acreditar nessa interpretação tacanha da realidade, que mais escondia do que revelava respostas. Deveria exis­tir algo mais profundo, recôndito e de difícil acesso que pudesse responder a es­sas questões.

Se as explicações eram escassas, os fatos, por sua vez, eram inquestionáveis: bastava uma passada superficial pelas estatísticas para perceber a brutal distân­cia entre realidade e evidências científicas. Na minha cidade, existiam hospitais privados em que o índice de cesarianas era maior do que 80%. Essa realidade ainda vigora incrivelmente nos dias de hoje, e depois do trabalho de Joe Potter e Kristine Hopkins (mostrando que as cesarianas não são a preferência das ges­tantes, como foi historicamente apregoado) já não podemos culpar as mulheres pela opção insensata do nascimento pela via cirúrgica. Nossa mortalidade ma­terna, que estava nessa época em um patamar superior aos atuais 75 por 100 mil nascimentos, é fortemente ligada às hemorragias e infecções — muito mais fre­quentes nas cesarianas — e está entre as mais altas do mundo, pareada com os mais pobres países da África. Onde estaria, então, a resposta para esse divórcio entre ciência e prática médica?

As explicações para o intervencionismo no nascimento humano às vezes apre­sentavam características que oscilavam entre o absurdo e o bizarro. Em uma con­versa que tive alguns anos atrás com um colega obstetra durante o congresso de ginecologia e obstetrícia da Febrasgo no início deste milênio recolhi essa pérola, que tentava explicar o índice abusivo de cesarianas no nosso país. Dizia ele, com ares de inequívoca sapiência, que o problema do excesso das cesarianas no Bra­sil estava relacionado com a miscigenação entre negros e europeus, pois criava as condições para uma desproporção céfalo-pélvica. Sendo os negros menores e mais “estreitos”, acabavam por obstaculizar o nascimento de indivíduos com ge­nes europeus, maiores e mais largos. Olhei para o colega sem acreditar na serie­dade da sua tese racista e disse-lhe: “Mostre-me seus dados! Estarei pronto para acreditar nisso se o senhor me apresentar de onde saiu essa afirmação”. Ele, ob­viamente, nunca me enviou nenhuma informação sobre isso.

Comecei então a procurar em outras áreas do conhecimento as respostas que a medicina não me apresentava, principalmente na história, na psicanálise e na an­tropologia. Passado algum tempo, caiu-me nas mãos um dos artigos mais eston­teantes sobre a obstetrícia contemporânea que eu já havia colocado meus olhos: Obstetrical Training as a Rite of Passage, de Robbie Elizabeth Davis-Floyd. Rob­bie é uma antropóloga americana e ativista do nascimento, que escreveu vários livros e artigos sobre o parto humano através de uma visão antropológica. Encon­trei esse artigo “por acidente”, ao vasculhar as referências bibliográficas do livro Obstetric Myths and Research Realities, da educadora perinatal Henci Goer. Os capítulos finais desse precioso livro são todos dedicados ao modelo que Robbie descreveu sobre as motivações para os procedimentos repetitivos e ritualísticos da prática médica contemporânea.

Foi uma descoberta reveladora e violenta. Ali, pela primeira vez, encontrei o signi­ficado da ritualística médica, tecnocracia e rituais de passagem. A leitura desse artigo — e posteriormente de todos os livros publicados pela Dra. Robbie — fez com que o meu entendimento sobre a obstetrícia desse uma guinada fabulosa, levando de roldão toda a minha vida.

Coincidentemente, poucos meses depois da leitura deste artigo, chegou na minha cidade o filme “Matrix”. Seduzido pela expectativa de um filme de aventuras e fic­ção científica, acabei sendo surpreendido por uma instigante e estonteante metá­fora para a compreensão do mundo contemporâneo, que produziu um profundo choque no meu entendimento sobre a realidade circundante. A partir de então, fiquei tão impactado com essa coincidência que comecei a traduzir o mundo em que eu estava inserido através da metáfora poderosa dos irmãos Wachowski.

Quando saí do filme, em 1999, estava acompanhado dos meus fiéis escudeiros, Lucas e Bebel. Só me permito ir ao cinema assim escoltado, porque depois de qualquer sessão se forma um debate acalorado sobre o filme, regado a Coca Light e suco de laranja. Sempre assim, mesmo que o filme seja insuportavelmente ruim. Dessa vez, não foi diferente. Saí da sessão com a nítida sensação de que havia visto mais do que um filme. Havia assistido algo que tinha a ver com a minha vida, e uma maneira específica de enxergar o mundo. Ainda emocionado, encarei meu filho Lucas e, com o dedo apontando ameaçadoramente contra seu peito, disparei:

— Lucas, não permita que seus olhos o enganem. O mundo é feito de ilusões, e a maior delas é a de que elas são obra apenas de nossa imaginação. A ilusão é a face oculta da realidade. Olhe para o simbolismo abrangente contido nesse filme. Não permita que os efeitos especiais ofusquem sua compreensão da verdade, verdade esta que se esconde por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Existe algo de Matrix aqui, nesta cafeteria. Existe algo de Matrix na sociedade em que vivemos, assim como dentro de você. Os meandros do seu inconsciente escondem porções que seriam violentas até mesmo para a sua inte­gridade. Tem certeza de que é realmente Coca-Cola o que você está bebendo?

Lucas me encarava com atenção, e certamente levou a sério o que eu estava di­zendo. Olhou para o meu dedo em seu peito e sorriu. Seu sorriso me dizia que também acreditava em uma forma outra de ver a realidade, apesar da sedução apresentada pela experiência cotidiana dos sentidos. Bebel sacou na hora. Olhou para o suco de laranja e fez cara de nojo. Voltou-se para mim, com a face ainda contorcida, e disse:

— Vou devolver esse suco, “paps”; está cheio de “bits e bytes”!

A possibilidade de analogias infinitas e criativas com o mundo que nos rodeia me pareceu fascinante desde o princípio. Entendi que o mundo, assim como em Ma­trix, é sustentado por uma arquitetura invisível, criada por nós mesmos, para nos fixar ao core system da sociedade, e consolidar os valores fundamentais sobre os quais nossa vida social se assenta. Somos tão somente seres guiados por forças incorpóreas e poderosas sem que nos apercebamos disso. Agimos socialmente tal qual marionetes, sustentadas por finos arames invisíveis ao olho desarmado. Ime­diatamente, inseri a obstetrícia contemporânea nesse cenário, e sobre essa ideia tracei os inevitáveis paralelos com o trabalho de Robbie E. Davis-Floyd, que incri­velmente não assistira Matrix.

“O que quer a Matrix?”, perguntaria em “A Pílula Vermelha” o articulista Read Mer­cer Schuchardt. “Ela quer manter a nós, humanos, escravizados pelas nossas ilu­sões, a principal das quais é a de que tecnologia não nos escraviza, e sim nos liberta.”

Percebi a existência de uma ultraestrutura que governa o atendimento às mulhe­res gestantes e que pretende conformá-las com o mundo como foi construído, para que obedeçam ao sistema sem contestá-lo. A gestação, com sua natural fra­gilidade, é o momento ideal para determinar a posição específica da mulher na sociedade, assim como ensiná-la (doutriná-la) sobre a forma como seu filho deve ser inserido na mesma. Apesar da presença de absurdos incontestes, equívocos inaceitáveis e crenças insustentáveis, a fé no sistema, e nos seus condutores, deve persistir. Olivier Clerc, pensador francês contemporâneo, alinha de forma muito curiosa a forma da medicina atual lidar com a realidade e suas interpreta­ções, pareando-a com a religião e considerando-a a sucedânea desta no imaginá­rio social, no qual a “verdade” pode ser buscada através dos “clérigos modernos”, que parecem ter trocado a batina pelo jaleco. Diz-se de Santo Agostinho, padre dos padres, a frase “Credo quia absurdum” (creio por ser absurdo), e nisso colo­cava a força de sua fé. Parece que dos médicos solicita-se o mesmo tipo de vin­culação poderosa e pré-racional a um modelo religioso e mítico, porque essa liga­ção é fundamental para a manutenção do sistema.

No que tange à obstetrícia e ao nascimento humano, hoje em dia o sistema mito­lógico, etiocêntrico, iatrocêntrico e hospitalocêntrico da medicina ocidental nos pede que acreditemos que as mulheres são incompetentes para gerar e parir seus filhos, mesmo que nos demonstrem diuturnamente sua capacidade e talento. A epidemia de cesarianas e, modernamente, as terapias de reposição hormonal, a ideologia da ablação menstrual e a proliferação de clínicas de fertilização artificial são demonstrações claras de uma visão específica da sociedade sobre o feminino e a mulher. Essas manifestações e fenômenos sociais ganham sentido contempo­raneamente porque nos levam diretamente ao âmago do sistema de valores de nossa sociedade, que se ergue em nome do patriarcado e do capitalismo, através de um modelo cartesiano de percepção da realidade. No sistema patriarcal, não há lugar para mulheres poderosas e livres. Elas devem acreditar — como os ha­bitantes da Matrix — que o lugar onde estão (o sistema de valores que as consi­dera subcidadãs) é o melhor para elas. Esse modelo é o cimento básico que nos une. Temos medo de perder o controle sobre tudo o que construímos enquanto humanidade. Uma sociedade baseada na igualdade nos amedronta.

Em um mundo que dissemina a inferioridade básica das mulheres, é necessário que elas mesmas sejam convencidas dessa realidade, assim como é necessário que o pobre se convença de que sua pobreza é obra do destino ou de sua etnia, para que o mesmo não confronte o sistema distribuidor de riquezas. Toda a cons­trução da obstetrícia contemporânea se assenta sobre a crença básica da defecti­vidade essencial das mulheres porque, baseada nesse modelo, a medicina obsté­trica poderia construir as ferramentas e tecnologias adequadas para consertar esta “máquina”, agora entendida como equivocada e defeituosa, como bem nos revelou Robbie Davis-Floyd. Mas essa visão sobre o parto não se estabelece em um vácuo conceitual. Outros acontecimentos exclusivamente femininos como a menstruação — chamada por alguns de “sangria inútil” — e a menopausa são exemplos claros de eventos fisiológicos tratados pela ciência médica como patolo­gias. Minha pergunta aos colegas na época era: que evento fisiológico masculino merece um tratamento pela medicina contemporânea?

Recebia apenas sorrisos como respostas. A verdade é que o homem não neces­sita ser tratado em sua normalidade funcional, porque ele é o espelho de Deus. Ele traz consigo a perfeição Divina in essentia. O contrário acontece com a mu­lher. Culpada, entre outros crimes, pelo “pecado original”, foi punida pelo Senhor com a pena dos partos dolorosos e do sangramento mensal. Mulheres são a falha, o desajuste e o equívoco da criação. Henci Goer, educadora perinatal americana e ativista do CIMS – Coalizão para a Melhoria dos Serviços de Maternidade fala que a medicina trata como disfuncional tudo aquilo que foge ao padrão. O parto foge dos padrões da normalidade porque não ocorre nos homens.

Levando mais adiante nossa ideia, mais do que acreditar na sua defectividade, faz-se mister que as próprias mulheres disseminem essa crença. Iniciando esse processo, é fundamental que elas sejam doutrinadas desde o berço com a ideia de que uma mulher tem uma incompetência básica inata, que faz com que qual­quer uma de suas decisões tenha que passar, em última instância, pela ordem do masculino. O parto, momento apical da feminilidade, é o momento ideal para que essas crenças sejam reforçadas e disseminadas. Ali podemos encontrar todos os valores sociais profundos encenados de forma sutil, mas poderosa. A natural abertura sensorial determinada pelo evento nos propicia a possibilidade de instruir as mulheres e seus filhos nas posições específicas que desejamos que ocupem na estrutura social. Por essa razão, o estudo da simbologia representada no nas­cimento nos leva ao cerne dos valores mais profundos que estruturam nossa civili­zação.

Olhar para esse cenário de fora da Matrix é angustiante. Uma tortura. Em Matrix, diante da verdade revelada a Neo por Morpheus, este inicialmente negou. Depois vomitou. Desperto do sono tecnocrático, não queria acreditar no que via. Não su­portou a confrontação da imagem que nutria da humanidade com a dura realidade que seu libertador lhe apresentou. Teve náusea, fruto da impotência diante de um sistema muito maior do que ele próprio. Sentiu-se fraco e desesperançado.

As pessoas que se defrontam com essa nova forma de encarar a realidade na medicina (assim como em outras áreas do conhecimento) acabam sofrendo o mesmo processo pelo qual Neo (de “novo”, mas também um anagrama de “one”, o “um”, ou mesmo “éon”, energia emanada de um ser supremo) passou ao ser res­gatado da fantasia da Matrix. Dor, sofrimento, negação, angústia, tristeza, re­morso, vergonha. Descobrem também que é necessário passar por um ritual de despojamento das falsas certezas e do orgulho rastejante para, assim renovadas, serem verdadeiramente leais com sua própria existência. Lembram que nosso he­rói fica nu ao ser desplugado? Parece mesmo a nudez de São Francisco de Assis no filme Irmão Sol, Irmã Lua, quando este abre mão de seus valores — dinheiro, roupas, crenças — para adentrar uma vida de desapego aos valores mundanos.

Não existem orgulhosos no céu.

A leitura do artigo de Robbie, que se transformou em um maravilhoso capítulo do seu livro Birth as an American Rite of Passage, me deu a exata dimensão de mi­nha arrogância e da minha estupidez, mas ao mesmo tempo me deu a esperança de que apenas através do reconhecimento de nossas próprias fragilidades é que podemos nos fortalecer. “Toda a vitória se ergue dos escombros de uma derrota”, como sempre me dizia Max. Toda relação pessoal se instaura sobre um fracasso egoico. Toda esperança se cria quando reconhecemos nossas fraquezas. Neo percebeu sua vocação libertária ao se defrontar com sua infinita pequenez e insig­nificância, mas para isso foi necessário despertar no “campo de cultivo”, as plan­tações em que a humanidade era usada como “energia barata” pelas máquinas.

Matrix está aí fora, criando nas mulheres a ideia de que, se elas se submeterem aos ditames que “sempre existiram” e que “incontestavelmente são os verdadei­ros” (em outras palavras, a “realidade expressa”, o roteiro que se aplica sobre as marcas do real), elas estarão seguras para todo o sempre. A Matrix quer fazer acreditar que sem as máquinas (tecnologia/masculino/instituição) nenhuma mulher pode arcar com suas aptidões biológicas. A Matrix não admite que o poder seja repartido ou que a fraternidade seja um modelo factível de relação entre as pes­soas. A Matrix nos diz que a estrutura básica deste mundo não pode ser mudada, sob pena de que esse mesmo mundo venha a ruir.

Ao acordar no mundo real, Neo foi avisado por Morpheus de que a dor que sentia nos olhos se devia ao fato de que nunca anteriormente havia enxergado. Ao ne­garmos a oportunidade de vislumbrar a dura realidade de um sistema de crenças centrado no poder dos que dominam a tecnologia, sucedânea contemporânea da religião, ficamos também cegos às verdades outras que surgem da própria experi­ência feminina com o nascimento. Disse-lhe também que pessoas mais velhas — e talvez aqui “velho” não esteja necessariamente ligado à idade cronológica — dificilmente eram libertadas da Matrix, porque o resultado era invariavelmente ruim.

Algumas crenças ficam tão impregnadas que não esvaecem jamais. Neo, em Ma­trix, escondia seus programas piratas em um livro que retirou da estante. Nesse livro, além de vários discos, havia um maço de notas, mostrando um aspecto mer­cantilista do personagem; era, provavelmente, o combustível para que ele pu­desse subsistir na Matrix. O nome desse livro é Simulacra and Simulation, de Jean Baudrillard. Nele Baudrillard apresenta as teses fundamentais do pós-moder­nismo. A ideia básica é de que o mundo real não mais existe, permanecendo entre nós apenas o seu simulacro. Após a criação da linguagem, o “mundo real” deixou de ser possível, como nos ensinou Lacan, sobrevivendo apenas a sua versão, construída por nós. O parto real não mais existe, apenas a variante que criamos dele, construída pela medicina ocidental contemporânea.

Remontando-nos a outro filme, O Sentido da Vida, no capítulo “O Milagre do Nas­cimento”, os comediantes ingleses do Monty Python nos mostram uma cena de nascimento hospitalar contemporâneo, em que aparece como estrela principal não a mulher parindo, mas a máquina que faz “ping”. Indagados pela angustiada paci­ente do que se tratava tal máquina, explicam, orgulhosos, que essa tecnologia era a que “poderia dizer se o bebê ainda estava vivo”. No caso, era a tecnologia quem ditava as percepções maternas, como na famosa imagem apresentada por Robbie em uma de suas palestras, na qual uma mulher observa o monitor fetal acredi­tando que os batimentos cardíacos que ela escuta são verdadeiramente produzi­dos pela máquina, e não pelo seu bebê. A verdade subjugada pela sua interpreta­ção.

O Dr. Marsden Wagner, da OMS e ativista da humanização do nascimento (que para a minha trajetória funcionou como Morpheus para Neo), costuma contar a história de que, falando para médicos em grandes audiências, solicitava: “Ergam o braço quem dentre vocês já acompanhou um parto domiciliar”. A reação era inva­riavelmente a mesma: em uma plateia de 400 médicos, nenhuma mão se erguia. Aqui aparece a face pós-moderna mais dolorosa da medicina: perdemos total­mente o contato com a realidade do nascimento. Perdemos seu odor, seu clima, sua temperatura e gosto. Nós, médicos, só conhecemos a sua representação, seu simulacro, sua imagem refletida na parede da tecnocracia. Continuando o raciocí­nio do articulista Dino Felluga, no seu artigo Matrix: Paradigma do Pós-Moder­nismo ou pretensão intelectual?, “fizemos um roteiro tão assemelhado com a ver­dade que aquele se justapôs a esta. Hoje em dia, a realidade é que se desfaz por entre as linhas riscadas do mapa”. Mentimos o parto, falseando a natureza.

Minha mais agradável fantasia é imaginar The Farm, no Tennessee, a comuni­dade pós-hippie onde trabalha e mora a parteira Ina May Gaskin, como a Zion de verdade, onde o nascimento pode ser tratado despido das múltiplas capas que o aprisionam no mundo tecnológico. Nesse “laboratório” de afeto e sexualidade apli­cada ao nascimento, já ocorreram mais de 2000 nascimentos desde os anos 70, e a taxa de intervenção é baixíssima (índice de cesarianas de 1,4%), com resultados maternos e neonatais superiores aos melhores centros tecnológicos do mundo. Por que a obstetrícia contemporânea desvia seu olhar desse tipo de realidade? Por mais que continuemos em uma realidade artificial criada pela cultura, como disse Morpheus, “um mundo que foi colocado em frente aos seus olhos para cegá-lo da verdade”, o mundo real continua existindo como “farpa na sua mente que o faz enlouquecer”, demonstrando, através da inquietude, da indignação surda e da inconformidade, a possibilidade de questionar as ideologias dominantes. A sexua­lidade viva que emana de uma mulher parindo, ou a ideia de uma “Xanadu” pós-moderna, em que o parto poderia ser vivido como um processo de empodera­mento feminino e em estado de graça, funcionam como as mais doloridas farpas com que convivo.

Por outro lado, quais as estratégias de mudança no modelo vigente? Como con­vencer os médicos a modificar suas condutas, direcionando-os para uma postura profissional embasada em evidências e centrada nas necessidades de suas paci­entes? Além disso, como se comporta um sistema que se ergue sobre um modelo cartesiano, positivista, capitalista e patriarcal e que coloca um profissional, invaria­velmente mal pago e pressionado por resultados, como seu “ponta de lança”? Tentemos fazer esse médico mudar sua conduta profissional, mostrando que suas atitudes médicas, mesmo que aceitas por seus pares, arriscam a vida de suas pa­cientes e bebês, e ele lhe dirá que, no atual contexto médico e jurídico, apenas os que defendem o parto humanizado e a medicina baseada em evidências é que são condenados.

A realidade do dia a dia nos demonstra que os médicos são também vítimas desse paradigma, criado por todos nós. Nesse modelo, baseado no medo ances­tral da confrontação com o desconhecido, somos levados a criar sistemas de crenças e rituais que nos oferecem a ilusória ideia de controle sobre a natureza. Sobre essas crenças, passamos um fino verniz de intelecto, para que elas fiquem justificadas perante nossa visão racionalista, como nos fala Olivier Clerk. Médicos confrontados com o nascimento humano sentem medo porque esse evento foge ao seu controle, tal qual a erupção de um vulcão desobedece nossas vontades. A forma ritualística de realizar procedimentos obstétricos padronizados produz um senso de ordem cultural que se impõe sobre o caos da natureza, o que nos produz alívio, assim nos falava Robbie Davis-Floyd em Birth as an American Rite of Pas­sage.

Nosso sistema de saúde é completamente aderido à Matrix. Somos governados por um modelo de crenças tecnológico, naquilo que se chama modernamente de “infotecnocracia”, que é a “ideologia que coloca em posição de poder aqueles que controlam a tecnologia e a informação” conforme a definição do antropólogo ame­ricano Peter Reynolds. Ela se comporta como o “sistema operacional” da Matrix contemporânea ocidental. Basta olhar ao redor e perceber isso no nosso quotidi­ano. Mesmo que a biblioteca Cochrane e a OMS despejem toneladas de informa­ção a respeito da forma segura — e barata — de tratar as mulheres, grávidas e puérperas, continuamos atrelados ao sistema mitológico em que fomos inseridos, porque o modelo obedece às premissas básicas desse sistema de crenças. É o que chamaríamos de “mapa” ou “roteiro” do parto, o que Baudrillard chama de “segunda ordem da simulação”, em que o simulacro mascara a realidade. O parto tecnocrático como o conhecemos é uma alegoria do que é em verdade, e só a confrontação com o fenômeno na natureza é que poderia nos livrar do engodo da simulação.

Muitos anos depois, Madalena me ofereceria essa confrontação, permitindo-me a possibilidade de ver outra realidade. Usando a metáfora de Marsden Wagner em Fish Can’t See Water, a experiência com o parto desmedicalizado, fora do con­texto da tecnocracia, seria o salto para além da superfície do oceano, que permiti­ria ao peixe perceber a água em que esteve sempre envolvido. “Fora da infotecnocracia não há salvação”, diz o apologista da tecnologia aplicada ao nascimento humano (e que, obviamente, lucra com ela). Não conseguimos, a não ser com uma quantidade enorme de esforço e sofrimento, nos desvencilhar disso, porque os que se atrevem a sair da Matrix tecnocrática são vistos como he­réticos e perigosos. Em grego, “hairetikós” significa “aquele que escolhe”. Ter a possibilidade libertária de escolher nos torna hereges e, portanto, suscetíveis de perseguições. Curioso, apesar de trágico, é perceber que frequentemente, como Cristo ou Neo, os hereges são apedrejados exatamente por aqueles a quem ten­tam libertar!

“Tudo se resume a escolhas”, disse Neo ao Arquiteto. Escolher. Decidir seu des­tino. Fazer caminhos com suas próprias pernas. Nada mais revolucionário, peri­goso e… herético. Apenas para citar uma ritualística ainda firmemente incorporada à prática médica, temos a episiotomia rotineira realizada nos hospitais de nosso país. Nessa ques­tão específica, o bem-estar ou segurança da paciente não é o fator que mais se considera ao se traçarem protocolos. Se fosse assim, bastaria ler artigos, estudar prós e contras, e tudo se resolveria. Convenientemente, não faríamos uma cirurgia mutilatória que nunca conseguiu provar sua validade como procedimento de ro­tina. Dessa forma, a episiotomia seria realizada de forma ética e em um número muito reduzido de casos.

Não é o que acontece. Diante das evidências contra a sua realização de rotina, que se acumulam há mais de duas décadas, é muito difícil entender porque essa cirurgia é feita em até 95% dos partos no meu país, quando deveria ser feita em menos de 10%. Sem uma explicação de caráter médico, e não caindo na ingênua armadilha do “hábito”, é fundamental entender em que espaço de discussão — técnico, sociológico, psicológico, antropológico — ela pode ser inserida. Robbie, mais uma vez, mostrou-nos o caminho para a compreensão dos rituais que se de­senvolvem nos ambientes hospitalares em se tratando do nascimento humano. Existem inúmeros fatores que nos impulsionam a realizar procedimentos médicos: o mais poderoso de todos é a ritualística. É importante salientar que os procedi­mentos ritualísticos podem ser (e frequentemente o são) ao mesmo tempo simbó­licos e operacionais. Isso quer dizer que o fato de uma episiotomia ter uma expli­cação médica (mesmo que falsa) como proteger a vagina de lacerações e fragi­lidades do assoalho pélvico — não impede que ela seja realizada com um pode­roso conteúdo simbólico.

Fazemos episiotomias ritualisticamente. Também vestimos branco, usamos um jargão hermético, fazemos tricotomias e enteroclismas de forma ritual. O ritual existe no comportamento humano para conformar a realidade a um padrão racio­nal e fenomenológico previamente reconhecido. Realizamos isso no nosso dia a dia, e fazemos isso desde que o mundo é mundo, e desde que temos medo do caótico e do incerto. Essa é a razão básica pela qual lançamos mão de rituais sempre que nos deparamos com a incerteza dos fenômenos naturais. Todos estes são fenômenos dominados por uma instância superior à nossa cons­ciência, mesmo que, nos dias atuais, já tenhamos desvendado alguns segredos que estavam escondidos da nossa razão. Ainda vemos a natureza com medo e assombro. Mesmo assim, a essência desses acontecimentos continua submersa em um oceano de mistérios. Para fugir do pânico que nos assola ao olhar para a face lívida do desconhecido, criamos rituais, que tentam fazer com que esses eventos se ajustem aos nossos padrões de compreensão racional. Assim sendo, acreditamos sinceramente que o sacrifício dos carneiros poderia satisfazer a sede de vingança das tormentas e pensamos que rezar uma “Ave Maria” exatas 75 ve­zes vai fazer nosso time fazer um gol nos últimos cinco minutos da partida.

Da mesma maneira com que afugentamos nosso medo através do recurso da ritu­alística, aplicamos esse fingimento (inconsciente) na nossa arte de curar. Quando falamos de episiotomia, e da complexa ritualística hospitalar, é impossível não entender esses eventos como algo que faça parte de uma grande engrenagem, que visa a perpetuar um sistema de crenças e impedir que outras formas de com­preensão sejam estimuladas. Como visto acima, episiotomias, enemas, afasta­mento da família, roupas de CO, etc. são procedimentos que visam a nos trazer a ilusória sensação de controle sobre os fenômenos da natureza, e a ritualística aplicada tem a intenção de colocar em posição de destaque os profissionais que detêm o poder da técnica e da informação. Essas condutas automáticas e irrefleti­das ilusoriamente parecem modificar o rumo caótico (porque fora do nosso con­trole) do nascimento. Mesmo que as pesquisas demonstrem que não existe liga­ção alguma entre episiotomia e melhora das condições fetais e/ou maternas, a prática médica contemporânea a perpetua de forma ritual, mística, repetitiva e pa­dronizada, e com conteúdo simbólico subjacente. Nada poderia se encaixar me­lhor no conceito de rito.

Parece que a evidência científica, por si só, não produz quase nenhuma modifica­ção importante no nosso comportamento clínico. Esse foi o ponto de partida para a minha inquietude em relação à mitologia e à ritualística em obstetrícia. Percebi claramente que existem fatores muito mais poderosos para o controle dos proce­dimentos médicos do que aquilo que a racionalidade científica nos pode trazer. O ritual é um sistema pré-racional, portanto ligado ao desejo, e por essa razão é tão poderoso e pleno de vigor, mesmo em uma civilização pretensamente “racional”. Por outro lado, é fundamental que tenhamos em mente que os rituais não são es­colhidos aleatoriamente. Sua criação pressupõe a valorização e a perpetuação de valores profundos e ancestrais na nossa cultura.

O médico mantém e reproduz um sistema de valores que o sustenta como figura preponderante na sociedade e que cultiva os valores básicos de uma cultura tec­nocrática, mitológica, consumista, patriarcal e individualista. Médicos também são guardiões de um sistema de crenças que sustenta o mundo em que vivemos. A ritualística envolvida no parto serve aos interesses profundos dos profissionais da medicina, porque cria a ideia de uma necessidade que só pode ser sanada por quem detém um específico saber. Assim empoderados, os médicos tentam de to­das as formas manter uma situação em que se estabeleça a indissolubilidade en­tre o parto e essa tecnologia, por eles dominada. Agem inconscientemente assim, assegurando sua posição e importância social enquanto mantêm o sistema que os sustenta. O parto, que deveria ser um processo de profundo empoderamento fe­minino, acaba se tornando, na maioria das vezes, em um processo de fortaleci­mento dos médicos, das instituições e dos valores tradicionais, mantendo a mulher e o feminino em uma posição inferior e subalterna.

A mulher, relegada a uma posição de passividade e alienação, acaba sofrendo mais tarde, muitas vezes de forma obscura e inconsciente, o resultado dessas in­terferências, através de múltiplas formas: depressões pós-parto, morbidade au­mentada pelas ritualísticas excessivas (doenças, mortes, limitações), mágoas di­fusas, dificuldades na sexualidade, etc. Além disso, enquanto entendermos o con­trole da tecnologia como o zênite do proceder médico, estaremos hipervalorizando no profissional detentor desse poder/saber apenas uma qualidade específica, co­locando em um patamar secundário aquilo que é a alma do ofício médico, qual seja, o contato e o vínculo com os pacientes. Insistentemente, escutamos o atabaque da mídia insuflando em todos nós, habi­tantes da Matrix, a importância do uso de tecnologia aplicada à saúde. As notícias seguem sempre um mesmo roteiro previsível, em que as “novas tecnologias” no combate aos males são sempre as grandes heroínas, mesmo que o impacto des­sas descobertas no grande cenário da saúde mundial seja normalmente pífio. As­sim, ocorreu com a monitorização eletrônica fetal, as ultrassonografias e mesmo a própria internação hospitalar, que nunca comprovou ser superior ao parto domici­liar para as pacientes de baixo risco. Apesar de todas as confirmações científicas dessas realidades, o uso sem limite da tecnologia continua associado à questão da segurança.

“Segurança é a máscara que encobre uma verdade que subjaz: a questão do po­der”, já nos alertava Robbie Davis-Floyd. Enquanto não aplicarmos nosso criti­cismo mais intenso para modificar a forma como enxergamos o nascimento, va­mos continuar a observar o parto de uma criança como algo “feito” pelas institui­ções e corporações, e em seu próprio benefício, em vez de vermos o nascimento humano na graça e magnitude que ele contém. Continuaremos acreditando que a tecnologia desmedida pode propiciar segurança, quando ocorre exatamente o contrário. Hoje em dia, não existe muita dúvida a respeito da necessidade de cui­dados com o nascimento, e poucos se aventuram a defender a completa desas­sistência ao parto. Entretanto, a tecnologia aplicada ao parto apresenta resultados positivos até determinado ponto; a partir daí, o acréscimo de tecnologia faz ape­nas crescerem estratosfericamente os custos e aumentar a morbi-mortalidade materna e neonatal, segundo inúmeros estudos, incluindo aí o da Dra Daphne Rattner. Isso acontece tipicamente com os Estados Unidos, que aplicam esse mo­delo tecnocrático à saúde como nenhum outro país e amargam péssimos resulta­dos de saúde perinatal.

Em uma visão pessimista, misturando George Orwell com Jean Baudrillard, em um futuro possível as mulheres já não parirão seus filhos: eles serão produzidos nas chocadeiras imensas da Matrix. Lá se configurará o apogeu das tecnologias de separação, cortando definitivamente a ligação visceral de mães e filhos, já apregoada por alguns arautos dos novos tempos. Será a “Quarta Ordem do Si­mulacro” de Baudrillard, em que a simulação se torna absolutamente despregada da realidade, não guardando com ela nenhuma relação residual. A pergunta que não queria calar em minhas angustiantes divagações — como Neo, magnetizado pela palavra “Matrix” na tela do seu computador — era: por que é preciso “consertar” mulheres que estão tendo seus filhos? Seriam estes proce­dimentos ritualísticos, realizados pelos médicos nos centros obstétricos, uma es­pécie de batismo, atitudes carregadas de simbolismo que visam a conformar os indivíduos a uma determinada função social? Serei eu um “tecnobispo” a batizar todas as mulheres para adentrarem o mundo da maternidade?”

Depois de algum tempo praticando a obstetrícia, compreendi que jamais realizara qualquer dos inúmeros procedimentos ritualísticos hospitalares também chamados de “rotinas”, por serem comprovadamente necessários, ou porque acreditava nos seus benefícios. Jamais havia embasado essas condutas em evidências claras de sua adequação. Agia tal qual um autômato, governado externamente por um sis­tema invisível, e por isso mesmo muito maior e poderoso. Esse comportamento estereotipado e previsível não era sequer culpa do meu pobre professor de obste­trícia. Ele também estava adormecido, aquecido e nutrido pelo sangue que vinha do coração da Matrix, e só repetira para mim o que lhe fora ensinado. Estava à mercê do sistema, e seus músculos estavam atrofiados demais para que pudesse se movimentar. Eu agia daquela forma, afastando, invadindo, cortando, costu­rando e separando, porque assim a Matrix me dizia para agir; era levado a acre­ditar que as mulheres jamais poderiam parir (ou adentrar a maturidade social) sem que um homem (ou alguém representando o patriarcado) a autorizasse, através das “marcas” no corpo e na alma, estabelecendo um triste paralelo com o simbo­lismo da clitoridectomia, em outra cultura igualmente patriarcal e violenta.

Em Matrix, o filme, estamos todos representados em muitos dos personagens, basta decidir em que parte do filme. Podemos ser o alienado, que nada desconfia das forças poderosas que nos fazem acreditar na tecnologia como uma deusa to­tipotencial, que “enfim vai nos redimir” da nossa impureza e imperfeição. Podemos ser como as pessoas que vão para o trabalho e sentem que existe al­guma coisa estranha no ar, mas não sabem o quê, porque não pararam para pen­sar suficientemente no fato de existirem hospitais com 80% de cesarianas ou que os 5% mais ricos da população do país detêm 50% da sua riqueza. Podemos ser também como o Neo “pobre-coitado”, que vomita, chora, sofre ao ver como o mundo (interno e externo) não é exatamente como pensava ou fanta­siava. Somos muito mais imperfeitos e incompletos do que nossa infinita condes­cendência nos permite enxergar.

Por outro lado, podemos ser o Neo que percebeu que esse mundo feio é o único de verdade que temos, e que é na realidade dolorosa — e só ali — que as modifi­cações podem se processar. Esse Neo que enfrenta os inimigos — internos e ex­ternos — e que percebeu que a luta contra a opressão e a injustiça é o único des­tino daqueles que tiveram a oportunidade de enxergar mais além. Mais cedo ou mais tarde, a vida dentro da Matrix se torna insuportável, pois é da natureza hu­mana o destino de expandir-se. Liberdade é a nossa meta última. Um mundo em que prevaleça a dignidade, o respeito, a cidadania e em que as mulheres sejam vistas com igualdade, princi­palmente no momento mágico e sublime de terem seus filhos é nosso objetivo maior, e para isso qualquer sofrimento vale a pena.

Até mesmo a injustiça.

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Memórias do Homem de Vidro – 04

O Homem de Vidro

O sangue ainda estava no chão, colorindo de vermelho o piso da sala de emer­gência. O ar carregado retinha o cheiro, entre adocicado e acre, que invadia mi­nhas narinas. A lâmina muda jazia nos panos abertos, mas, ainda limpa e relu­zente, espelhava minha estupefação. Os azulejos da parede refletiam minha face atordoada e desconcertada. A força e a dramaticidade dessa cena se repetiriam muitos anos depois, e com a mesma intensidade, na casa de Madalena, mas na­quele exato instante eu era apenas um personagem passivo dos acontecimentos. Quase nada havia entendido do que ocorrera e, no entanto, esse momento mar­cou de forma indelével o resto da minha vida. Uma ferida emocional, ardente e corrosiva, que apenas estava começando a doer. Eu me encontrava na ilusória quietude do núcleo do furacão. Mal sabia aonde essa tormenta iria me levar.

Ainda escutei, vindo da dobra do corredor, o som das rodas mal azeitadas que conduziam a mulher para a sala de observação. A cena caótica escondia um mis­tério, mas ainda era cedo para decifrá-lo. As luzes da sala aumentavam minha confusão. Não escuto há tempo o choro do bebê. Foi levado para longe do cálido olhar de sua mãe, e talvez já esteja recebendo o tratamento de rotina. Olho para o lado, à procura de uma pista. Vejo os estudantes ainda conversando. Vejo risos nas suas faces, enquanto a minha permanece contraída. Por que eu estou me sentindo tão mal? Por que me tortura a impressão de que eu não entendi direito? Por que parece que alguma coisa está faltando? Saio da sala tentando parecer normal. Se eu pudesse pelo menos entender a sequência de eventos… Por que as coisas não saíram como deveriam? Por que parece ter sido tão diferente? Sinto-me irritado, aborrecido, mais pela falta de compreensão do que por qualquer outra coisa. Por quê? Não me havia sido ensinado que um parto em que a mãe e a cri­ança estão bem é o desiderato supremo do bom atendimento obstétrico? Então por qual razão me sinto tão mal?

Em mim a “farpa na mente” doía. Uma inquietude, uma insatisfação. A dukka dos budistas. Mas ainda era muito cedo para entender a metáfora de Matrix. Tento lembrar de tudo o que aconteceu. Talvez se eu pensar em cada fato, cada detalhe, cada movimento, eu descubra a pista que me falta; a coluna que sustenta o meu mal-estar. Caminho de volta à sala dos médicos com a esperança de que com o tempo isso passe. Talvez se eu me concentrar no trabalho, ou na atenção às outras pacientes, eu consiga esquecer o desconforto que sinto.

Ou então, consiga lembrar…

Apelo para a memória. Os eventos do dia não pareciam trazer nada de significa­tivo. Apenas mais um plantão como residente de primeiro ano. O que poderia ter havido? Meu plantão começara da forma usual. Cheguei ao hospital e conversei com os colegas de cara amassada que estavam se despedindo. Tomei meu café no re­feitório do hospital e subi ao centro obstétrico para a passagem de plantão. Nada diferente dos demais dias do ano, a não ser o fato de que o centro obstétrico es­tava vazio. A noite havia sido movimentada, e não havia mais pacientes para atender. Estávamos em um sábado de maio, 1986.

As horas passavam sem que nada ocorresse para modificar a cor do nosso dia. Tentei recordar uma piada. Uma coisa com advogados. Não lembrei, mas me sur­preendi rindo morfeticamente da última que acabaram de me contar. Plantões são assim: a gente se acostuma com os extremos da atividade. O excesso, a falta de leitos, o ritmo frenético de enfermeiras, doutorandos e pacientes. Tensão, agressi­vidade e ansiedade. Ou então o tédio das salas vazias e dos leitos arrumados. Nessas circunstâncias, o que resta a fazer? Histórias, fofocas, bate-papos e gra­cejos. Piadas interminavelmente concatenadas. Ritmos temáticos: o de hoje era o dos advogados. Um amontoado de médicos e aspirantes a tal espremia-se em uma pequena saleta no coração do hospital. No canto da sala gritava um telefone interno, trazendo resultados de exames e pedidos de informações sobre pacien­tes. Na nossa frente, um quadro negro mostrava graficamente a presença das pa­cientes e o progresso dos trabalhos de parto. Hoje o quadro estava vazio. Há quanto tempo eu já estava ali? Tento fazer mentalmente a conta: três, quatro ho­ras? Estaria chovendo? Lembro-me do espanto com que ficava ao ver pessoas com guarda-chuvas pingando na recepção e lembrava que, quando havia chegado ao hospital, o sol brilhava lá fora. Coisas da reclusão. Do outro lado da sala, um cinzeiro repleto repousava debaixo de um cartaz “Proibido Fumar”. Em um hospi­tal, médicos não obedecem às regras; eles as criam. Estão acima delas.

E o cheiro? Um centro obstétrico tem um cheiro. Já vi prisioneiros descrevendo o odor das cadeias. Nos antigos hospitais do século XVII, o cheiro das carnes de­compostas dos pacientes enclausurados podia ser sentido a quilômetros de dis­tância. Quando estudante, trabalhei durante muitos anos em uma enfermaria de doentes renais, e o odor das diálises nunca saiu das minhas narinas. Também já vi amigos descrevendo o cheiro característico de uma cidade. Mas centros obsté­tricos também têm cheiro. Depois de alguns anos dentro de um, você aprende a reconhecê-lo. Uma mistura de líquido amniótico, odores corporais, suor; o hálito carregado pelo jejum imposto às pacientes, o material esterilizado. Um odor ado­cicado. Não é ruim, é peculiar.

Os sons e ruídos também são característicos. Os sussurros, os gemidos, os la­mentos. A emoção pelo nascimento. As lágrimas silenciosas das mulheres, como que envergonhadas por estarem tão felizes. Os gritos da equipe médica condu­zindo os esforços expulsivos das quase-mães. Agora, mãezinha, força comprida! Não pare, não pare!” O telefone tocando. “Não, não nasceu ainda, mas deve ser daqui a pouco. Acredite, está tudo bem. Não, não podemos informar o sexo por telefone; ordens superiores. Ela está sim, mas está ocupada fazendo um parto, ligue mais tarde.”

E quem é o pessoal que trabalha com o nascimento humano nos hospitais univer­sitários? Nossa equipe era normalmente composta de dois R2 (residentes gradua­dos de segundo ano) e dois R1 (residentes de primeiro ano, recém-formados) que naquele dia éramos eu e meu colega. Além disso, tínhamos doutorandos (alunos no estágio de 6º ano) e estudantes de medicina e enfermagem. Muitos desses doutorandos e estudantes não tinham o menor pudor em dizer que não suporta­vam obstetrícia, e que estavam ali apenas para cumprir seu estágio. Outros se esforçavam para trabalhar bem aos olhos dos residentes, porque isso poderia au­xiliá-los quando fosse feita a seleção de novos residentes para o próximo ano. De qualquer maneira, a fauna obstétrica era heterogênea e diversificada.

De quando em vez ouviam-se gritos na recepção. Maridos exaltados exigiam que suas esposas fossem internadas. Explicavam que moravam longe e que não po­diam ficar indo e voltando toda hora. Gritavam, ameaçavam. Ao lado, procurando ficar alheias à agressividade exaltada, suas mulheres gemiam em voz baixa. A equipe esforçava-se para convencê-los de que ainda não era o momento de inter­nar, ou de que o hospital estava lotado. Ninguém aceita explicações nessa hora. O choque era, quase sempre, inevitável. Já presenciei cenas constrangedoras de pugilato na recepção de maternidades, mas a regra era de que as brigas ficavam apenas nas ameaças. A porta de en­trada era o ponto nevrálgico do CO. Ali o sistema era colocado à prova, e os com­batentes de primeira hora eram chamados à luta.

Muitas vezes me imaginei estar em uma espécie de aeroporto aguardando os mi­grantes. Às vezes os voos são muitos e deixam o saguão lotado. Hoje o dia era de calma. Mentalmente cantei uma música de Suely Costa e Cacaso, talvez prenun­ciando que a calma momentânea do hospital guardava um segredo e uma sur­presa.

Quando o mar tem mais seguedos
Não é quando é tempestade
Não é quando ele se agita
Quando o mar ter mais seguedos
É quando é…. calmaria.

O papo na sala de conforto médico continuava solto. Os resultados do futebol eram esmiuçados por experts. As falhas incríveis, as jogadas sensacionais. O juiz que teria errado. A escolha do estágio que ainda não foi feita. A namorada que não entende tantos plantões. O filho pequeno que tem saudades do pai. As dúvi­das quanto ao que fazer quando a residência acabar. E a insegurança, cruel, sor­rateira, dissimulada. O medo de errar. O medo de que percebam como tenho medo. O pânico de não saber, quando me perguntarem. A pesada máscara de um saber absoluto que não se suporta. Medo, muito medo.

Eu estava no primeiro ano da residência em ginecologia e obstetrícia, e Max, como gostava de ser chamado pelos amigos, costumava me dizer que um resi­dente era o mais perigoso dos médicos. Max era sempre exagerado e dramático. Nossa formação médica tem uma continuidade, que nos leva das aulas tipica­mente colegiais da faculdade de medicina, passando pelo estágio antes da gradu­ação, e continuando-se no trabalho como residente logo após a formatura. Para quem observa de fora, não existe uma clara e óbvia diferença entre os doutoran­dos e os médicos residentes. Usam as mesmas roupas, o mesmo linguajar, os mesmos maneirismos; são subalternos em suas equipes e tem a mesma face adolescente. Por essa razão, continuamos a nos sentir como estudantes mesmo depois de formados, ao mesmo tempo que sabemos conscientemente que não mais somos. Isso nos leva a uma prepotência reativa: lutamos contra a nossa in­segurança com a ferramenta da soberba.

Um residente sempre sabe tudo o que lhe perguntam. Não existe no seu discurso uma negativa. Um modelo que se ergue sobre a ideia de assimetria de saberes precisa estabelecer uma prática de dissimulação que reforce tal postura. Uma en­cenação constante e repetitiva de inequívoca superioridade; uma altivez criada pela magia de um conhecimento que imaginamos possuir. Na minha época, eram famosos os residentes “chutadores”: respondiam qualquer questão com certeza inabalável, que a muitos impressionava. Mais tarde, íamos aos livros para confir­mar e descobríamos que tudo não passava de encenação. Nessa época, criei com Maximilian uma prática de contar histórias fictícias sobre a origem das cirurgias, ao modo das contadas em O Século dos Cirurgiões, de Jurgen Thorwald, mas da maneira mais convincente e lógica possível. Dessa forma, por exemplo, a perine­oplastia, que é a plástica perineal realizada para auxiliar na incontinência urinária, foi em verdade criada no século XIX por um professor de cirurgia da universidade de Pádua chamado Giuseppe Perini (daí o nome do ato operatório), que criou a famosa operação de “levantamento da bexiga” porque sua mulher sofria dessa enfermidade após ter dado à luz a nada menos do que 20 filhos e ser obrigada a carregar sua “bexiga caída” em uma espécie de tipoia. Max contava essa história, que eu inventara durante uma cirurgia, com tanta propriedade e seriedade que muitos residentes realmente acreditaram nela. Nossos “causos” ficaram famosos entre os colegas, mas nos criavam alguns constrangimentos quando realmente queríamos falar a sério. Depois de uma resposta pronta e direta a uma pergunta formulada, alguns colegas nos olhavam com desconfiança, sem saber se era ver­dade ou apenas mais uma brincadeira.

E como se expressa um residente? Lembro de frequentar plantões de pronto-so­corro desde os primeiros anos de medicina. Em um deles, quando devia estar no segundo ano do curso, voltei-me para um paciente do setor de queimados e lhe perguntei um detalhe qualquer do seu tratamento. Ele prontamente me respondeu, mas o residente que me acompanhava observou: “Você já está falando como mé­dico. Parabéns!”. Por muitos anos, eu me perguntei o que ele queria dizer com isso, e porque eu mesmo notara algo de diferente na minha forma de falar. So­mente muito tempo depois, percebi que o que diferenciava um comentário normal de uma observação tipicamente médica em um hospital público era um pequeno detalhe chamado “arrogância”. Essa “particularidade” na minha entonação ficou marcada como o início de um discurso médico que eu tentaria modificar no trans­curso da minha vida profissional, tal qual um velho marinheiro que tenta se livrar da tatuagem de uma paixão fracassada de outrora. Confesso que fiz alguns pro­gressos, mas a noção de uma falsa superioridade essencial é como o sotaque do nosso idioma original, do qual nunca conseguimos nos libertar completamente.

Em um centro obstétrico, temos um dos choques mais evidentes entre cultura e natureza que nossa sociedade pode estabelecer. O momento crítico do nasci­mento é exposto ao julgamento da sociedade, e ali os valores que constituem a matriz do nosso sistema de crenças determinam os rumos que desejamos impri­mir. Nossa sociedade, diante da incerteza que esses eventos produzem, cria me­canismos de defesa para fazer com que eles se adaptem a padrões lógicos de compreensão. O mecanismo básico é o rito. O ser humano, na sua ancestral luta pela sobrevivência, acaba sempre estabelecendo estratégias adaptativas.

Como residente, acabei me acostumando a presenciar a ritualística hospitalar e obstétrica sem questionar suas razões ou me aprofundar em seus significados. Temos um comportamento padronizado e repetitivo. Aprendi a ter um modo de agir ritualístico, automático, irreflexivo nas minhas atitudes médicas, e fazer aquilo que se conforma com o que foi estabelecido pelas figuras mitológicas da nossa formação. Somos doutrinados, construídos e moldados a obedecer a um sistema que se autoperpetua pela repetição sistemática de valores que, primordialmente, são estranhos a nós. A objetualização dos pacientes, sua “coisificação”, a classifi­cação arbitrária em patologias — tudo isso nos é inusitado quando adentramos a faculdade de medicina. Essa é a razão principal do medo dos cadáveres que os estudantes expressam ao ingressar na escola médica. Não existe para eles um “corpo real”, feito de músculos, nervos, ossos e sangue. Os corpos são “natural­mente” dotados de vida, de alma, de erotismo. Essa compreensão lógica da vida acaba sendo derribada durante a formação médica, em que a metáfora principal que explica o funcionamento humano é a máquina, como bem disse Robbie Davis-Floyd, no seu artigo “Obstetric Training as a Rite of Passage”.

Perdemos o status de organismos, assumindo a condição maquinal, cujos técni­cos habilitados são os médicos, que com seu saber científico farão com que essas máquinas funcionem de forma “azeitada”, através da incorporação de tecnologia. Este é o modelo materialista, exógeno, cartesiano e positivista de nossa formação, mas o mais triste é que sequer entendemos isso como um modelo ou paradigma entre outros. Encaramos essa forma de proceder como “a correta”, estabelecendo com esse saber uma postura claramente mística e religiosa. Meras opiniões rece­bem status de dogma; suposições sem nenhum embasamento são vistas pelos estudantes como regras fundamentais para a atenção aos doentes. Nossa forma­ção é caracteristicamente verticalizada, em que o saber se transmite por tradição (o velho professor falando de “seu jeito” de atender e de sua experiência pessoal) da mesma forma como se dá o ensino das funções de cura nas sociedades an­cestrais, mas incrivelmente nos consideramos “cientistas”, enquanto eles são “primitivos”.

A organização hierárquica de um CO também funciona por um sistema de castas. No topo da pirâmide ficavam os professores, que quase nunca eram vistos du­rante os plantões. Funcionavam como uma instância de saber inquestionável, mas na prática inacessíveis. Em segundo lugar os contratados, médicos empregados do hospital para coordenar os plantões obstétricos, que acabavam se tornando os professores “de fato”. Normalmente, não tinham nenhuma afinidade com o ensino e alguns sequer tinham gosto pela obstetrícia. Limitavam-se a determinar condu­tas baseadas no “é assim que eu trato” ou “assim está no protocolo”. Esses médi­cos eram nossa principal referência profissional.

Abaixo dos contratados plantonistas estavam os residentes graduados, de se­gundo ou terceiro anos. Eles tinham mais autonomia. Coordenavam os partos, realizavam cesarianas, indicavam cirurgias no ambulatório, ensinavam residentes de primeiro ano e reproduziam a ritualística que lhes foi ensinada nos anos que passaram na escola médica. Normalmente, incorporavam os maneirismos, as ati­tudes e a postura dos seus professores. Tinham entre eles um assunto repetitivo: “o que vou fazer quando acabar a residência?”.

Eu me encontrava um pouco acima da base da pirâmide de poder médico. Estava há uns poucos meses na residência de ginecologia e obstetrícia do hospital da universidade. Era um “R1”. Os residentes iniciantes não podem acompanhar par­tos sozinhos, muito menos realizar cesarianas ou cirurgias ginecológicas. Fazem as internações obstétricas, atendem no ambulatório, avaliam as pacientes interna­das, prescrevem toneladas de relatórios e obedecem a ordens. Eu era, entretanto, um residente um pouco diferenciado dos demais. Antes de entrar na residência, havia trabalhado em hospitais de periferia como interno plantonista. Durante mui­tos anos, frequentei os mais diversos plantões de emergência e clínicas para pa­gar meus estudos na faculdade de medicina e sustentar a minha família. Fui apre­sentado à obstetrícia nesses plantões da época de estudante, e quando me formei já havia contabilizado mais de uma centena de partos assistidos. Isso era absolu­tamente incomum na minha época, porque a maioria dos meus colegas de obste­trícia se formou tendo visto apenas uma meia dúzia de nascimentos. Como resi­dente de primeiro ano, eu tinha mais experiência em partos do que boa parte dos R2 que deveriam me orientar, o que provocava um certo mal-estar entre eles.

Abaixo dos membros da hierarquia médica estava a enfermagem. Esta se dividia em cores. As enfermeiras tinham a sua cor específica no trajar, assim como as técnicas e as auxiliares. As enfermeiras eram sérias, um pouco prepotentes, e sempre se estabelecia um clima tenso nas conversas com elas. O fato de eu ser casado com uma me deixava mais à vontade, mas eu percebia que havia um “ranço” sempre que médicos e enfermeiras se encontravam para tratar de assun­tos de trabalho. Do ponto de vista do modelo de assistência, muito cedo percebi que a formação das enfermeiras era fundamentalmente a mesma que nós recebí­amos. Tanto elas quanto nós havíamos recebido um ensino fundado na tecnolo­gia, em uma visão cartesiana do paciente. Pouco espaço havia para as questões afetivas e sociais. A ideia (ou a esperança) de que as enfermeiras, por serem mu­lheres, poderiam expressar uma atitude mais feminina em relação ao nascimento logo se desfez nos primeiros contatos com elas. Elas pareciam amarradas na ca­misa-de-força da tecnocracia, que as obrigava a sufocar sua natural feminilidade. Assim também ocorria com as residentes mulheres, que eram frequentemente mais intervencionistas e agressivas nas suas condutas que os seus colegas ho­mens. Ser mulher não lhes garantia uma atitude feminina. Havia algo mais impor­tante que a feminilidade a guiar essas condutas. O que seria?

A quietude do plantão só era quebrada por mais uma gargalhada. Um telefonema de mulher perguntava por alguém que já se fora. Respondi que o plantão havia terminado às oito horas, e que ele havia saído. Desliguei o telefone e fui recrimi­nado de forma zombeteira por meus colegas. “Como você foi dizer isso? Podia ser a namorada ou a mulher dele! Você será o responsável por um divórcio!”. Risadas e comentários maldosos. Nada mais propenso a fofocas e maledicências diversas do que um plantão tedioso. Subitamente a ordem foi desfeita. Uma esbaforida auxiliar de enfermagem aden­trou a sala dos médicos gritando:

— Tem uma paciente que está tendo seu filho na sala de emergência! Por favor, alguém vai lá!

Um silêncio constrangido se formou, deixando gargalhadas congeladas no ar. Por um instante, tudo esperou. Olhei para os lados instintivamente e me dei conta de que naquele momento eu era o mais graduado na sala. Meu colega de residência devia estar avaliando pacientes internados nos andares cirúrgicos, e eu ficara dando cobertura para os partos e avaliações de emergência. Só havia doutoran­dos, estudantes de medicina e eu. Não restava dúvida: essa era uma tarefa que a mim cabia realizar. Ergui-me rapidamente do velho sofá surrado e corri em direção à entrada do cen­tro obstétrico, sem sequer perguntar em qual das duas salas de exames a paci­ente estava. Senti a auxiliar me seguir, mas corri mais do que ela e abri com vigor a porta da primeira sala de exames.

Nada. Nenhuma mulher. Nenhum som. A maca de exames vazia mostrava os len­çóis desgrenhados, mas ninguém estava ali. Dei dois passos para trás e abri a porta da outra sala de urgência, mas a minha surpresa se repetiu. Ninguém. Am­bas as salas estavam vazias.

Olhei para trás e encarei a auxiliar. Seria uma brincadeira? Seria um trote sem graça? Antes que eu pudesse reclamar ou dizer qualquer coisa, ela me avisou:

— Doutor, abra bem a porta da primeira sala. A paciente está lá.

Voltei à primeira sala e abri totalmente a porta de entrada. Foi só então que eu a vi.

Maximilian, muito depois, faria uma interpretação dessa cena. Disse-me que “a paciente precisava ser encontrada onde estava, e não onde você queria que ela estivesse”, numa referência a uma antiga música de Milton Nascimento. Apenas quando abri a porta até o final é que pude enxergar a paciente. Estava acocorada no canto oposto da pequena sala de admissão.

Era uma mulher com mais de 30 anos. Vestia-se de forma muito simples. A pele era escura e os longos cabelos eram presos atrás com um elástico. Olhava para o chão e parecia estar fazendo força. Corri em sua direção e lhe segurei o braço. Com um só movimento, afastei-lhe os joelhos e levantei o surrado vestido de chita. Baixei um pouco minha cabeça e então consegui ver os negros cabelos de um bebê brotando da vulva.

— Minha filha — gritei eu assustado. — Seu bebê vai nascer. Deite!

Meu grito para ela continha um sentido que eu não ainda conseguia perceber. A emergência do momento produzira a irreflexão da minha atitude, fazendo brotar das fissuras abertas do inconsciente um conteúdo ideológico profundo. Minha ex­clamação, e o que se seguiu a ela, foi a encenação de uma luta que se estabele­cia entre dois valores culturais.

Foi então que ela levantou a cabeça e a girou em minha direção. Pude ver-lhe a boca tesa, a face suada e os olhos negros. Ela me olhou, mas de uma forma como eu nunca havia sido encarado. Seu olhar trespassou meu corpo e chocou-se con­tra os azulejos da sala.

Ela me olhou como se eu fosse feito de vidro.

Nada fez. Não se moveu; não me obedeceu. Seu olhar, parado no infinito próximo da parede, parecia querer dizer algo. Mas o quê? Parecia nada escutar, nada en­tender, nada pensar. Para ela foi como se eu não estivesse ali.

Uma enfermeira abriu um pacote com campos esterilizados. Peguei um deles e coloquei próximo à vulva da mulher. Pedi uma luva, mas não havia nenhuma por perto.

Uma nova onda de contração tomou conta do seu corpo. Olhei novamente para a vagina e percebi a cabeça do bebê dilatando ainda mais o períneo. Ordenei que me trouxessem uma tesoura para realizar a obrigatória episiotomia, mas não houve tempo para isso. Ainda tive oportunidade de dizer-lhe: “Não faça força ainda. Espere!”

Inútil. Novamente ela não escutou minhas ordens. Mais uma força e… nasceu.

Minhas mãos despudoradamente nuas tocaram o calor úmido dos negros cabelos do bebê. Senti o visgo dos líquidos quentes molhando-me os dedos. Pela primeira vez, experimentei nas mãos a realidade crua de um nascimento. Essa sensação nova me trouxe um misto de assombro e medo.

Nasceu na contramão, atrapalhando o sábado, pensei. Desceu ao mundo cho­rando o menino, como eu sempre me habituara a ver, acreditando ser esta a única forma de chegar ao nosso convívio. Sua mãe, acocorada à minha frente, reclinou a cabeça para trás e percebi as batidas do seu coração nos vasos do pescoço suado. Estava exausta. As enfermeiras, alunos e doutorandos deixam a sala ainda menor. O cordão umbilical, ainda preso ao útero, é cortado rapidamente, e do cor­redor consigo escutar os gritos do pequeno bebê ao ser levado para a área de neonatologia.

Estava quase terminado. Aguardei mais alguns instantes e tracionei o cordão um­bilical restante, ainda grudado à placenta. A mulher contraiu o rosto e notei que a placenta estava descolando. Mais um esforço, um puxão. Pronto. A placenta ver­melha e carnosa foi expulsa sem dificuldades. Até aquele momento, a paciente permaneceu de cócoras. Negou-se a se movi­mentar. Mantinha as palmas das mãos voltadas para baixo a tocar a laje fria da sala.

— Por que você não veio antes para o hospital? Olhe só o transtorno que você causou! Esse não é o local adequado para se ter um filho. Aqui não temos apare­lhos, nem material adequado. Seu nenê nasceu no chão. Menos mal que consegui colocar um pano estéril, senão ele nasceria na sujeira!

Minhas palavras eram de franca inconformidade. As enfermeiras presentes con­cordaram e continuaram a bombardear a mulher com perguntas e críticas. “Quem está com você? Onde está seu marido? Onde estão seus documentos?” Como uma mulher entra no centro obstétrico e causa tal confusão? Ela nada dizia. Man­tinha-se em silêncio. Estava agora com a cabeça baixa e os olhos fechados.

— Espere mais um pouco. Vou examiná-la para ver quantos pontos vai precisar.

Já calçando um par de luvas, abri os lábios vaginais à procura de lacerações. Imaginei que certamente as encontraria; afinal, não houve tempo para uma episi­otomia, e sem dúvida seriam necessários inúmeros pontos de sutura para con­sertar os cortes erráticos que a natureza determina quando os partos não sofrem intervenções. O exame do períneo reservava mais uma surpresa. Nenhum corte, nenhuma lace­ração. Os lábios vaginais levemente inchados permitiram a passagem do bebê sem nenhum traumatismo. Que estranho!

— Você teve muita sorte — arrematei eu. — Não vai precisar levar pontos.

Levantei-me da posição de joelhos que até então eu me mantinha, e ofereci-lhe minha mão em auxílio. Ela se segurou firmemente em mim e ficou de pé. Uma maca a aguardava para conduzi-la à sala de recuperação pós-parto. Pronto. Es­tava tudo acabado. Deitou-se na maca e olhou mais uma vez para mim. Nada disse, apenas ficou me olhando enquanto as auxiliares a carregavam para fora da sala.

Por que seu olhar parecia me atravessar, sem se fixar em mim? Por que ela nada disse? Por que ela não cooperou com o parto, obedecendo minhas orientações? As lembranças dos eventos do dia não foram de grande utilidade para diminuir a minha angústia. Não foi o sábado que me causou a ansiedade, nem o susto de um atendimento imprevisto. A resposta para as minhas perguntas se encontrava na­quela pequena sala de exames. Algo que ocorrera ali seria a resposta.

Voltei à sala e ela ainda estava suja. Pensei na “sujeira” que um parto desses pode produzir. Sangue, líquido amniótico, campos cirúrgicos manchados de ver­melho vivo. No canto da sala, um borrão verde-escuro me mostrava que o recém-nascido evacuou logo após nascer. Parei para pensar o que verdadeiramente é “sujeira”, mas a compreensão desse conceito só viria à minha cabeça muito tempo depois.

A resposta tinha que estar ali.

Meu pensamento se fixou no olhar da mulher. Ele estava ainda impregnado na minha retina. Por que ela nada me disse? Uma enfermeira passou por mim e co­mentou, enquanto recolhia o material do chão da sala: “Que coisa, não é? Quase que não deu tempo para atender aquela gestante. Já pensou se o senhor não es­tivesse por perto?”

Sorri para ela e me mantive pensativo. E se eu não estivesse por perto para assis­tir esse parto, como seria? E se ela tivesse seu filho sem meu auxílio, o que teria acontecido? Meus olhos pararam em um ponto qualquer da sala e ficaram estáticos. A per­gunta ecoava na minha cabeça.

“Sem minha presença, como seria?”

Comecei lenta e dolorosamente a entender. Olhei para os lados, temendo haver testemunhas dos meus pensamentos. Encontrava-me nu, atirado ao chão do meu Nabucodonosor. Como o renascido Neo, senti-me envergonhado pela súbita nu­dez. A farpa na mente dilacerava. Pensei mais uma vez nos eventos da pequena sala e percebi, aterrorizado, que tudo o que eu fiz desde que entrei naquele local para atender a uma emergência foi atrapalhar uma mulher a ter seu filho.

Tudo.

Todas as minhas atitudes foram prejudiciais ao bom andamento de um parto. A minha ansiedade ao entrar na sala, meus gritos, minha ordem para que deitasse, meus pedidos para que não fizesse força, minha tentativa de abrir uma episioto­mia injustificável e não consentida, minhas reclamações em voz alta, a falta de respeito e carinho com uma mulher que acabava de ser mãe. Perguntas fora de hora, xingamentos. Equívocos, erros, absurdos.

A resposta à pergunta da enfermeira é que, se eu não estivesse por perto, aquela mãe provavelmente teria mais tranquilidade para ter seu filho. A dureza dessa resposta, e a dificuldade em admitir, é que tinham produzido a minha inquietude e a minha ansiedade. Agora produziam a minha vergonha. Mas por que eu agira daquela maneira? Afinal, as pessoas presentes acharam que eu agi corretamente, que fiz o que se espera de um médico. Ninguém ali pa­rece ter percebido o que eu percebi. Como Paulo, na estrada de Damasco, apa­rentemente fui o único a ficar cego com a luz ofuscante dos fatos. Tudo o que eu fiz foi obedecer aos modelos estabelecidos. Estaria eu sendo injusto, duro demais comigo mesmo?

Naquele exato dia eu percebi que algo muito errado existia no meu proceder como obstetra e que eu não poderia admitir que se mantivesse. Entendi que um médico não pode ser um obstáculo ao bom andamento de um evento como o nascimento humano. Tive a noção clara e forte de que eu estava ali muito mais para aprender do que para ensinar algo às mulheres. O olhar daquela mulher havia me ensinado que, a exemplo do que escreveu Frederick Leboyer – médico francês que, com a publicação de “Birth Without Violence” de 1975, foi o deflagrador de uma revolu­ção na forma como recepcionamos os bebês – um médico deve ser imóvel, está­tico e invisível. Deveria ser como que feito de vidro, transparente mas presente, para que sua presença não venha a atrapalhar os ditames sábios da natureza. Minha conduta arrogante e prepotente nada mais era do que a manifestação da minha gigantesca insegurança diante do nascimento. Mesmo entendendo a im­portância de um auxiliar de parto, seja ele médico ou parteira, não poderia jamais esta presença significar o controle do processo. Não nos cabe controlá-lo; apenas auxiliá-lo. Como eu tive a oportunidade de ver na camiseta de uma parteira aus­traliana:

Imagine que você é uma parteira
E está assistindo o parto de alguém
Trabalha bem, sem exibicionismo e espalhafato.
Facilite o que está acontecendo,
Ao invés de pensar o que deveria estar ocorrendo.
Quando este bebê nascer,
Sua mãe certamente lhe dirá:
“Fomos nós duas que fizemos”.
(Lao Tzu – 500 aC)

O nascimento humano conjuga em um só momento os eventos mais temidos das sociedades em todos os tempos: nascimento, sexualidade e morte. Quanto mais temidos eles são, maior será a necessidade de ritualizá-los. Os rituais que aplica­mos ao nascimento nos levam a criar a impressão ilusória de que este está sob nosso controle. Internamos mulheres em hospitais, tiramos-lhes a roupa, raspa­mos seus pelos, lavamos seus intestinos “contaminados”. Depois, elas são colo­cadas em camas onde um monitor invade a privacidade do seu útero, para que escutemos o coração de seus bebês. Rompemos a bolsa de águas, colocamos ocitocina para que a paciente ganhe seu filho dentro do tempo que nós estipula­mos. Diante da dor causada pela solidão, medo e tensão, estabelecemos uma analgesia peridural, que via de regra termina com a aplicação de fórceps ou mesmo uma cesariana, pela dificuldade de essa paciente colaborar com um parto que há muito deixou de ser seu. Somos, entre outras coisas, escravizados ao re­lógio, que na parede diz que o nascimento deve ocorrer dentro de um prazo pré-estipulado de tempo. Elas devem se adaptar ao sistema, e não o contrário. Não há lugar para um tratamento centrado na pessoa, e pouco importam as particularida­des, características e a subjetividade dessa mulher.

O parto deixou de ser um evento das mulheres, sendo sequestrado pela biomedi­cina e encenado através dos rituais hospitalares contemporâneos, mantendo e transmitindo nosso sistema profundo de valores.

Foi Robbie Davis-Floyd quem pela primeira vez mostrou que essas condutas, chamadas de “rotinas”, não eram obra do acaso. Sequer se poderia dizer que são comportamentos determinados pelo hábito ou com base em evidências científicas em favor das gestantes. A multiplicidade de procedimentos médicos declarada­mente agressivos nas maternidades ocidentais nos mostra que isso não é ver­dade, a começar pelas cesarianas descontroladas. Existe um sentido em todas essas atitudes, que ultrapassa o que podemos enxergar. São rituais inconscientes que construímos para enaltecer nossos valores básicos. Erguem-se sobre os pila­res constitutivos da obstetrícia contemporânea: a compreensão cartesiana do mundo, que separa corpo e alma, e a defectividade essencial da mulher. A obste­trícia criou, a partir desse modelo filosófico de compreensão do feminino, a neces­sidade de técnicas e equipamentos que pudessem auxiliar essa mulher no mo­mento de parir, agora entendida como defeituosa e propensa a problemas, assim como Robbie Davis-Floyd descreveu em Birth as an American Rite of Passage.

Minha atitude na sala de exames refletia exatamente essa postura. Inconsciente­mente, eu reproduzi todo o arcabouço teórico que eu absorvera da escola médica e na minha formação pessoal como obstetra. Minhas condutas ao atender a pobre mulher tinham esses valores como norte:

Uma mulher não pode ter seu filho sem ser por mim.
Uma mulher é incompetente para escolher a posição que mais lhe convém para parir.
Uma mulher precisa ter seu períneo cortado para que seu filho possa nascer.
Uma mulher não sabe como conduzir as forças que farão seu bebê entrar nesse mundo.
Mulheres são, em suma, seres inferiores, incapazes e mal feitas.

Seria esse realmente o modelo de mulher que eu tinha? Entendi que eu deveria fazer uma escolha, e a primeira grande lição a ser aprendida seria a humildade. Ou eu modificava minha conduta como profissional, ou deveria escolher outra pro­fissão.

Qualquer das alternativas me traria dor e sofrimento, porque eu sabia o que pode­ria acontecer a um médico que resolvesse descumprir uma ordenação superior. O tratamento seria o mesmo oferecido a um herege e, na verdade, era exatamente no que eu estaria me tornando. A medicina positivista contemporânea comporta-se como a sucedânea da religião no imaginário social, sendo os médicos seus clé­rigos prepostos e controladores. Ela não perdoa aqueles que se afastam de sua linha ideológica, principalmente aqueles que criticam o modelo tecnocrático de compreensão da realidade.

Durante boa parte da minha vida senti claramente a crueldade do tratamento de “herege ameaçador” a mim imposto. Jamais fui perdoado por me desviar do cate­cismo dogmático das convicções médicas contemporâneas, mesmo que o meu proceder estivesse escudado nas mais claras evidências científicas. Por outro lado, minha admiração pelas mulheres e minha paixão pela magia do nascimento me impediam de desistir. Minha decisão estava tomada. Morpheus disse a Neo, na eterna 1999, que “não há caminho de volta, mas, mesmo que houvesse, você voltaria?”

No outro dia, ao sair do plantão, encontrei Maximilian no refeitório do hospital. Corri em sua direção e lhe disse:

— Max! Uma mulher ganhou seu filho na sala de emergência no plantão. De cóco­ras e praticamente sozinha. Lembra que um dia você me falou que…

— Calma, Ric. Eu já sei de tudo. Nadine me contou. Ela pariu de cócoras então? Que tal pareceu? Pois acho que você precisa ler um livro, que talvez abra seus horizontes.

Max abriu sua bolsa estilo hippie e de lá tirou um pequeno livro de capa alaran­jada. O título era Parto de Cócoras – Aprenda a Nascer com os Índios, do obstetra paranaense Moysés Paciornik. Peguei nas mãos o livro amassado e cheio de anotações e mais uma vez encarei Max, que sorria para mim.

— Leia e depois vamos conversar.

Agradeci o empréstimo e girei nos calcanhares em direção à porta de saída. Havia um dia ensolarado esperando por mim, e duas crianças aguardando um pai que retornava diferente para casa. Antes de sair, escutei a risada marota de Max. Vol­tei-me para um aceno de despedida e ainda tive tempo de escutar as palavras do colega.

— Seja bem-vindo, Ric. Patu Saleh!

Num futuro próximo eu escutaria a mesma frase, com palavras semelhantes, bro­tando da tela de um cinema lotado. Lá estaria Morpheus, dizendo ao “predesti­nado” Neo: “Bem-vindo ao mundo real”. Mas ainda era cedo, muito cedo para en­tender os meandros de um sistema de crenças que eu apenas estava iniciando a questionar. O Simulacrum produzido pela “Matrix obstétrica” ainda estava para ser descoberto. Naquela manhã de maio do ano de 1986, iniciei minha jornada de obstetra huma­nista, que mesmo com todas as dores, incompreensões, agressões e dramas, nunca pensei voltar atrás. Àquela pobre gestante, a minha dívida eterna. Seu olhar ainda presente nas mi­nhas lembranças é a marca indelével da força e da dignidade que cada mulher traz consigo no momento de parir.

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Bloqueios

A dificuldade de interpretação continua sendo a tragédia das redes sociais. Um drama que parece não ter sido ainda controlado pois se assenta sobre um fato inconteste, e talvez insolúvel: só lemos o que nosso desejo permite e apenas o que se adapta ao molde previamente determinado por nós na fala do outro.

Criamos espantalhos cujas palavras não tememos (dis)torcer, desde que, assim construídos por nós mesmos, sejam mais facilmente atacados pela fúria de nossas crenças.

No fim acabamos debatendo solitariamente, gritando contra nossas próprias contradições e fragilidades. Solilóquios que se multiplicam em milhões de respostas agressivas e “lacrações”, navegando no cyberspaço a milhões de bytes por segundo.

Todos os dias, em toda parte…

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Obstetras de Cristal

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No filme Matrix o personagem Tank (Marcus Chong), diferentemente de vários outros personagens da trama, não foi resgatado dos tanques que mantinham vivos os organismos humanos na vida virtual do grande programa chamado Matrix. “Born and raised in Zion”, exclama um orgulhoso Tank, cuja parte posterior do pescoço não exibe – como Neo, Morpheus e os demais – a cicatriz de acoplamento com a máquina de conexão à Matrix.

Tank já havia nascido em liberdade. Sua conexão com o mundo é real, e não filtrada por um sistema de crenças que o leva a crer como reais as construções ilusórias de um mundo artificial. Não é necessário um “cabo de dados” para o mundo de fantasia; sua consciência o conecta com uma realidade mais pura e verdadeira.

Todos os profissionais da humanização do nascimento que conheci na minha trajetória de 30 anos precisaram ser resgatados da Matrix Obstétrica. Acostumados a ver como reais a defectividade feminina, a incompetência essencial da mulher e a ritualística que se extrai dessa mitologia, após muitos anos de hibernação foram despertos do sono tecnocrático pela ação de elementos catalisadores: o nascimento do próprio filho, a gravidez, o luto, o êxtase inesperado ou uma singela paciente acocorada no fundo de uma sala de exames. Para cada despertar eu consigo ver um sujeito que “doulou” esta metamorfose; no meu caso, Dr. Moyses Paciornik. Para outros um professor, um palestrante, um mestre ou um paciente.

Contrariamente ao que se poderia imaginar pela firme vinculação da humanização do nascimento com a medicina baseada em evidências, estas transformações nunca ocorrem no terreno da razão; elas são fruto de uma maturação lenta e silenciosa do universo afetivo do profissional. É deste caldo emocional que surge a transformação, que só depois será aperfeiçoada pelo conhecimento e pelo estudo.

Entretanto, depois de três décadas observando alguns poucos obstetras se rebelando e sendo resgatados da nossa Matrix pela primeira vez na história começam a surgir os “obstetras de cristal”. Acho interessante esta forma de perceber os colegas da obstetrícia que não precisam ser resgatados, pois que algo suficientemente intenso ocorreu durante a sua formação, na graduação ou na residência, que os impulsionou diretamente para os valores do humanismo antes de serem tragados pelo moedor de carne da tecnocracia médica.

Para alguns, um parto humanizado que assistiram. Para outros um vídeo de parto. Em algumas profissionais foi sua própria experiência de parto que lhe permitiu sentir na carne o nascimento, antes de usar sua arte em outras mulheres.

Com sentimento, emoção, apuro e preparo técnico, muito além de serem apenas operadoras robotizadas, os(as) “obstetras de cristal” (uma alusão às crianças de cristal, seres da “nova era”) podem assumir-se humanos completos, sem abrir mão de suas qualidades afetivas ao realizarem a nobre tarefa de estar ao lado. E o fazem de uma maneira que sua presença não danifique a delicada tessitura de que é feito um nascimento.

Muitas experiências já estão em andamento no Brasil, como os alunos que já saem da sua formação orgulhando-se de não fazerem episiotomias de rotina, e reconhecendo a importância de proteger o parto normal. Precisamos ampliar o espectro desse novo paradigma, para que seja possível criar um exército de novos profissionais que se orientem pelas luzes do protagonismo garantido às mulheres, a visão integrativa do parto e sua vinculação com a ciência.

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