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Modelos

Há alguns anos recebi a ligação de uma amiga no meio da noite. Dizia ela, com voz carregada de angústia:

– Você não vai acreditar: Fulana e Sicrano se separaram. Estou em choque. Como puderam fazer isso. Acho que nem na minha própria paração fiquei tão abalada.

O casal de quem ela falava era conhecido por nós dois. Uma dupla se pessoas jovens, bonitas, inteligentes e de sucesso. Eram eles, para muitos que compartilhavam de sua amizade, um modelo de relacionamento. Curiosamente, apesar de acreditar ser um exagero da minha amiga, eu também fiquei chocado com a notícia inesperada, e passei muito tempo tentando entender as razões da minha (nossa) inconformidade.

O fato de servirem de “modelo” de relacionamento deveria ter me indicado a resposta. Aliás, eu acho curioso quando as pessoas exaltam os casamentos, em especial quando elogiam os relacionamentos longos. Talvez seja pela raridade, pelo inusitado em nossos tempos de amores fluidos ou quem sabe porque eles sinalizam valores especiais como paciência, resiliência, sabedoria e amor.

Na verdade, eu não vejo nenhum valor moral especial nessas relações duradouras. Gente casada há muito tempo não é melhor – e nem pior – do que gente que troca constantemente de parceria. Conheci monstros monogâmicos, como Dan Mitrione, policial americano, agente do FBI e conselheiro das ditaduras militares da América Latina. Esse agente agiu aqui na década de 1960, colaborando com os militares de Brasil e Uruguai, oferecendo a eles aulas práticas de tortura. Era casado, frequentava a igreja toda semana e tinha 9 filhos. Um homem aparentemente exemplar, ancorado por um casamento sólido. Foi executado pela guerrilha de resistência. Por esse singelo exemplo fica claro que a imagem externa das relações amorosas não garante nenhuma qualidade intrínseca aos sujeitos. É possível ser um libertino e ter um profundo respeito pelo outro, e o mais monástico casal pode esconder em sua intimidade perversidades inimagináveis.

Claro, eu acho que casamentos que se mantém (com laços amorosos, não apenas formais) têm vantagens, especialmente para a criação dos filhos e para a vida econômica do casal. Mas não creio que estes valores possam ser usados para manter relações tóxicas. Na verdade, eu creio que os casamentos de “sucesso” oferecem às pessoas o mesmo alívio que as crianças obtêm ao observar os adultos. Para o turbilhão de angústia que caracteriza a infância, a existência de adultos demonstra a elas que é possível suportar e resistir às agruras de crescer. Os filhos olham para os adultos – em especial os pais – cheios de esperança de que a dor de crescer venha a amainar com o passar do tempo. Os pais carregam uma possibilidade de futuro, e garantem aos filhos a perspectiva de sobreviver à tempestade da infância.

Da mesma forma, os casais iniciantes olham para os casais mais antigos com este mesmo tipo de esperança. Desejam que as dificuldades de manter uma relação amorosa sejam, por fim, ultrapassadas, e que sobrevenha uma calmaria de amor e entendimento. Foi por isso que ficamos tão impactados com a separação do “casal modelo”: de uma maneira inconsciente, esta separação nos roubava um pouco do sonho de vencer nossas próprias dificuldades.

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Parto e Privacidade

Diante da explosão de emoções suscitadas por um parto me parece justo que a equipe possa descrevê-lo a partir de SUA perspectiva, até porque um parto sempre terá inúmeras interpretações. Sem dúvida que as mais importantes são as “de dentro” e todas as outras “de fora”.

Uma equipe pode falar que um parto foi maravilhoso ou problemático, desde que o descreva do ponto de vista da atenção prestada. Só uma mulher pode falar de como se sentiu ou como digeriu sua experiência de parir.

Para além disso, nem a descrição que a mulher faz do próprio parto pode ser considerada “a definitiva”. Apesar da primazia de suas percepções – já que é a óbvia protagonista – suas expectativas e projeções subjetivas podem obscurecer a realidade dos fatos, fazendo com que muitas vezes ela descreva seu parto de uma forma completamente diferente de outras perspectivas.

Um parto, por ser um evento humano e multifacetado, sempre comportará várias interpretações e vieses. Além disso, é um dos eventos mais complexos da existência humana, que conjuga em sua essência vida, morte e sexualidade. Exatamente por essas características o nascimento será um processo sensível e reservado. As pessoas convidadas a participar dele precisam entender a importância de resguardar sua privacidade. Assim, não faz sentido que aqueles que o testemunham revelem suas particularidades sem a aquiescência da protagonista, e isso deve ser um consenso entre os cuidadores.

Não se trata de determinar a existência de uma única verdade no parto, a perspectiva justa e certa, pois que isso não existe. Parto só pode ser entendido pela paralaxe de múltiplas visões, em que todas completam o todo interpretativo de um evento múltiplo. Porém, as características pessoais de cada nascimento impõem a reserva e o respeito de todos os que dele participam.

Resguardar a sacralidade do parto depende do preparo dos assistentes e da capacidade de entender sua posição subjetiva como auxiliares de um evento cujas repercussões estão muito além da nossa compreensão.

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A necessidade da transcendência

nausea

Olha, qualquer um pode enxergar de forma negativa até mesmo o sexo, quanto mais uma gravidez. Todavia, as descrições negativas sobre a gravidez que frequentemente encontramos na Internet não descrevem as agruras e problemas em si, mas as dificuldades de pessoas que não conseguem perceber sentido no conjunto de transformações pelas quais uma mulher passa durante sua gestação. Quando focamos no negativo e no problema ele se torna absolutamente evidente; quando voltamos nosso olhar para outro lado, ele desaparece.

Para quem está cego à transcendência é impossível perceber a luz. Podemos, sem muito esforço, descrever uma rosa como uma “vara cheia de espinhos que facilmente perfuram dedos desavisados“. Podemos descrever o nascimento de uma criança em termos econômicos, fazendo cálculos que começam nas fraldas e terminam na universidade particular. Podemos enumerar os transtornos físicos, os edemas, o peso alterado, as náuseas e tantas outras coisas. É uma questão de viés e, portanto, de escolha. Um momento mágico e glorioso como a gestação (para o meu olhar, admito) pode ser entendido e traduzido apenas pelos desconfortos que frequentemente se apresentam à grávida. Um período curto de 9 meses pode ser visto como uma “longa e torturante jornada”. O natural e charmoso crescimento do útero pode ser visto como um transtorno sem precedentes e até uma perda de feminilidade. Porém, quanto mais as mulheres se afastam de sua essência feminina, onde a gestação e a maternagem tem lugar de destaque, mais elas perdem seu valor específico.

Para nós, homens, é fácil abstrair a magia e nos focar nos pés inchados, na ciatalgia e nas cãibras. Já para uma mulher, que mergulhou nas águas misteriosas de uma gestação, é muito mais difícil manter-se alheia à intensidade inebriante de suas transformações. Por isso mesmo as descrições negativas e até pejorativas da gravidez são para mim espantosas. Eu respeito qualquer forma de olhar para a gestação e o nascimento, até partindo daqueles que pretendem artificializá-los ad infinitum. Entretanto, se existe algo da essência humana que vale a pena manter, creio que esta chama tímida se esconde no nascimento. Toda a história de nossa espécie foi escrita pela ligação entre uma mãe e seu filhos. Max adora repetir o adágio freudiano de que “Se o amor existe, ele é o amor de uma mãe por seu filho, e todas as outras formas de amor são dele derivadas“. Portanto, esse amor – que é fruto da extremada dependência do filhote humano ao nascer – esculpiu o que somos. Somos filhos dessa fissura cósmica, o inexplicável, o não planejado. Somos o que somos por causa do amor, e ele apenas pode nos definir. E se isso é verdade, qualquer mudança nas delicadas tessituras deste envolvimento primitivo poderá ter consequências funestas para todos nós. Talvez, num futuro distante, teremos a triste nostalgia do tempo em que uma mulher podia sentir alegria, contentamento e plenitude na sua gravidez, mesmo rodeada de pequenos desconfortos passageiros.

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