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Portugal

Ao que tudo indica, Portugal está a caminho de um desastre por nós conhecido, e prepara-se para eleger um candidato da extrema direita nas próximas eleições, alguém que se oferece ao eleitorado como algo “diferente”, moralmente “superior” e “impoluto”. Diferente “disso tudo que está aí, taokei?”. Há pouco o Brasil passou pelo mesmo processo e elegeu um psicopata para a presidência, que quase destruiu a estrutura energética do Brasil, roubou mais do que nenhum outro presidente da história do Brasil, comprou 51 imóveis com dinheiro vivo sem ter ganhos para isso, entre outras falcatruas como propinas e joias. Foi uma aventura macabra que causou milhares de mortes por descaso e negligência na pandemia. A Argentina, pelas mesmas razões, escolheu a tragédia anarcocapitalista de Milei, e pagará um preço ainda mais alto, com a destruição do patrimônio público, desemprego, inflação, recessão e revolta popular.

O que existe de semelhante na história destes mandatários é a escolha ilusória pelo “diferente” sem perceber que estes três políticos representam o mesmo neoliberalismo que, aplicado nas economias emergentes de todo o planeta, afundou suas finanças. Em comum, eles atacam seus adversários através de uma pauta moral – os outros são sempre ladrões e de caráter nefasto – mas não demonstram nenhuma diferença do que tanto criticam assim que assumem o poder. Apelam para a força, prometendo mais cadeia, mais repressão, o uso da mão dura contra os criminosos, liberação de armas, ataques às artes e à academia, sem questionar a estrutura social que produz e dissemina a criminalidade. Todos erram no diagnóstico mais essencial: o problema não está nos políticos e sequer na política (que deploram), mas no sistema capitalista decadente que se mostra incapaz de resolver as grandes questões do século XXI – entre elas a miséria crescente, a iniquidade, a concentração crescente de riquezas, os conglomerados financeiros – verdadeiros abutres – as guerras e o declínio do meio ambiente. O que tanto denunciam em seus discursos inflamados – mas sem ousar dizer seu nome – nada mais é que o próprio capitalismo, a doença ardente e corrosiva que consome o planeta. Como na medicina, continuam a se fixar nas lesões na pele sem perceber que elas são apenas os sintomas externos de um envenenamento interno, insidioso, progressivo e incurável. Ao invés de combatê-lo, preferem tomar ainda mais veneno, na vã esperança de que isso possa produzir algum benefício.

Bolsonaro será preso nos próximos dias, pela quantidade imensa de provas de sua incompetência e de seus desmandos. Sérgio Moro, o juiz do projeto “mani pulite” brasileiro, será preso também por ter agido como a ponta de lança imperialista dentro do judiciário, tendo se corrompido por usar a justiça com objetivos políticos. Os filhos e ministros de Bolsonaro também se dirigem céleres para a prisão pelos ataques à democracia. Quase todo o “entourage” bolsonarista está em vias de ser condenado por conspiração contra o Estado Democrático de Direito e por corrupção.

Na Argentina a inflação disparou de forma descontrolada e o desmanche da estrutura pública por este governo – saúde, energia, educação – vai levar ao caos e ao levante operário. Inúmeros analistas demonstram clara desconfiança de que Milei possa chegar ao fim do seu mandato mantendo um discurso pró imperialista, neoliberal entreguista e de suporte ao genocídio sionista de Israel. A falta de consciência de classe está trazendo a emergência da extrema direita oligárquica e pró imperialista. Os exemplos desastrosos do Brasil, e agora da Argentina, deveriam criar anteparos para a eleição de novos líderes que se colocam “contra isso tudo”, pois que eles na verdade são a continuação do desastre, um modelo concentrador de renda que se baseia no desmanche do patrimônio público e na vinculação com os poderes imperialistas. Lamento que Portugal tenha que trilhar o mesmo caminho de retrocesso dos países da América Latina, que inevitavelmente o fará vítima do populismo da extrema direita – como nós já o fomos.

Boa sorte.

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Função Paterna

Esse é é um tema que sempre me atraiu e que deveria ser mais explorado, já que o movimento de contracultura no mundo inteiro trouxe o pai para a sala de parto na esteira das profundas modificações dos papéis masculinos e femininos do pós-guerra. O tema é: “Função paterna no nascimento. O pai (dis)funcional”. Minha posição de homem presente no nascimento me propiciou muitos momentos delicados em que pude observar de uma forma evidente a função paterna no processo. Entre tantos, lembro-me do episódio de um parto que acompanhamos, eu e Zeza, em Coimbra Portugal.

Estávamos acompanhando um conhecido parteiro português, em um atendimento domiciliar. O local era ermo, distante da cidade; uma espécie de sítio bem afastado. Lá estava uma menina de uns 17 anos em suas dores. Primeiro filho, o namorado não passava dos 20, mas se comportava como se tivesse 16. Lá também se encontravam o pai da menina e a namorada deste (a mãe morava na Inglaterra). Ah, detalhe importante: eram todos ingleses, que moravam em Portugal. Lá pelas tantas, no período de transição, ela começou a fazer os resmungos que nós tão bem conhecemos, típicos da famosa “fase de transição”: “não aguento”. “parem tudo”, “me deixem”, “quero uma cesariana” e assim por diante. Continuou com esse comportamento por muitos minutos, enquanto na sala contígua, eu e o pai dela conversávamos, tentando desviar a atenção das tensões inexoráveis de um trabalho de parto. Num determinado momento, incomodado com as reclamações da menina, e sem sair da sala em que nos encontrávamos, o pai se levantou e bradou:  

– Escute aqui, pare com essa choradeira. Você escolheu isso. Vai continuar até o bebê nascer. Você não tem outra escolha. Agora feche a boca e se concentre em ganhar esse bebê!  

Ele disse isso no limite tênue que separa a “voz alta” do grito; entre a firmeza e a grosseria. Eu achei que o comportamento do pai havia resvalado para a rudeza desnecessária, mas o que se viu a seguir foi deveras interessante. Depois dos brados paternos só o que se ouviu foi o silêncio; mais nenhuma palavra, muxoxo, reclamação ou pedido. Apenas um leve ranger de dentes entremeado com suspiros profundos. Da sala contígua só podíamos imaginar o que ocorria no quarto, onde o parteiro acompanhava a parturiente, ladeada pela madrasta e por sua irmã. Mais alguns minutos e ouvimos os sons graves que anunciam um bebê achegando-se ao portal vaginal; o limite último do túnel que o leva à luz e à vida. As palavras exultantes do nosso amigo enfermeiro nos anunciaram a chegada do menino antes que ele pudesse chorar. As mulheres gritavam e podíamos escutar os seus abraços, mesmo que seja difícil definir a sonoridade que eles produzem. Alegria, lágrimas e a festa que tanto conhecemos.

O que restou como interrogação para mim foi a intervenção paterna, cortando um ciclo de vitimização, numa espiral de fragilidade que a estava levando a uma desistência. Sua voz firme e autoritária pode ter cumprido uma função que mesmo eu, no papel de médico, jamais poderia realizar. Para mim, havia, sim, alternativas. Não me caberia acabar com a possibilidade de desistência, pois que nunca poderia julgar os desafios que só ela poderia aquilatar. Desistir de um parto é, apesar da dor que possa nos causar, uma das alternativas legítimas. Mesmo que isso possa ser motivo de um eterno arrependimento, qualquer intervenção da equipe médica nessa decisão entra na categoria de “tutela”. Não nos cabe tomar esse tipo de deliberação; apenas a mulher pode decidir em que ponto de suas dores – do corpo ou da alma – ela considera ter alcançado o limite.  

Entretanto, a intervenção moral das palavras do pai teve um efeito apaziguador. Parecia que a ela faltavam o “limite”, a contenção e a borda. Quando ele bradou, exigindo que ela mantivesse seu propósito original, a mim pareceu que ela acordou (mesmo que ainda dentro do seu sonho de partolândia) para um compromisso maior, anteriormente firmado. Funcionou. Mesmo que seja um espaço impossível de ocupar por quem aceita o pleno protagonismo feminino no parto, tal ação com a marca da função paterna parece ter algum ensinamento a nos oferecer.

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