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Arte popular

Eu tive que ler este texto escrito por um sujeito que se diz de “esquerda”. Sua tese é calcada no “mau gosto” intrínseco à Festa de Parintins, um espetáculo da cultura do Amazonas que se realiza todos os anos e divide a cidade entre os “azuis” e o “vermelhos”. Essa é a sua opinião sobre o espetáculo que foi obrigado a assistir:

“Meu pai trabalhou um tempo em Manaus e, num final de semana que fui passar na casa dele, me fez assistir uma gravação do tal “Boi de Parintins”. Eu não lembro se aprontei alguma coisa para receber tal castigo, que fazia os interrogatórios de Guantánamo parecerem uma ida ao Parque de Diversões. Foram horas vendo aquela coisa cafona. Uma mistura de Escola de Samba do Grupo C com Broadway de apresentação de colégio. Os “Indígenas” faziam os de Hollywood dos anos 50, parecem resultado de consultoria com o Levy Strauss. Depois dessa eu já sei que não reencarno mais.”

Tchê, na boa…. qual o real objetivo desse seu comentário? Quando comecei a ler achei que o autor estava brincando, e que sua postagem guardava um “plot-twist” que colocasse a cultura popular em destaque. Engano meu, era mesmo puro preconceito. Fico realmente com dúvida sobre o que o moveu a escrever algo tão agressivo com a festa de Parintins. E olha…. eu pessoalmente – pela notória fobia social conjugada com minha cintura dura – não tenho conexão com este tipo de manifestação popular, mas não me atrevo a entender isso como uma cultura “menor”. Desdenhar dessa forma de arte popular, em especial daquela oriunda da região menos privilegiada da federação, me parece de um elitismo superado e sem sentido. Faço este questionamento de boa, porque não consigo imaginar a razão para tamanho desprezo pelas coisas do povo.

Essa manifestação muito me lembra as pessoas com manifesto rancor pela vida, com tristezas inconfessas, amores mal digeridos, que costumam fazer discursos contra o Carnaval, o samba e o futebol, e com os recursos economizados criar escolas, polícias armadas e fábricas, como se o ser humano fosse um mísero primata despelado e utilitário, sem razão de existir para além do que produz, sem direito à alegria, ao prazer e ao ócio.

Mesmo reconhecendo minha distância destas manifestações populares de extravasamento incontrolável de alegria eu sei o quanto elas atingem o coração do povo, sua musicalidade, suas cores, suas paixões, sua especial perspectiva de mundo e seu modo de ver a própria vida. Qual o real sentido em tratá-las com tamanho desrespeito e desdém?

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Lixo

Já pensou a situação de um policial que prende o mesmo meliante todas as semanas cometendo o mesmo crime? Ou quando esse morre e percebe que outro ocupou a sua vaga?

O que dizer do médico que trata as verminoses das crianças que moram ao lado do valão imundo que atravessa a favela? E o mesmo profissional que trata indefinidamente uma hipertensão cujas causas estão debruçadas em uma vida já cheia de pressões e dramas terríveis? E a professora que pede que seu aluno, que mal se alimenta direito, leia os livros que ela recomenda?

Como se sente um profissional que percebe que sua atuação é insuficiente para mudar a realidade, e que tudo o que faz é enxugar o gelo de um problema cuja abrangência seu trabalho é incapaz de alcançar?

Há que ter muita força de vontade para enfrentar o cotidiano dentro de um sistema que nos esmaga, nos fere e nos maltrata. Na verdade, dentro desta sociedade somos meros lixeiros, e nos limitamos a retirar uma parte dos rejeitos emocionais e sociais que nos sufocam, pois que a cada dia se multiplicam e se acumulam.

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Valores

Aos 5 anos de idade eu caminhava na rua Salgado Filho quando vi uma banca de jornais que vendia loterias. Olhei os números recheados de zeros no prêmio estampado e perguntei para o gigante que segurava minha mão:

– Pai, por que não compra um bilhete da loteria? Se você ganhar podemos ficar ricos e comprar qualquer coisa que quisermos.

Ele continuou andando firme e olhando para frente e me disse, do jeito sisudo e objetivo que sempre o caracterizou:

– Só acredito em dinheiro que foi ganho através do trabalho. Esse aí pode ser legal, mas é imoral.

É desses pequenos fragmentos dispersos que somos constituídos. Obrigado, pai, por essa lembrança.

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Tempos Modernos

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Se há uma coisa que me arrependo na juventude é não ter investido pesadamente nos momentos de lazer e alegria com meus filhos. Eu era muito jovem quando fui pai, e o acúmulo de atividades (faculdade de medicina e sete empregos simultâneos) aliada à escassez de recursos me dificultavam o convívio com os pequenos. Eu sei, são desculpas, mas é o que me resta e me dá conforto. As férias eram sempre entremeadas com trabalhos fora de hora, plantões que pagavam bem mas que ninguém queria fazer (carnaval, Natal, etc..), e eu sempre me sentia compelido a aceitá-los. Hoje em dia eu tenho um remorso danado dos momentos que poderia ter usufruído, mas que deixei passar por me preocupar com coisas menores e muito menos importantes do que estar ao lado dos filhos.

Vivemos em um mundo em que o trabalho desempenha um papel central em nossas vidas. Era assim que eu o via. Estudar para me qualificar, me qualificar para trabalhar, e trabalhar para “ser alguém na vida”. O trabalho define e mostra quem a pessoa é, e como se situa no mapa social. Entretanto, eu vejo com preocupação na sociedade contemporânea uma supervalorização do trabalho como tendo o “sentido mais importante na vida de um sujeito”.

Eu creio que esta questão é complexa, e não pretendo esgotá-la em meia dúzia de frases. Se posso entender o significado da função social do trabalho, também posso entender que as relações afetivas e as responsabilidades que temos com aqueles que por nós se afeiçoam não podem ser desprezadas. E na sociedade em que vivemos, trabalhar de forma ininterrupta tornou-se uma meta acima de todas as outras. Não só trabalhar, mas ser fanático pelo trabalho, doente por ele, obcecado pela produtividade e pela excelência, mesmo que esta função social assuma a posição de destaque, acima dos outros objetivos de nossa vida. No mundo atual “workaholic” – aquele que trabalha em excesso e de forma insana – passou a ser um elogio, uma marca indefectível oferecida para os “vencedores”.

Pois eu vejo de forma diferente. Acredito que trabalhar demais é para os pobres de espírito. A cultura do “workaholic” é uma mitologia para burros de carga, que valoriza e coloca em um pedestal o indivíduo que situa seu trabalho acima das relações pessoais ou de seus afetos. É uma forma sutil de escravidão moderna, onde os grilhões não são mais de ferro, mas de mitos e preconceitos urbanos. “Fulano é espetacular, um workaholic obstinado, determinado e incansável” Não, em verdade ele não passa de um tolo!!! Trabalhar acima da conta é um desrespeito consigo mesmo e com a família. Trabalhar acima do que é razoável é para trouxas ou escravos. O trabalho deve ser gratificante e produtivo, lúdico e desafiador. Ele não pode ser um FIM, mas um meio para ser útil ao mundo que nos cerca. O dinheiro que dele advém deve servir apenas para oferecer segurança, tranquilidade e conforto, e não para ser um brinquedo perverso de colecionadores de moedas.

Adrenalina sim, mas jamais sem o contraponto da ocitocina. Se é importante a influência fálica e desafiadora no mundo, onde o trabalho o esforço e a criatividade terão destaque, também serão fundamentais a placidez, o compartilhar, o descanso e o prazer. Sem essa dualidade, em que ambos os aspectos de nossa vida tem espaço para se expressar, seremos autômatos infelizes, semelhantes ao pobre operário de Chaplin em Tempos Modernos.

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