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Tríptico Amor Romântico – 2. Os Mosuo

Acho importante citar que existem experiências de organizações sociais que diferem do casamento monogâmico e do próprio “amor romântico”. Todavia, é importante entender as condições para o aparecimento desse tipo de organização social e as razões por jamais ter se disseminado. Uma forma de pensar como seria uma sociedade sem amor romântico é conhecer a comunidade Mosuo no sul da China, numa das zonas mais isoladas e pobres do país. Acho um equívoco tratar esse modelo como “matriarcado”, que eu acredito ser um mito, mas a estrutura social aplicada para dar conta das famílias, dos filhos e da sexualidade parece ser extremamente interessante, em especial no que tange os “casamentos caminhantes”. Nessa comunidade – repito, pobre e isolada, e isso ao meu ver é muito significativo – após completarem 13 anos de idade, as meninas podem ter seu próprio quarto na “casa das flores”, uma casa onde as avós detêm o controle político e moral. Nesse seu quarto elas pode convidar os meninos que desejarem para visitá-las (por isso casamentos caminhantes), tendo uma vida sexual livre e sem cobranças. Num determinado momento elas escolhem quando desejam se tornar mães – ou o “destino” escolhe por elas, como acontece entre nós. Ficam grávidas do pai biológico de seu filho, mas este nunca terá funções paternas sobre aquele.

A sociedade não é matriarcal; isso é um mito. A liberdade sexual das mulheres não significa diretamente poder político. A sociedade é matrilinear e matrilocal, mas o conceito de “arkhé”, poder político, não está implicado nessa sociedade. Em uma cultura patriarcal, o homem assume a responsabilidade e a autoridade política, moral e religiosa sobre as mulheres e os filhos confiados à sua proteção, e as mulheres nessa sociedade isolada chinesa não têm estas atribuições. Ou seja, não é o espelho invertido da sociedade patriarcal, mas uma sociedade onde as famílias se organizam em torno das mulheres e de suas casas, e onde usufruem de uma curiosa (e eu diria merecida) liberdade sexual. Na sociedade Mosuo quem assume a função paterna das crianças é o irmão mais velho da mãe, que será o “pai” dos seus sobrinhos, mas não dos seus filhos biológicos. Portanto, a função desse homem é muito importante na formação das crianças, mas não adquire uma conexão biológica/genética. Como a sociedade é matrilocal, os homens vivem nas casas das “matriarcas” e as crianças nascidas vivem sempre sob a tutela desse núcleo familiar, o qual não obedece uma característica patrilocal, sequer patronímica. Entretanto, é importante entender que esse costume aos poucos vai morrendo, e as novas gerações vão adotando o modelo patriarcal monogâmico do resto da China, adaptando-se ao “amor romântico”.

Outra questão importante é o turismo sexual que se criou para esta localidade, pois se acreditava que as mulheres Mosuo eram “fáceis”, que tinham relações com qualquer visitante. Houve até campanhas na China para afastar estes turistas indesejados que não compreendiam o costume e o tratavam como uma variante da “libertinagem”. Porém cabe uma pergunta: por que esta sociedade é uma exceção? Pode haver várias respostas, mas a minha é esta: por ser uma sociedade isolada, pequena e insignificante. São populações que vivem nas montanhas e sem contato com vizinhos ameaçadores; esta é, afinal, uma das regiões mais pobres da China, onde a vida é muito dura. Essas sociedade são militarmente frágeis, mas apenas por que as ameaças inexistem. Foi pela necessidade de proteção que o planeta inteiro adotou o patriarcado, que produz sociedades mais fortes e protegidas. Mas o que aconteceria com uma sociedade que não sofresse ameaças externas? Talvez exatamente isso: uma sociedade sem a necessidade do patriarcado como força protetiva. Por isso algumas feministas perceberam que a única forma de produzir real igualdade social – e sexual – entre os gêneros seja pela conquista da paz.

Como a sociedade é “matrilocal”, as meninas Mosuo permanecem morando na casa das mulheres após o nascimento dos bebês e quem fará a função paterna será o irmão mais velho. O pai biológico do seu filho poderá fazer essa função na sua casa e com os filhos e filhas de suas irmãs. Poderá também participar, se assim o quiser, dos cuidados do seu filho biológico, mas está não será sua obrigação primordial. Esse modelo é, por certo, uma exceção no mundo atual e, para existir, precisa de circunstâncias muito especiais, entre elas a paz e uma característica não belicosa da sociedade. Creio que esse é o ponto nevrálgico. Todas as sociedades que, de uma forma ou de outra, se sentiram ameaçadas por inimigos externos acabaram adotando o modelo patriarcal, muito mais forte, determinado e capacitado para o enfrentamento.

Existem muitos documentários sobre os Mosuo (vide abaixo) em especial por concepções errôneas e preconceituosas sobre a organização sexual das mulheres nesta cultura. Em um desses documentários, a matriarca diz que o modelo Mosuo “é o mais avançado do mundo, e deveria ser exportado para todo as culturas”. Ela rechaça a ideia de que seja promíscuo, mas ressalta que nesse modelo (ou nessa experiência) as mulheres fazem um trabalho muito pesado na agricultura de subsistência e no cuidado com os animais domésticos, produzindo uma sociedade de ampla autossuficiência. Entretanto…. se pensarmos bem, não temos uma variante desse modelo em alguns subgrupos sociais? Pensem em alguns bolsões de pobreza, onde as meninas adolescentes engravidam de garotos igualmente muito jovens. A menina e seu filho estabelecem-se (por necessidade) na casa da mãe, que passa a cuidar do neto, muitas vezes assumindo o cuidado materno. O pai biológico desaparece, evade, vai cuidar de suas necessidades, e a função paterna acaba sendo executada pelos irmãos mais velhos ou pelo avô do bebê (quando houver). Não é parecido?

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Parto é Pauta

Em uma reunião político-partidária na qual estive envolvido há alguns meses escolhi fazer parte do grupo temático que debateria as questões das mulheres. Minha experiência de quase 40 anos escutando suas queixas, sonhos e alegrias (acreditava eu) poderia ser útil para o debate. Por certo que acabei chamando a atenção por ser o único homem em um círculo composto por duas dezenas de mulheres de várias partes do Brasil, de diferentes etnias e de distintas classes sociais. Mas, como acho que todos temos o direito de cultivar e expor nossas perspectivas sobre qualquer problema social, permaneci sentado aguardando humildemente a oportunidade de me manifestar. Eu temia o que estava para ocorrer, e por isso mesmo estava preparado para desafiar o padrão dos debates. A coordenadora listou, como sugestão, que fossem debatidos três temas essenciais, os quais eu já sabia de antemão que estariam presentes.

1. Trabalho doméstico
2. Descriminalização do aborto
3. Violência contra a mulher

Fácil adivinhar, não? Estes são os três temas mais comuns em todos os debates feministas, e não há como negar sua importância ou relevância. O trabalho doméstico é um ponto nevrálgico da sociedade capitalista ao manter a mulher atrelada a uma rotina de trabalho estafante e não remunerado, condenando-a à dependência econômica e/ou à tripla jornada, sacrificando sua saúde e seu lazer. O debate sobre a dinâmica desse labor é essencial para a emancipação da mulher, a qual jamais ocorrerá sem a conquista de sua independência financeira.

Já o aborto é uma questão de saúde pública mas, anterior a isso, está o direito das mulheres de disporem livremente sobre seus corpos e seus destinos. É, portanto, um tema relacionado aos mais básicos direitos humanos reprodutivos e sexuais, pois tem repercussão na saúde e na proteção das mulheres. A luta pelo aborto livre e seguro não pode faltar em nenhum debate que se proponha a proteger socialmente as mulheres e seus filhos.

Por último, a violência doméstica contra a mulher. Triste perceber que esta drama social teve um aumento de significativo durante a tragédia social dos governos Temer/Bolsonaro, mas também em função da pandemia e da crise que a antecedeu. Durante todo ano de 2020, 1.350 mulheres foram vítimas de feminicídio, número 0,7% maior que no ano anterior. O número de chamadas por violência doméstica para o 190 (Polícia Militar) subiu 16,3% e chegou a 694.131 no ano passado. Todavia, a única resposta que temos oferecido a este problema nos últimos anos tem o caráter punitivista da Lei Maria da Penha que jamais solucionou o problema da violência de gênero porque ataca apenas a ponta do iceberg: o resultado social das frustrações acumuladas transformadas em violência. Como todas as ações que apontam para a punição, esta é mais uma medida de resultados pífios; a causa, como sabemos, é a perversidade do capitalismo, porém nos parece mais fácil encarcerar pretos e pobres do que sanar nossa ferida social crônica da iniquidade e da opressão. Finda a apresentação eu sabia que a mesma lacuna desses grupos se repetiria e, por isso mesmo, pedi a palavra em primeiro lugar para que as pessoas que se manifestassem depois de mim pudessem pautar suas falas com o que eu tinha para lhes dizer. Olhei para minhas colegas de causa socialista e disse:

“É provável que a maioria de vocês nunca passe por um aborto. Algumas, espero, nunca serão vítimas de violência de gênero, ao menos por aquelas agressões mais grosseiras. Algumas de vocês talvez tenham companheiros dispostos a dividir tarefas no lar. Entretanto, TODAS vocês estarão marcadas pelo parto, sem exceção. Sim, porque se não tiveram a oportunidade de parir, ou sequer desejam passar por esta experiência, certamente chegaram a este mundo através de um parto. Não é exagero dizer que o nascimento é um dos eventos mais marcantes na vida de homens e mulheres e nele podemos ver claras as marcas do capitalismo e do patriarcado, momento em que seus valores serão impostos e reforçados.

O nascimento de uma criança é o momento onde mais ocorre violência contra a mulher, que vai se manifestar na visão diminutiva e defectiva sobre ela, nas práticas desnecessárias, nos procedimentos anacrônicos, na perda dos seus direitos, no silenciamento da sua voz e na visão depreciativa que a sociedade lança sobre suas capacidades de gestar, parir e maternar com segurança.

Não haverá nenhum avanço nas lutas das mulheres sem que o parto e o nascimento livres tenham um lugar de destaque nas lutas pela dignificação feminina. É preciso que a esquerda se dê conta da importância do parto no discurso de emancipação das mulheres. Como dizia Máximo Gorky “só as mães podem pensar no futuro, porque dão a luz à ele em suas crianças”, mas, digo eu, elas também vão parir e educar os reacionários, e por isso estas mulheres precisam encontrar no parto o momento de revolução de sua autoimagem, tornando clara sua nova trilha de autonomia, valor, coragem e liberdade – na direção do socialismo”.

Surpreendentemente todas as mulheres presentes concordaram que esse deveria ser um tópico que não poderia faltar, e muitas deixaram em suas falas depoimentos pessoais de maus tratos obstétricos, inclusive citando a epidemia de cesarianas como um aspecto dessa violência, que se mascara como cuidado tecnológico, limpo e asséptico, mas que, em verdade, é dominado por uma perspectiva autoritária e alienante, tornando as mulheres prisioneiras de uma lógica intervencionista e despersonalizante. Mais tarde o trabalho do grupo temático foi lido na plenária e fiquei muito orgulhoso de ver a violência obstétrica levada a todos os congressistas como um tema que não deve jamais ser esquecido – como historicamente o foi – nas pautas de luta das mulheres. Por fim, mesmo que ainda testemunhemos violência e abusos na atenção ao parto, não há porque naufragarmos no mar do pessimismo, pois sempre haverá motivos para manter a esperança.

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