Na reunião político-partidária de esquerda em que estive envolvido ontem em São Paulo escolhi fazer parte do grupo temático que debateria as questões das mulheres. Por certo que acabei chamando a atenção por ser o único homem em um círculo composto por duas dezenas de mulheres, de várias partes do Brasil, de diferentes etnias e de distintas classes sociais. Mas, como acho que todos temos o direito de cultivar e expor nossas perspectivas sobre qualquer problema social, permaneci sentado aguardando humildemente a oportunidade de me manifestar.
Eu temia o que estava para ocorrer, e por isso mesmo estava preparado para desafiar o padrão dos debates. A coordenadora listou, como sugestão, que fossem debatidos três temas essenciais, os quais eu já sabia que estariam presentes.
1. Trabalho doméstico
2. Descriminalização do aborto
3. Violência contra a mulher
Fácil adivinhar, não? Estes são os três temas mais comuns em todos os debates feministas, e não há como negar sua importância ou relevância. O trabalho doméstico é um ponto nevrálgico da sociedade capitalista ao manter a mulher atrelada a uma rotina de trabalho estafante e não remunerado, condenando-a à dependência econômica e/ou à dupla jornada, sacrificando sua saúde e seu lazer. O debate sobre a dinâmica desse labor é essencial para a emancipação da mulher, a qual jamais ocorrerá sem a sua independência financeira.
Já o aborto é uma questão de saúde pública mas, anterior a isso, está o direito das mulheres de disporem livremente sobre seus corpos e seus destinos. É, portanto, um tema relacionado aos mais básicos direitos humanos reprodutivos e sexuais, pois tem repercussão na saúde e na proteção das mulheres. A luta pelo aborto livre e seguro não pode faltar em nenhum debate que se proponha a proteger socialmente as mulheres e seus filhos.
Por último, a violência doméstica contra a mulher. Triste perceber que esta drama social teve um aumento de 26%, nos últimos meses, em função da pandemia e da crise que a antecedeu. Todavia, a única resposta que temos oferecido a este problema nos últimos anos tem o caráter punitivista da Lei Maria da Penha que jamais solucionou o problema da violência de gênero porque ataca apenas a ponta do iceberg: o resultado social das frustrações acumuladas transformadas em violência. Como todas as ações que apontam para a punição, esta é mais uma medida de resultados pífios; a causa, como sabemos, é o capitalismo, porém nos parece mais fácil encarcerar pretos e pobres do que sanar nossa ferida social crônica.
Finda a apresentação eu sabia que a mesma lacuna desses grupos se repetiria e, por isso mesmo, pedi a palavra em primeiro lugar para que as pessoas que se manifestassem depois de mim pudessem pautar suas falas com o que eu tinha para lhes dizer.
Olhei para minhas colegas de causa socialista e disse:
“É provável que a maioria de vocês nunca passem por um aborto. Algumas, espero, nunca serão vítimas de violência de gênero, ao menos as agressões mais grosseiras. Algumas de vocês talvez tenham companheiros dispostos a dividir tarefas no lar. Entretanto, TODAS vocês estarão marcadas pelo parto, sem exceção. Sim, porque se não tiveram a oportunidade de parir, ou sequer desejam passar por esta experiência, certamente chegaram a este mundo através de um parto. Não é exagero dizer que o nascimento é um dos eventos mais marcantes na vida de homens e mulheres e nele podemos ver claras as marcas do capitalismo e do patriarcado, quando seus valores serão impostos e reforçados.
O nascimento de uma criança é o momento onde mais ocorre violência contra a mulher, que vai se manifestar na visão diminutiva e defectiva sobre ela, nas práticas desnecessárias, nos procedimentos anacrônicos, na perda dos seus direitos, na mudez da sua voz e na visão depreciativa que a sociedade lança sobre suas capacidades de gestar, parir e maternar com segurança.
Não haverá nenhum avanço nas lutas das mulheres sem que o parto e o nascimento livres tenham um lugar de destaque nas lutas pela dignificação feminina. É preciso que a esquerda se dê conta da importância do parto no discurso de emancipação. Como dizia Máximo Gorky “só as mães podem pensar no futuro, porque dão a luz à ele em suas crianças”, mas, digo eu, elas também vão parir e educar os reacionários, e por isso estas mulheres precisam encontrar no parto o momento de revolução de sua autoimagem, tornando clara sua nova trilha de autonomia, valor, coragem e liberdade – na direção do socialismo”.
Surpreendentemente todas as mulheres presentes concordaram que esse deveria ser um tópico que não poderia faltar, e muitas deixaram em suas falas depoimentos pessoais de maus tratos obstétricos, inclusive citando a epidemia de cesarianas como um aspecto dessa violência, que se mascara como cuidado tecnológico, limpo e asséptico, mas é dominado por uma perspectiva autoritária e alienante.
Mais tarde o trabalho do grupo temático foi lido na plenária e fiquei muito orgulhoso de ver a violência obstétrica levada a todos como um tema que não deve jamais ser esquecido nas pautas de luta das mulheres.
Não há porque naufragarmos no mar do pessimismo, pois sempre haverá motivos para manter a esperança.