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Passagem ao Ato

Há alguns dias vi as imagens de um sujeito que passou a mão nas nádegas de uma mulher no exato momento em que ela saía do elevador. Esse acabou se tornando o assunto mais comentado nas redes sociais, porque este tipo de agressão mobiliza muito as pessoas, e a razão para este foco é sempre algo que deve ser investigado. Pelas imagens parece que ela era uma desconhecida, ou ao menos entre eles não havia qualquer intimidade, visto que ela ainda teve tempo de reclamar antes que a porta do elevador se fechasse. Ato contínuo, ele desce até o estacionamento, pega seu carro e sai correndo (parecia mesmo fugir da cena do crime).

Nas repercussões que se seguiram percebi a preocupação de todos com o abuso, com o fato de uma mulher ter sido tocada sem consentimento, o que me parece justo. Essa violência é decorrente do próprio patriarcado, que estabelece valores especiais sobre o corpo da mulher; tivesse o mesmo ato ocorrido com um homem e nada seria dito ou feito, no máximo uma rápida troca de socos. Mas, é compreensível que na estrutura social que temos hoje em dia esta atitude seja envolta em escândalo e considerada uma agressão injustificável.

E vejam: não me cabe julgar o sofrimento de quem passou por este tipo de agressão. O sujeito foi preso e vai pagar pelo crime que cometeu. Não se trata de minimizar o que ele cometeu, mas seguir um pouco adiante e tentar descobrir as reais motivações que levam um sujeito a “passar ao ato”, romper a fina película que separa a fantasia da realidade, colocando sua própria vida em um redemoinho destrutivo que ele provavelmente terá imensas dificuldades de se recuperar.

Desta forma, apesar do choque das imagens e da justa indignação da vítima com o abuso indecente, eu fiquei mais interessado em encontrar a resposta para a pergunta: o que faz um homem bem sucedido, casado, com filhos e bonito “passar ao ato” desta forma tão suicida? O que diabos ele pretendia com esse desvario? Por que o descontrole? Por que saiu correndo assustado? Pelo que pude observar das imagens ele não parecia um abusador contumaz, desses que sentem compulsão por cometer seus abusos em trens e ônibus, onde o risco de ser descoberto faz parte do frisson relacionado ao ato; ele parecia estar nervoso, até ausente, como alguém que perdeu o controle por breves instantes e logo se deu conta do erro absurdo que cometera. Mais tarde, ao ser preso no dia seguinte, teria dito à imprensa que sofre de transtornos psiquátricos.

Sua atitude, pela forma como foi feita, pareceu um surto – ou um pedido de socorro. Talvez haja uma questão emocional bastante grave ocorrendo por trás desta cena grotesca. Como teria ele sido capaz de romper as barreiras da interdição sabendo o quanto teria a perder? É evidente que, por causa disso, agora vê seu mundo desmoronar. Agora todos querem colocá-lo empalado numa estaca para queimá-lo vivo. Afinal, como ousa roubar nossas fantasias e levá-las adiante, enquanto nós aqui só nos encolhemos e recalcamos nosso desejo?

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Sobre censura, abusos e filmes ruins

Percebo que nesse assunto – a censura de um filme do Danilo Gentili – estamos tocando na ferida moralista desse país. Nunca vi o filme e nem pretendo ver, mas proibições lembram a minha infância na ditadura militar e acho que o debate sobre a veiculação desse filme serviu apenas para tirar do esquecimento um filme chato pra caramba. Como princípio não aceito censura de jeito nenhum, e se o problema são as crianças, proíbam-no para menores de idade, mas permitam que as pessoas adultas façam suas escolhas, por mais estúpidas que sejam.

Ainda lembro uma manchete do Pasquim do início dos anos 80: “Estaremos maduros o suficiente para pentelhos?” na época em que os filmes no Brasil censuravam o “nu frontal”. Essa foi uma manchete sensacional que debochava da nossa infantilidade cultural e nossa renitente exaltação à censura. Posso apostar que deve haver documentos da época que justificavam essa censura afirmando que a liberação dos “pentelhos” poderia “estimular a violência sexual”. Hoje sabemos o quanto é tola a ideia de que algum pervertido vai realizar um estupro apenas por ver um filme miseravelmente erótico.

O mesmo eu posso dizer de alguém que vai praticar um crime – como abuso sexual da infância – apenas por ver uma porcaria de filme do Danilo Gentili. O ser humano não é tão facilmente condicionado assim. Fosse verdade, bastaria condicionar a todos contra cigarro, bebida, fumo e homossexualidade e todas essas manifestações desapareceriam, para a alegria dos moralistas e o desespero dos pastores evangélicos, que veriam seu mercado de curas milagrosas murchar da noite para o dia. Sabemos o quanto isso é ridículo.

Portanto, proibir este filme é um erro duplo: por abrir as porteiras – de novo!! – da censura por razões morais, e porque esta ação é absolutamente inútil. Nenhum efeito positivo pode surgir do proibicionismo – não esqueçam da Lei Seca e seu retumbante fracasso!! – a não ser fazer crescer o interesse por aquilo entendido como interdito. Os psicanalistas bem sabem o quanto uma porta trancada é importante para fomentar o desejo e as fantasias sexuais na infância. Querem apostar como um filme esquecido voltou a ser visto agora?

O problema é que o moralismo canhestro, uma das manifestações características do identitarismo, deixa claro que se você defende que obras ruins e sem graça tenham o direito de ser apresentadas (guardadas as limitações etárias) você estará fatalmente concordando com o conteúdo delas. Ou seja: se você se posiciona contra a censura de um filme que contém cenas que insinuam abusos você é a favor desses abusos, o que é simplesmente absurdo. Esses moralistas não conseguem entender uma defesa “em tese”, e confundem a “defesa do princípio” com a “defesa da causa”. Bastaria conhecer a frase de Evelyn Beatrice Hall que nos diz “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las” para entender que expressar-se livremente é um direito sagrado. Mutatis mutandis, posso discordar profundamente do filme chato do Gentili, mas acredito no seu direito de apresentá-lo para quem se interessa por assistir.

Para finalizar, eu me associo à indignação com a esquerda que pede cancelamentos, censura e apoia nazistas, mas sei o quanto este tipo de discurso autoritário é difícil de retirar das mentes contemporâneas.

PS: Eu avisei, mas os moralistas dessa nação formada por hordas infinitas de “irmãs Cajazeiras” não quiseram escutar. O filme, de tanto criticarem, agora está bombando, enchendo os bolsos de quem eles tanto criticavam. Lembro ainda do cancelamento massivo que recebi quando pedi para não ficarem fazendo propaganda enviesada do Rodrigo Constantino. Tem gente que custa a aprender.

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Rituais mutilatórios

E quanto aos rituais…. eu sou DEFENSOR árduo dos rituais. Eles são fundamentais para a cultura. Natal, Páscoa, Pesach, ano novo (cristão, chinês, hebreu), bodas, aniversários, funerais, etc. A questão é que todos os rituais desnudam os valores culturais. Estudei por 30 anos os rituais de parto para me convencer que eles apontam para os valores do patriarcado e que se assentam sobre o mito da defectividade essencial da mulher. Esta é a questão central: os rituais nos mostram quem somos!! Fazem isso porque operam na sombra do inconsciente e não sob a luz da razão!

Por isso eles são poderosos e reveladores. Sob a luminosidade da razão eles murcham, secam e ….. se transmutam. Os rituais não são estanques e imóveis; eles caminham dois passos atrás do nosso conhecimento e dos valores sociais, e nos seguem de perto. Quando a razão impõe um novo entendimento da realidade, os rituais se modificam para se adaptar à novidade. Os rituais são eternos, mas não imóveis. Sua metamorfose adaptativa é o que lhes confere a imortalidade.

Acabar com as mutilações genitais tem o mesmo sentido de terminar com os sacrifícios sobre animais que fazíamos em um passado não muito distante. Pareciam ter sentido, mas aos poucos – calcinados pela luz da razão – foram desaparecendo. O mesmo precisa ocorrer com os rituais humilhantes ou violentos – como as mutilações.

Se as mutilações tinham alguma vantagem higiênica e identificatória há milhares de anos estas funções desapareceram. Ninguém pode admitir que sua proximidade com Deus se deve por ter a vulva deformada ou o prepúcio amputado. A ciência inclusive nos mostra o quanto perdemos de sensibilidade e prazer com estas perdas e cortes. A abolição destas mutilações em crianças é um marco civilizatório essencial.

Estabeleça-se que nenhuma criança pode ter seu corpo violado por práticas ritualísticas e mutilatórias e que qualquer adesão a estes grupos religiosos através dessas práticas só possa ocorra após a maioridade. Essa mudança nas práticas permitiria que as marcas, quaisquer que sejam, ocorram sob o controle de um sujeito livre para tomar decisões perenes sobre o seu próprio corpo.

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