Eu me acostumei a ver os humoristas brasileiros – em especial os stand-up da última geração – sendo acusados de fazer bullying contra grupos oprimidos. Com o tempo, a partir da vigência do “politicamente correto”, criaram-se lugares fechados, vedados ao humor, ambientes proibidos às piadas, pois que tais espaços estariam ligados ao sofrimento de grupos tradicionalmente oprimidos por sua etnia, orientação sexual, identidade de gênero, deficiências físicas, etc. O humor a partir de tal imposição cultural transformou-se. Através de um patrulhamento feroz do que era dito o humorismo amansou-se, tornou-se civilizado e domesticado. A censura não ocorria mais por parte de “escolhidos” pelo estado para filtrar o que era adequado para os ouvidos sensíveis de nossa população cristã e conservadora, mas por mecanismos culturais descentralizados. Fazer graça se tornou perigoso, mas o humor perdeu uma de suas principais funções: a crítica social mordaz, ferina.
Segundo David L. Paletz, a sátira é uma forma de humor em que as instituições sociais e políticas, os indivíduos são ridicularizados e humanizados. Isso pode nos levar a liberar a tensões e, assim, levar a mudanças no sistema. Dado que a frustração é uma das principais causas da agressão, não surpreende que as pessoas que frustram nossos objetivos e prazeres sejam os principais alvos do humor (como reis, rainhas, políticos, médicos, policiais, clérigos, professores, mandatários, etc.). Com a introdução do humor “controlado”, que evitaria ofender, criou-se um humorismo contido, uma comédia amordaçada, que serviria ao impedimento da segregação desses grupos. Aliás, praticamente todos os programas de humor dos anos 80 e 90 seriam proibidos atualmente. Pense em Chavez, Trapalhões, Viva o Gordo, Zorra Total etc. Nada disso seria aceitável no mundo de hoje.
É compreensível esse movimento. A empatia nos impulsiona a tentar proteger essas pessoas mais fracas de um determinado espaço social, como uma mãe faria com seus filhos. Este para mim é o padrão “maternal”, que abriga criando uma cápsula da amor protetivo, impedindo as agressões que vem de fora. Por esta perspectiva, a censura poderia ser aplicada a qualquer um que estivesse fazendo zombarias sobre esses grupos. Seria uma “censura do bem”, para proteger sujeitos fragilizados dos ataques de uma cultura degenerada e excludente.
Apesar de entender as razões pelas quais se adotam estas medidas na cultura, sempre me posicionei de forma absolutamente contrária a esta proposta. Não acredito que, em médio e longo prazos, qualquer censura possa ser benéfica. A censura sempre é a imposição de força de um grupo sobre a liberdade de expressão de um sujeito ou de coletivos. Baseada em critérios morais ou políticos, julga a conveniência da publicação ou divulgação de uma obra humana impedindo sua liberação à exibição pública. A censura se baseia na ideia autoritária de que existem sujeitos em uma sociedade capazes de julgar o que devemos ou podemos escutar, ver ou admirar. Todavia, da mesma forma como não existe “ditador do bem”, a censura falha em seu intento principal de livrar a sociedade de uma ideia que tenta se expressar; com o tempo – por melhores que sejam suas intenções – ela apenas mantém essa ideia prisioneira no inconsciente social, onde se nutre e cresce.
O que é recalcado não desaparece, e fatalmente se fortalece.
Danilo Gentili foi um dos principais comediantes atacados por grupos identitários. Sofreu processos, ataques e violências por contar piadas sobre mulheres, crianças, nutrizes e muitos outros grupos. Apesar de ele se situar no ponto oposto ao meu no espectro político, creio que ele está correto em sua perspectiva sobre o humor. Ele é vítima da censura que uma parte da esquerda faz e se tornou incansavelmente perseguido pelos identitários e pelas patrulhas de costumes, algo absolutamente medieval. A “hegemonia da ofensa” – onde as piadas são inadequadas apenas a partir de uma escolha política – que ele denuncia é real. Nela se condena por preconceito alguns grupos, enquanto outros são liberados. Fazer piadas com gays, afirma ele, é errado, mas com a pretensa homossexualidade do filho de um presidente de direita, está liberado.
As punições que os stand-up receberam nos últimos anos são a imagem mais clara da absoluta falta de respeito com a liberdade de expressão que existe no Brasil. Acreditar que uma piada possa ser proibida daria arrepios na espinha de qualquer liberal que aceita as liberdades individuais como elemento fundador da democracia, mas no Brasil recebe aplausos até daqueles que repudiam o fascismo e se se acreditam democratas. Censurar uma música do Chico Buarque ou uma piada tosca do Rafinha Bastos tem o mesmo peso, pois na censura não há debate sobre o mérito e a qualidade da obra, apenas sua conveniência moral ou política. Portanto, deveríamos reagir com a mesma energia contra qualquer uma destas arbitrariedades.
O grande problema com a proteção aos grupos “frágeis” é que a blindagem destes grupos – mulheres, gays, negros, deficientes, trans, etc, sobre o que se pode – ou não – dizer gera mais exclusão do que algum efeito pedagógico. Uma pessoa cujas falhas não podemos apontar e zoar (como fazemos todos os dias com nossos amigos) é alguém diferente de nós; frágil e intocável. Estes grupos passam a carregar o status de crianças, fracas demais, demandantes de proteção. Existe um preço a ser pago se alguém se considera (ou é considerado) acima das críticas – ou abaixo delas. Se você não pode brincar com suas características, não vai conseguir proximidade. Entre os próprios protegidos existe reação, pois que o preço da proteção é a eterna imaturidade.
“Ahhh, mas negros, gays, loiras etc eram humilhados com piadas que os diminuíam”. Isso é verdade, mas a maneira de lidar com esse problema não pode ser a repressão, que só piora a exclusão – como bem nos ensinou Freud. A forma mais justa é, diante de um ataque contra estes grupos, valorizar o fato de alguém ser mulher, ser gay, ser negro, ser loira ou ter alguma deficiência e não excluí-los das piadas, pois estas auxiliam na criação de um fator especial nas comunidades humanas: a intimidade. Além disso, todos nós aprendemos desde muito cedo a diferenciar as piadas e seus contextos, em especial reconhecer quando a piada é um simples veículo usado para um ataque preconceituoso. Esta sim é deletéria, mas não passa de uma falsa piada, um gracejo que apenas dissimula uma agressão. Entretanto, mesmo ela não se extermina com censura, apenas com educação e convivência. Aliás, o grande elixir para curar o preconceito é esse: jamais segregar e sempre estimular o convívio dos diferentes; esta sempre foi grande arma para derrubar os muros entre nós.
Tenho profunda admiração por humoristas que rompem essa barreira. Danilo Gentili tem meu total repúdio por sua postura política, mas minha solidariedade pelo direito de fazer e contar piadas sem a ameaça de ser censurado. Muitos outros humoristas enfrentam o bombardeio da “correção política” e se colocam como linha de frente da ampla e irrestrita liberdade de expressão. Entre eles, Rick Gervais e Dave Chappelle são os melhores exemplos de humoristas do politicamente incorreto, e por isso merecem minha admiração e respeito.