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Livro

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Minha irmã ficou usando o computador do meu pai no tempo em que ele esteve doente no hospital, em especial porque nele estavam os programas do banco para gerenciar seu dinheiro. Depois da morte dele o computador acabou ficando para mim, e é nele que eu passo os dias escrevendo. Não troquei nada na sua aparência ou configuração, apesar de adorar formatar computadores. Quem já trabalhou num computador recém formatado conhece a maravilhosa sensação, como de um banho recém tomado depois de jogar bola na chuva. Tudo fica mais rápido, mais simples, mais otimizado; tudo é limpo e claro.

Mas não fiz isso com o PC do meu pai. Nesse caso decidi manter as coisas dele intactas, em especial o “wallpaper”, uma obra sua baseada em um famoso quadro de Norman Rockwell – desenhista do “American way of life” que ele adorava, em especial pelas expressões dos personagens. Ontem, ao procurar fotos antigas no computador, esbarrei numa pasta “artigos”, que julgava serem coisas que eu mesmo havia escrito. Cliquei e para minha surpresa estava ali escondido o que, para mim, é um raro tesouro.

O livro jamais publicado que ele escreveu.

O título é chamativo: “Reflexões de um Espírita Laico”, o que tem muito a ver com as “Memórias de um Homem de Vidro”, livro que humildemente escrevi há quase 20 anos, provavelmente porque, como ele, queria deixar reflexões sobre minha breve passagem pela Terra. Neste livro meu pai busca as origens do pensamento espírita e estabelece o corte epistemológico do espiritismo laico, modelo filosófico e científico dedicado ao estudo da sobrevivência do princípio espiritual desvinculado das amarras moralistas da religião, em especial o sincretismo espírita-cristão como se observa no Brasil. Muitas das crônicas foram publicadas em periódicos e livros, a pedido dos editores, mas ele se negou a formatá-lo em forma de livro. Por certo que tinha medo da sensação de não gostar de algo que não poderia fazer retoques e modificar.

Apesar de ter se negado a transformar suas ideias em livro, creio que esta decisão não mais lhe pertence. Digo isso porque acredito que as ideias dos homens pertencem ao mundo – aliás, uma frase que ele cansava de me repetir. Caso fossem descobertas agora obras de Heráclito, de Heródoto de Aristóteles e de Parmênides nos escombros da Biblioteca de Alexandria com uma nota na capa escrito em grego “Não Publicar” (“δεν δημοσιεύεται” ou “den dimosiévetai”) e com a assinatura do autor, seria lícito aceitar suas exigências? Seria justo privar os leitores das ideias destes homens por um capricho humano seu? Ou, como meu pai sempre dizia, seus pensamentos pertencem ao mundo? O livro que ele escreveu é uma coletânea de reflexões sobre o espiritismo para o século XXI, muitas delas já publicadas no jornal do CEPA. Portanto, não faz sentido impedir que sejam agrupadas em formato de livro.

Minha reclamação para ele durante anos foi de que suas ideias – inovadoras e desafiantes – no campo do espiritismo jamais foram devidamente publicadas. “Não gosto de escrever, prefiro falar”, dizia ele. A verdade é que as palavras ficam registradas e são, por definição, incompletas na tarefa de cobrir a infinitude das descrições do mundo. Era para ele torturante a simples criação de uma frase, pois seria sempre possível ajustá-la, torná-la melhor, mais abrangente, mais enxuta, mais clara.

Mas, inobstante o incômodo pelo perfeccionismo virginiano que sempre o caracterizou, ele escreveu. Ler seu livro agora, alguns anos após sua morte, é como escutar suas palavras na sala de casa, com sua voz suave e seu jeito meigo de conversar.

Espero conseguir publicar este livro em breve. Acho que devo isso ao velho.

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Essências

Eu confesso que torci pelo Biden na última eleição presidencial americana. Sei que a vitória de Trump poderia significar um estreitamento da relação entre o genocida daqui e o idiota de lá, então atirei no Trump para acertar no Bolsonaro. Entretanto, nada mais elucidativo do funcionamento do Imperialismo do que a vitória de Biden. Para quem, como nós, observa de fora, é impossível perceber qualquer diferença significativa entre a administração destes dois presidentes, mas se houver alguma, será no sentido de desmerecer o atual governante.

O anúncio das tensões crescentes na Ucrânia nos demonstra que qualquer presidente americano terá como objetivo principal o incremento do poder imperialista sobre o planeta, tanto quanto qualquer um dos seus antecessores – igualmente violentos. Não importa a quantidade de cadáveres de gente de língua estranha e de pele mais escura; o importante é manter a hegemonia, esta mesma que determina o “american way of life”. Não é possível notar diferença significativa na política externa, nas guerras e golpes, inobstante o vencedor das eleições americanas ser qualquer uma das sublegendas do imperialismo, a “direita A” ou a “direita B“. O mesmo ocorre há 70 anos em Israel: não importa quem vença as eleições por lá, a política de massacre e limpeza étnica dos palestinos será igual; o sionismo não é projeto de governo, mas uma política de Estado.

Existem coisas que fazem parte da essência do país, como o imperialismo e o sionismo. Da mesma forma, não faz diferença onde o capitalismo se instale; sua essência é o empobrecimento da população, a concentração de renda, a destruição do meio ambiente e a tendência à formação de grandes oligopólios e monopólios. Depois disso, uma máquina absurda de propaganda e a instalação de um Estado policial de brutalidade crescente será institucionalizada, para desta forma manter a classe operária comportada e satisfeita com as migalhas recebidas.

Assim como a paz mundial não será decidida pelas eleições americanas e o futuro da Palestina não estará nas cadeiras conquistadas no Knesset, o desenvolvimento das potencialidades humanas, a divisão equânime das riquezas e a solidariedade entre os povos deste planeta jamais chegará através do modelo capitalista, pois que o caráter predatório do capitalismo está entranhado inexoravelmente em sua essência mais profunda. Não será fazendo concessões à classe burguesa que conquistaremos a justiça e o equilíbrio.

E lembrando: também não haverá humanização do nascimento e respeito à fisiologia das mulheres enquanto o parto for controlado por cirurgiões. Afinal, intervir sobre os corpos está na essência destes profissionais. Como seria possível que agissem contra suas mais profundas inclinações? Uma política de “reformismo” e a manutenção do sistema de poderes nos levou a situação de agora. Desta forma, por que deveríamos continuar numa rota que jamais nos levou a mudanças consistentes?

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