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Gravidez e Desejo

Não existe gravidez indesejada.

Ok, aquelas gestações resultando de estupro poderiam ser as exceções, mas são estatisticamente insignificantes. O que existem são gestações onde o desejo não é reconhecido ou explícito. Eu, por exemplo, tive dois filhos de duas gravidezes não planejadas, mas plenas de desejo, um elemento sorrateiro, caótico e inconsciente – como haveria de ser.

A ideia de centrar esforços sobre “gestações conscientes” sempre me pareceu um delírio racionalista. Escuto isso desde os bancos escolares, antes ainda da escola de Medicina. Passa pela ideia de que, mais bem informadas e “orientadas” as meninas teriam uma capacidade maior de evitar gestações inadequadas, fora de hora, prematuras, indesejadas ou inconvenientes.

Eu rejeito a ideia de que esta ação poderia trazer benefícios para além de mudanças marginais, locais, pontuais e absolutamente pouco significativas. E digo isso porque não acredito que estas escolhas sejam majoritariamente controladas por elementos conscientes, os únicos que poderiam ser transformados pela educação e a informação. Ou seja, não se transforma racionalmente uma pulsão de origem irracional.

Minha namorada engravidou aos 22 anos, em plena faculdade de enfermagem, e seu namorado (eu) era estudante de medicina, ambos de classe média. A gestação, como eu disse, não foi planejada. Aliás quem planejaria ter um filho aos 21 anos, sem emprego, morando na casa dos pais? Pois mesmo assim, com toda a informação possível, com toda a educação necessária, uma gestação ocorreu – e logo depois outra.

Por quê? Ora… porque a informação não é capaz de mudar o desejo. Havia um desejo que transitava por detrás das palavras e gestos, como uma sombra, percorrendo caminhos para se expressar. Afinal, ele está onde não devia estar, ele “desacata a gente que é revelia, pois é feito estar doente de uma folia, como uma aguardente que não sacia, e nem dez mandamentos vão conciliar”, e nem todas as aulas, palestras, desenhos, gráficos, filmes vão tornar o sagrado em profano ou transformar o quente no frio.

Nas comunidades mais pobres as meninas não engravidam por serem burras ou pouco educadas nas questões do sexo. Ora, que ingenuidade. Elas sabem como evitar uma gestação, e desde muito cedo na vida. Aprendem nas quebradas e nos cochichos, encostadas no muro da escola. Aprendem da mãe, e até do pai. Ensinam-se uns aos outros na escola da vida cotidiana. A questão da gestação na adolescência passa longe de uma abordagem cognitiva, apesar desta não ser uma perspectiva desprezível; ela é apenas insuficiente e não produz efeitos consideráveis.

A questão passa pelo reconhecimento das pulsões sexuais como forças propulsoras da criatividade humana, muito mais fortes e potentes do que qualquer abordagem racional e educativa, mas também pela percepção da questão social que subjaz, muito mais significativa e que regula a política dos corpos nas estruturas sociais exploradas, como as comunidades onde a gestação na adolescência é prevalente.

Lá, nas quebradas, a gestação da menina de 15 anos tem uma repercussão completamente diferente da garota burguesa grávida nessa idade e que mora na zona sul. A ausência de perspectivas de crescimento pessoal que caracteriza a primeira se choca com as inúmeras portas que se fecham à segunda diante de uma gestação “fora de hora”. São realidades sociais extremamente díspares, criadas por contextos diferentes e produzindo consequências divergentes.

Por isso, não há como uma abordagem autoritária (na minha época se planejou dar injeções de progesterona em meninas de vilas populares) ou meramente educativa produzir resultados relevantes. Por mais que os ginecologistas se sintam desprestigiados a realidade é que a diminuição de casos de gestação na adolescência quase nada tem a ver com a ação médica que eles poderiam produzir. A solução – atenção para o spoiler – é política, e tem a ver com a superação do capitalismo, em direção à construção de uma estrutura social igualitária. Enquanto não houver uma transformação social, através de uma nova forma de organização das cidades, da renda, da moradia, da educação e do emprego, continuaremos a ver gestações que ocorrem em épocas muito precoces, o que acarreta um custo social e familiar muito grande.

Uma percentagem ínfima de gestações são planejadas, no sentido racional do termo. Quando uma mulher diz “não foi planejado” fica explícito para mim que ela apenas permitiu que seu desejo tomasse as rédeas do processo, sem a interferência da razão.

“Quem pensa não casa”, já dizia o velho adágio. Já pensou nesse ditado de forma mais profunda, tentando encontrar o que está escrito por detrás das palavras? Se você puder entender “casar” como um conceito amplo – que inclui amar alguém e ter filhos – a frase fica ainda mais interessante. Assim, para casar – amar, procriar, cuidar – é necessário não pensar, não racionalizar e permitir-se desejar. O amor é exatamente isso, uma perda do controle, uma submissão ao desejo.

Por certo que faz sentido orientar meninas sobre anticoncepção, gestação na adolescência, métodos alternativos, drogas para evitar, riscos e benefícios. Médicos deveriam ser essencialmente pedagogos (e não meros despachantes de drogas). Entretanto, para mim é evidente que essa estratégia é incapaz de mudar a situação porque se baseia numa ilusão racionalista. Parte do princípio que o sexo e a própria reprodução podem ser controlados – ou domesticados – pela informação. Isso é puro delírio médico, uma onipotência de controle.

Eu escuto essa queixa sobre a gestação na adolescência há 40 anos e sempre do mesmo jeito. Não muda uma vírgula do que os médicos dizem há 4 décadas, apesar de todas as evidências mostrarem que a abordagem usada por todo esse tempo está apenas equivocada. É duro aceitar, mas os médicos não tem quase nenhuma importância nessa equação, porque gestação na adolescência não é um problema médico, é um sintoma social – mesmo que, por certo, produza repercussões médicas.

A ideia de campanhas, injeções compulsórias em populações vulneráveis, educação nas escolas e distribuição de anticoncepcionais jamais solucionaram o problema. E a razão é simples: gestação na adolescência se adapta ao microcosmo das populações exploradas. Para que essa escolha inconsciente desapareça do horizonte das meninas é preciso transformar a própria sociedade e a cultura onde elas estão inseridas. Quando a pobreza for exterminada a gestação “não planejada” cairá vertiginosamente sem qualquer campanha, exatamente porque estas meninas, historicamente roubadas em suas alternativas, verão o futuro de si mesmas com outros olhos.

Muitas vezes reclamamos das gestações precoces como o faz um médico indignado com as verminoses no posto de saúde. Sua inquietude e sua legítima angústia diante dos casos que se avolumam o faz cobrar uma ação médica, imaginando que a verminose é um problema que pode ser medicamente solucionado.

Agora imagine ele passar 40 anos exigindo novas drogas, lutando para educar crianças a lavar as mãos e as frutas que vão comer, dando palestras na escola do bairro etc. e sem jamais perceber qualquer diminuição nos casos, porque nunca se dispôs a visitar a casa desses pacientes situadas à beira do valão imundo que os circunda. Verminose é um problema médico como a desnutrição, mas nenhuma destas doenças tem uma solução médica. Pois só no dia em que ele enxergar a questão social que produz há décadas essas enfermidades ele poderá abandonar seu discurso ingênuo e sua crença racionalista inocente.

Eu, pessoalmente, cansei desses discursos médicos que estão apartados da sociologia e da politica. São palavras vazias que nada acrescentam ao tema, pois as soluções apontadas são comprovadamente inúteis por colocarem nas mãos dos médicos uma solução que lhes é impossível. Isso apenas alimenta a frustração, causada pela onipotência da corporação.

Os nossos esforços deveriam estar direcionados muito mais à luta política para a erradicação da pobreza do que ficar tapando seus furos, tal como fazem os médicos abnegados que oferecem vermífugos às toneladas para crianças que moram em situação de miséria, excluídos da sociedade. Melhor fariam oferecendo injeções de indignação e pílulas de consciência de classe para que, desta forma, pudessem combater em conjunto as verdadeiras enfermidades: a iniquidade e a injustiça social.

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Arquivado em Parto, Política

Duas vidas

“Ahhh, mas são duas vidas, e cabe proteger ambas. Para evitar basta se cuidar”.

Não é simples assim no mundo concreto. Vai depender do seu conceito de aborto e da época da gravidez em que ele foi realizado. No mais, é por haver vida – mesmo em potencialidade – que sou contra o aborto; prefiro preservá-la sempre. Porém, todas as vidas, e encarando sua manifestação concreta. Portanto, a realidade é outra, diferente das visões idealistas. No mundo real as mulheres vão acabar procurando métodos ilegais – portanto, perigosos – para interromper as gestações e vão correr sérios riscos; muitas delas vão terminar morrendo no auge da sua juventude.

Ser a favor da descriminalização do aborto e permitir que seja incorporado pelo sistema de saúde significa encarar o mundo como ele é, sem visões idealistas e aprendendo com as experiências REAIS de sua aplicação. As mortes evitáveis de mulheres em abortos clandestinos não nos permitem mais perder tempo debatendo aspectos metafísicos da vida e seu valor; é preciso agir com a ideia de “menor dano”, tirando milhares de mulheres do destino terrível da morte por abortos insalubres.

Em todos os países onde o aborto seguro foi instituído pelo sistema público houve diminuição da mortalidade materna e são essas vidas de mães e mulheres que nos cabe proteger, acima de qualquer outra consideração. Isso não invalida a ideia de manter e incentivar a educação de meninos e meninas sobre a anticoncepção e gestação conscientes, mas sim interromper o massacre sobre mulheres pobres que se submetem a métodos cruéis de interrupção da gravidez. Aceitar a realidade acima de nossas crenças e ideais é um passo importante para produzir uma sociedade de paz, onde as gestações sejam uma benção e não um peso ou uma sentença de morte.

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Arquivado em Ativismo, Medicina

Assuntos Médicos

Eu não considero aborto um assunto médico, com exceção dos pequenos detalhes da intervenção como anestesia, antibióticos e posicionamento. Acho que a opinião do ginecologista sobre esse assunto – numa concepção abrangente – é igual a de qualquer outra pessoa da comunidade onde se insere. As questões médicas relacionadas ao procedimento são simples, técnicas e até desimportantes quando se analisam os grandes pontos de tensão.

Aborto é uma questão social e o médico é um dos participantes menos importantes nesse debate. Aliás, os médicos – via-de-regra – são fiéis representantes dos modelos sociais patriarcais. A medicina como instituição é um braço do patriarcado, responsável por sua manutenção e disseminação. Por isso a corporação médica está sempre ao lado das classes mais abastadas em qualquer debate, como os que temos na atualidade.

Eu não acredito numa visão “médica” sobre temas como anticoncepcão, parto humanizado e aborto. As opiniões médicas são as o reflexo de suas visões de CLASSE. Os médicos tem opiniões de classe média alta, que é a classe que (ainda) pertencem. Quando um médico dá sua opinião sobre aborto sua formação técnica não terá nenhuma relevância. O que vai contar é sua formação pessoal e a classe onde está inserido. Muito mais significativa será sua estrutura pessoal, social e emocional do que qualquer aprendizado técnico recebido na Universidade.

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Arquivado em Medicina