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Modelos de ativismo

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Existem, pela minha observação, dois tipos de “ativismo”, e creio que eles podem ser observados em praticamente todas as lutas sociais, do feminismo, passando pelo parto, LGBT e movimento negro.

O primeiro eu chamaria de INTRUSIVO. É o ativismo que é feito para dentro, para o núcleo de ativistas que abraçam essa causa específica. Ele se preocupa em canalizar a indignação coletiva e apontar pontos de confronto com os paradigmas e poderes hegemônicos. Seus líderes são por vezes alçados a posições mitológicas como “gurus” ou “mestres”. Sua autoridade é estimulada por si mesmos e pelos seus prosélitos como inquestionável.

A força dos modelos intrusivos está na focalização em um inimigo externo, palpável, reconhecido, essencializado (mau, egoísta, prepotente, etc) e com isso possui uma energia muito intensa de congregação. O movimento de humanização teve essa cara por muito tempo. Os médicos eram os culpados das mazelas do parto, assim como o capitalismo, a formação profissional equivocada, a academia etc. As mulheres, igualmente essencializadas, eram sempre vítimas impotentes, apáticas, frágeis e desrespeitadas.

O modelo intrusivo se fortalece pela indignação que, finalmente, se ordena em ação reivindicatória. É um movimento de lideranças fortes e bravas, de passeatas e greves. Funciona com a energia libidinal da confrontação com os opressores.

Existe, entretanto, um outro modelo que eu chamo de EXTRUSIVO.

Contrariamente ao modelo anterior, ele se propõe ao convencimento externo. Não se trata mais de “converter os convertidos”, mas de levar “a boa nova aos gentios”. Desta forma, não há como utilizar a energia fulgurante da indignação represada, pois a mensagem não é destinada aos oprimidos, mas aos indiferentes e mesmo aos opressores.

O movimento de humanização do parto e nascimento passou de uma forma muito clara por estes dois modelos. Há 16 anos, quando tive contato pela primeira vez com suas ideias e seus ativistas, tudo era inconformidade. Havia uma força, que aos poucos foi se expandindo, de questionamento àquilo que percebíamos como prática inadequada, hoje em dia referida como “violência obstétrica”. Entretanto, carecíamos de bases suficientemente firmes e abrangentes para formular o que verdadeiramente era a humanização e quais propostas desejávamos levar adiante.

O tempo fez amadurecer nosso paradigma e, por consequência, nossa postura. A visão tripartite da humanização hoje é aceita de forma quase unânime: Em primeiro lugar a garantia do protagonismo, seguida da visão interdisciplinar e, por fim, a vinculação com a saúde baseada em evidências. Com esse escopo ideológico seria possível dizer ao que viemos, e passar a usar o ativismo extrusivo como ferramenta.

Os filmes como “Orgasmic Birth” e o “Renascimento do Parto” são marcas claras de um novo direcionamento, já dentro da lógica do ativismo extrusivo. Já não nos parece mais suficiente convencer doulas, parteiras e os poucos médicos humanizados para as nossas ideias, mas ampliar o público para atingir “novos mercados” – para usar um jargão neoliberal. Queremos agora seduzir novos profissionais do parto para as nossas fileiras, para que possam oferecer uma atenção centrada no tripé que nos define: protagonismo, interdisciplinaridade e MBE.

Todavia, para atingir tais fronteiras é fundamental perceber que os adversários não podem ser destruídos, mas precisam ser seduzidos a valorizar os pressupostos que carregamos como bandeira. Não se trata mais de acabar com os “inimigos” através de táticas de guerra, mas cooptá-los com a doçura das evidências.

Espero que nossa transição possa ser entendida como um processo necessário de amadurecimento e fortalecimento dos paradigmas. Do entendimento de como funcionam essas lutas, e como elas são importantes, surgirão os próximos passos do ativismo pelo parto e nascimento.

E assim será até o dia em que o respeito à liberdade e à autonomia de uma gestante se tornar algo tão natural que qualquer ativismo será obsoleto, como o são desnecessárias hoje em dia as lutas pelo reconhecimento lei da gravidade ou a realidade do heliocentrismo.

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Ultrapassando a linha

Florbela Espanca

Quando vejo pessoas defendendo o parto normal e/ou humanizado para além do que considero justo ou conveniente eu lembro das palavras de Robbie, a quem considero uma grande feminista: “Não podemos permitir que nosso fervor humanista transforme este movimento na Gestapo do parto normal”.

Por entender que o parto humanizado está abaixo do protagonismo restituído às mulheres é que a defesa das nossas teses não pode ser mais um modelo de opressão contra elas. Nossa defesa deve focar na mulher e suas escolhas. Nenhum modelo é superior a isso.

Fanatismo é o “império da paixão“. É ruim, mas impossível iniciar qualquer projeto se a paixão não nos tomar por inteiro. Seja no amor ou na construção de qualquer empreendimento humano. Por isso que, ao mesmo tempo que o critico, vejo o “fanatismo” como um elemento primordial de nossas ações, que apenas necessita, tal qual um garanhão indômito, ser amansado pela razão.

Eu acho que um certo “fanatismo” (quem não?) faz parte do processo inicial de qualquer grande ideia. Somos tomados pelo discurso revolucionário e olhamos o mundo pela ótica estreita de nossas paixões. Todo mundo já passou por isso, pelo menos aqueles que ousaram amar – pessoas ou ideias.

Fanatismo, como evitar?

Minh´alma de sonhar anda perdida
Meus olhos ficam cegos de te ver
Não és sequer a razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida

(Florbela Espanca)

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Amamentação, Ativismo e o Futuro

FRANCE BREAST FEEDING
Entrevista da escritora e feminista Elisabeth Badinter…

Primeiramente eu acreditei se tratar de um texto muito antigo, talvez dos primórdios do movimento feminista contemporâneo, lá pelos anos 60. Quando vi que era uma entrevista de 2010 eu fiquei surpreso, pois percebi que a autora está absolutamente defasada no seu discurso de crítica às medidas de incentivo à amamentação, contrária a tudo que se escreveu e publicou sobre os benefícios desta ação. Ok, ela fala que amamentar é bom, mas que este estímulo só deveria ser para os países pobres com problemas de saneamento.

Como? Europeias não tem vantagens em amamentar e ficar com seus filhos? Ora, Dra Elisabeth… De onde a senhora tirou elementos para criticar tais ações? Que estudos sustentam isso?

Eu gostava muito do seu trabalho, em especial um livro que li nos anos 80 chamado “O Um é o Outro“. , mas esta sua entrevista sobre amamentação, apesar de ter já 4 anos de idade, é extremamente superficial e equivocada. As perguntas, em verdade, são muito mais conscientes e elaboradas que as respostas. Se tivesse sido escrito por uma estudante de jornalismo, ou alguém totalmente distante do tema, eu entenderia. Mas um depoimento como esse vir de uma feminista é no mínimo estranho. Ela desqualifica TODAS as pesquisas que demonstram a qualidade da amamentação não apenas do ponto de vista biológico, mas igualmente psicológico. Trata a amamentação como algo bom para “pobres” e o contato com o bebê como uma espécie de “frescura burguesa”. Tenta colocar aqueles que lutam pela humanização do parto e da amamentação como retrógrados e machistas, mas aponta para um futuro obscuro. Sim, “mulheres não são chimpanzés”, mas afinal… o que são? Se não podemos aprender com a etologia – o estudo do comportamento animal – como poderemos definir o ser humano numa era pós Darwin? O contato desses animais com seus filhotes não nos aponta para uma importância fundamental dessas atitudes? Deveríamos nós, numa demonstração de arrogância típica do século XVIII, acreditar que nada temos que ver com os milênios que nos antecederam e que moldaram nossa essência animal e mamífera?

Pois eu responderia a ela que temos muito mais de chimpanzés do que ela imagina. Nosso comportamento é marcadamente “animal”, no sentido de buscarmos vias inconscientes para a satisfação de nossas necessidades, para além do que a nossa tênue racionalidade é capaz de abranger.

Quanto aos exageros dos ativistas…

Ora… quem não os comete? Aqui no Brasil, mas creio que também em Portugal, muitos ativistas por vezes erram o alvo ao culpabilizar mulheres por não obedecerem um ideário de parto normal, sem drogas, sem intervenções e com amamentação prolongada. É claro que este não é um roteiro único, mas um mapa para que se chegue a uma satisfação no processo de maternagem. Ele NÃO é constituído de um caminho único, mas de infinitas alternativas. Entretanto, ainda é comum vermos colegas indignados com os desvios de algumas mulheres, e isso é capaz de culpabilizá-las.

Entretanto, mesmo com esses contratempos, não há como esconder que o parto normal humanizado e a amamentação efetivas oferecem benefícios inequívocos para o binômio mãe bebê. Portanto, deve ser sim uma política de governo, da mesma forma que deve ser diminuir o consumo de açúcar (principalmente por crianças), publicidade infantil e consumismo, pois, mesmo sabendo que as famílias tem o DIREITO de criar seus filhos a partir dos seus valores, é DEVER do poder público oferecer as informações e o estímulo para uma educação mais saudável e segura.

Podemos concordar com Elisabeth Badinter quando ela reclama do cerceamento de opções e de uma espécie de “patrulha ideológica” sobre a amamentação. Não devemos criminalizar estas opções, pois nunca temos pleno conhecimento dos determinantes (conscientes e inconscientes) para a sua adoção. Por outro lado, a pensadora erra feio ao deixar de enxergar os benefícios inquestionáveis conseguidos com o ESTÍMULO à amamentação e ao parto normal. Fazer que as mulheres REGRIDAM às teses feministas dos anos 60 – onde o objetivo era uma igualdade irreal e ingênua com os homens – é um desserviço ao feminismo, que abandonou estas teses em nome de uma valorização das características femininas mais preciosas, como a gestação, parto e amamentação. Se estas características femininas NÃO SÃO determinantes do feminino (que em muito extrapola estes elementos) também não são algo que deve ser extirpado das mulheres, como defeitos, fraquezas ou equívocos da natureza.

A entrevista da Sra Elisabeth Badinter pode ser encontrada aqui:

Mulheres não são Chimpanzés – Elisabeth Badinter

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Ativismo e Julgamentos

cabo de guerra

É impossível exercer ativismo sem parecer estar julgando. Quando comecei a falar sobre partos humanizados, partos em paz, partos com prazer, amamentação por livre demanda e autonomia para as gestantes fazerem escolhas informadas muitas mulheres se sentiam atingidas pela força das minhas palavras. Qualquer elogio à uma mulher que havia parido livremente parecia ser uma ofensa àquelas que haviam optado pela cesariana, ou mesmo que haviam realizado uma com indicações dúbias. Falar da alegria e da suavidade de parir parecia – apesar do paradoxo – algo rude e insensível.

Não culpo as mulheres que se sentiram atingidas por estas descrições de parto. Escutar tais relatos parece ofensivo; é como relatar a nossa felicidade diante de alguém que sofre. Entretanto, se é importante manter a chama de paixão sobre estes temas, pois que eles nos falam de nossa vinculação mais profunda e perene com a vida, há também que se cuidar dos interlocutores, os quais podem se ferir com as nossas palavras, mesmo quando repletas de esperança e otimismo.

Aprendi errando, sem dúvida. Entretanto, entender a visão diferente que as mulheres podem ter do próprio corpo e seus partos é fundamental, assim como compreender os diferentes estágios de percepção que temos diante de um determinado problema. Algumas pessoas podem discordar à primeira vista dos pressupostos da humanização do nascimento, ou do combate ao consumismo infantil, da alimentação saudável e tantas outras questões, mas podem mudar sua ideia de acordo com o amadurecimento de suas concepções. Propostas como estas, que atingem valores muito profundos de uma cultura, não podem ser impostas; precisam ser cozidas em fogo lento, vagarosamente, com a chama das evidências. Por isso é que elas precisam ser necessariamente vagarosas, para que possam ser efetivamente assimiladas.

Nunca abandone teus sonhos, tuas lutas e tua dedicação a estas causas, e continue com esta postura de acolher a todas que porventura quiserem aprender com tua experiência. Auxiliar sem julgar, oferecendo a mão a quem desejar, é o centro de qualquer proposta de sociedade digna e justa, que entende e estimula a diversidade.

Qualquer postura radical e que não respeita a visão discordante do outro tende a produzir uma atitude defensiva dos oponentes. O que me parece mais sensato é cultivar a paciência e aguardar o amadurecimento, mesmo que demorado. Aliás, é assim que educamos crianças: com paciência, amor, carinho e a inevitável paixão, que deve permear todas as relações humanas.

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DEBATE – Ana Cris

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In my veins there is no blood running….

 DOULAS AND ACTIVISM

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In my veins there is no blood running……. But activism!
By Ana Cristina Duarte*

I have been shopping in the ‘activism mall’ since the day I was born, 47 years ago, via a C-section justified by ‘failure to progress’. I have been living my life defending the planet, the women, the weak, but the real activism was dormant for about 35 years. Then I became a mother and my normal circulatory system started changing. My blood started boiling. Right there, during my own unnecessary C-section, and then after my VBAC, my character was built. It was through these two very visceral processes that I finally understood my role here on this planet. One can be happy knitting throughout life. I can only be happy as long as I fight.

Fighting will always be my fate. I have seen a great deal of resistance to the fact that I am a woman and I discuss fighting so much. They say that women should not fight, because that is a man’s job. They say that women should be sweet, soft, and feminine (as if there were categories of appropriate behaviors for men and women) and learn to receive and conquer using their power of loving seduction. I am not like that, although I have met wonderful women that conquered extraordinary things with just their patience and soft, subtle and loving seduction. Don’t get me wrong, I do know how to be affectionate. As a wife, mother, aunt, and doula (when I was working as one) and today, as a midwife, love is always around my relationships. I carry love as my main ally to understand a woman and to assist a birth.

Love flows from all my pores when I want it to. I love my clients, their partners and their babies. Birth is an extravaganza of love, isn’t it? Therefore, we must encompass a lot of love to assist a woman that is about to give birth. However, when I am not assisting births, I fight for the women. The ones I assist and all the other ones. I fight for them to birth with dignity. I coordinate a very nice group for pregnant women where I fight, every week, for them to see the reality of the current obstetric situation. As soon as they realize it, they go by themselves after what they want, because they understand that they need to do so, otherwise they will probably end up with a C-section. When I write, I fight for people to understand that Brazil is far from offering fair assistance to birthing women. I have met many other women that enjoy fighting. Together we are an army. Many are mothers, some are doulas, a few are midwives or nurse-midwives and a scarce number of them are physicians. The women fight for their rights. The doulas, considering their job is giving unrestricted support to women, also fight. The health professionals (the few that support our “radical” views), usually cannot openly fight. When they do, they are massacred by their colleagues, as in the ‘Monkey Banana and Water Spray Experiment’.

I have met fantastic doulas all over Brazil, some of them operated authentic obstetric revolutions in their towns, through solitary but persistent fights. They carried stone after stone to build better assistance for birthing women. They fought for them, they helped them find other birth assistants, they hugged them and they said to them:

– Whatever you wish, anything you decide, I am with you, no matter what! However, even though I am on this side of the trench (I use this belligerent term on purpose), it is not easy. We are a minority and we fight for something that is seen by lots of people as ‘radical’, which is the right to birth with dignity. We are often being accused of all kinds of things. The first time I worked as a voluntary doula (which I did for 2 months) I learned that I was frowned upon in that hospital, because they were accusing me of performing vaginal exams on the women, ‘as soon as the nurse left the room’. When I found out about this horrible lie I could not sleep at night. The feeling of unfairness was like a frog stuck on my throat. I ended up getting used to being accused of all kinds of things. I also heard all sorts of injustice being gossiped about doctors, nurses and doulas that I know and whose work I know and admire. I have a collection of lies that were said about all of them. If I assist a birth with one of those doctors that takes long time, it is likely that soon I will hear something like: “the baby almost died because the doctor refused to perform a C-section, because he prefers a normal birth at all costs’. That beautiful water birth becomes a horror story very quickly, with blood and placenta splattered on the floor and walls. The breech baby was born with broken legs (not!). Can you believe that my doctor friends have a whole area in the NICU destined for all their babies that ‘were born too late?’ How about the doula that impeded the anesthesiologist to administer the anesthesia, how powerful is she! The anesthesiologist has all the will to expel the father from the room (and in fact, it happens) but cannot do anything about the cocky, dangerous and powerful doula? Why I am relating these facts? Because these fairy tales that they love to tell everywhere about how dangerous the doulas are and how much they intervene in the doctors’ jobs, are not true. They are as misleading as the vaginal exams I performed as voluntary doula. I got tired of hearing these stories. It is true that doulas help the women run away from their doctors. It is true that they help them to leave the hospital, when they decide to do so as they realize they are going to be prepped for C-section under false indications. It is true that they are, actually, the only ones that can have voice their client’s voices. And, if a woman tells her doula that she wants to run away from the hospital, and that she needs another doctor to assist her birth, I am pretty sure that most doulas would not only find another doctor, but they would also stay by her side until she sees another one. Doulas do not make decisions for the women. Doulas do not perform medical procedures. They do not ‘perform births’. However, the ‘true doulas’ go to great lengths to help their clients’ wishes come true. Above all, ‘true doulas’ will remind the women that they have a voice and that they can express whatever they want.

Brazil needs many more activist doulas in order to make a fairer reality for women. Individually they probably did more for the women in the last 10 years than 35 years of loving seduction collectively did. A woman that has an activist doula by her side will have greater chances to birth with dignity, as opposed to one that does not have a doula, or one that has a doula that does not fight with her. Perhaps one doula could be recriminated for fighting so much. Maybe she will be punished, even within the movement that she belongs to. She could be possibly be banished from a hospital when her fight is opposed to their financial interests. As for me, I will always be ready to support any doula that has been punished for helping a woman that asked for help. The reality is that, in Brazil, it is not possible for a doula to be a good doula if she is not an activist too (at least in the near future). If we were in Holland, we wouldn’t have to take on so many fights against the obstetric system. There the system works well, even with no doulas. But here, a woman will only give birth if she runs away from unnecessary medical procedures, from the 90% of scheduled C-sections in the private health system, from the common obstetric violence, from the health plans’ financial interests, from the inefficiency of ANS (National Agency of Health), from the slowness of the Health Department and from the outdated schools of obstetric medicine and nursing. With so many obstacles to normal birth, it is clear that we need to fight, all of us! * About the author: Ana Cristina Duarte is a mother, wife, biologist, doula, midwife, author, lactation consultant and birth activist.
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Nas minhas veias não corre sangue…
… corre ativismo!

Sim, no dia que eu estava para nascer, de uma cesariana há 47 anos por “falha da indução”, enquanto eu aguardava na fila, eu decidi dar umas voltas e passei na lojinha do Ativismo muitas vezes. Quando eu cheguei aqui na terra, o ativismo foi cozido em banho maria por 35 anos. Apesar de ter passado uma vida em defesa do planeta, das mulheres, dos oprimidos, meu sangue ainda não estava fervendo .

Foi quando eu decidi ser mãe que o processo começou, e daquela circulação normal, de pressão arterial básica, surgiram as primeiras bolhas de fervura. Ali, durante minha cesariana desnecessária, e depois em meu parto normal hospitalar, foi que se construiu quem eu sou hoje, finalmente. Foi nesses dois viscerais processos que eu entendi qual era o meu papel aqui nesse planeta. Uma pessoa pode ser feliz fazendo tricô por toda uma vida. Eu só posso ser feliz lutando. Lutar sempre será a minha sina.

Já encontrei muita resistência ao fato de eu ser uma mulher e falar tanto em luta, luta, luta. Dizem por aí que mulheres não deveriam propriamente lutar, que isso é masculino, coisa de menino. Que elas devem ser doces, meigas, femininas (como se houvesse uma categoria de comportamentos corretos para mulheres) e aprender a receber o que for conquistado através de seu poder de doce sedução amorosa. Eu não sou essa, embora tenha conhecido mulheres fantásticas, que conseguiram conquistas extraordinárias apenas com paciência e sedução sutil, amorosa, delicada.

Não que eu não saiba ser amorosa! Claro que sim! Como esposa, mãe, filha, e tia, e como doula (enquanto atuei como tal) e hoje, como parteira, o amor está sempre presente nas minhas relações. Para atender um parto e entender uma mulher, tenho o amor como meu principal aliado. O amor transborda por todos os meus poros, quando eu quero. Amo minhas clientes, seus companheiros e seus bebês. Parto não é uma extravagância do amor? Então, há que se ter muito amor para atender uma mulher que vai dar à luz um filho seu.

Quando não estou atendendo minhas amadas clientes, no entanto, eu luto por elas e por todas as outras que não vou atender. Luto para que as mulheres tenham um parto digno. Coordeno um delicioso grupo de gestante onde eu luto, todas as semanas, para que elas enxerguem a realidade à frente. Assim que enxergam, elas mesmas vão atrás do que querem, porque percebem onde vão parar se não se organizarem. Quando eu escrevo, eu luto para que as pessoas compreendam a grande distância que estamos, no Brasil, de dar um atendimento às mulheres que estão tendo um bebê.

Eu conheci muitas outras mulheres que gostam de lutar. Juntas formamos um batalhão. Muitas são mães, algumas são doulas, uma ou outra obstetriz ou enfermeira obtetra e alguns raros médicos. As mulheres lutam por seus direitos. As doulas, em sua função de apoio irrestrito às mulheres, também lutam. Os profissionais de saúde, os raros que compartilham de minha visão “radical” (repetindo a palavra da vez), em geral não podem lutar tão abertamente. Quando lutam, são massacrados sem piedade por seus pares, como na história dos macaquinhos que levavam jatos d’água.

Conheci doulas fantásticas em todo o Brasil, algumas das quais conseguiram uma verdadeira revolução obstétrica em suas cidades, através de suas lutas solitárias e persistentes. Doulas que carregaram pedra por pedra na construção de novas realidades. Doulas que brigaram pelas mulheres, que ajudaram suas clientes a acharem outros obstetras no final da gestação, doulas que abraçaram suas clientes e disseram, do fundo do coração:

– O que você desejar, o que for sua decisão, eu vou com você até o fim!

No entanto, estar desse lado da trincheira, aproveitando o jargão beligerante, não é fácil. Sendo minoria e lutando por algo que é visto como “radical”, que é o simples direito de parir com dignidade, estamos sempre sob todo tipo de acusação. A primeira vez em que trabalhei como doula voluntária, por dois meses, soube que eu era “mal vista porque vivia fazendo exame de toque nas mulheres, bastava a enfermeira virar as costas”. A primeira vez que soube desse tipo de acusação mentirosa a meu respeito, meu estômago revirou e eu não dormi à noite. A sensação de injustiça parecia um sapo cururu entalado no meio da minha garganta.

Com o tempo acabei me acostumando, e acabei eu mesma ouvindo todo tipo de injustiça sendo dita sobre médicos, enfermeiras e doulas que eu adoro, e cujo trabalho eu conheço profundamente. Tenho uma coleção de mentiras ditas sobre todos eles, e que eu sei que são mentiras. Eu acompanho um parto mais moroso com um desses médicos, e na semana seguinte ouço a versão de que “o bebê quase morreu porque o médico se recusou a fazer uma cesárea, porque ele prefere um parto normal a qualquer custo”. Aquele parto na água lindo vira o massacre da serra elétrica em 24 horas, onde havia sangue e placenta espirrado para tudo que é lado. O bebê pélvico nasceu com duas pernas quebradas, só que não. Os meus amigos médicos têm, vejam vocês, um setor da UTI neonatal só com seus bebês que “passaram da hora”. A doula outro dia impediu o anestesista de aplicar anestesia, vejam que doula poderosa! O anestesista pode expulsar o pai da sala (como de fato faz, quando necessário), mas nada pode fazer com a petulante, perigosa e poderosa doula?

Porque eu estou contando isso? Porque essas histórias da carochinha que contam em todo canto de que as doulas são perigosas porque elas interferem na conduta dos médicos é mentira. Tão mentira quanto os exames de toque que eu ficava fazendo como doula voluntária. Eu cansei de ouvir essas histórias. É verdade que as doulas ajudam as mulheres a fugirem de seus médicos. É verdade que elas ajudam as mulheres já decididas a saírem do hospital com suas falsas indicações de cesariana. É bem verdade que são, no final das contas, as únicas a conseguirem vestir a camisa das suas clientes. E se uma mulher disser a uma doula que quer fugir do hospital, e que precisa de um médico para assumir seu caso, eu tenho certeza que a imensa maioria das doulas não só vai encontrar esse outro médico como vai ficar ao lado da mulher até ela conseguir passar nessa nova consulta.

Doulas não tomam decisões pelas mulheres. Doulas não fazem procedimentos, não “fazem” partos. Mas aquelas que são Doulas de verdade vão ao céu e ao inferno para ajudar suas clientes no que elas quiserem, desejarem e manifestarem. Acima de tudo, as Doulas de verdade vão lembrar as mulheres de que elas têm voz, têm boca, e que podem falar livremente o que querem.

No Brasil ainda precisaremos de muitas Doulas ativistas, para termos uma realidade justa para todas as mulheres. Mas é certo que nos últimos dez anos elas já fizeram pelas suas clientes, uma a uma, muito mais do que 35 anos de sedução amorosa fizeram coletivamente. Uma mulher que tenha uma doula ativista e doce ao seu lado terá infinitas vezes mais chance de parir decentemente do que uma mulher sem doula ou com uma doula que não lute com ela. Capaz de uma ou outra doula acabar sendo recriminada por lutar tanto. Capaz de ser punida até dentro do movimento ao qual pertence. Capaz das doulas serem expulstas de um hospital, quando essa luta for contra seus interesses financeiros.

E eu, da minha parte, estarei sempre pronta a acolher qualquer doula que tenha sido punida por ajudar uma mulher que pediu ajuda. A verdade é que no Brasil não será possível, a médio prazo, ser uma boa doula sem ser uma doula ativista. Se aqui fosse a Holanda, não haveria tanta luta a se travar no território do sistema obstétrico. Ele já funcionaria até sem as doulas. Mas aqui, onde uma mulher terá que parir fugindo dos procedimentos, dos 90% de cesáreas marcadas, da violência obstétrica, dos interesses financeiros, da inoperância da ANS, da lentidão do Ministério da Saúde, das escolas arcaicas de medicina obstétrica e enfermagem, precisarmos lutar, todos!

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DEBATE – Ricardo Jones

 

DOULAS AND ACTIVISM

Bilingual Version

We are currently having a great social awakening in Brazil about the role of doulas, since two private hospitals in São Paulo banned doulas from entering, claiming that doulas “could increase the levels of hospital infection.” We all know that’s not true. Doulas were trying to lower the absurd cesarean section rates, which are 90% in both hospitals. To protest the ban, on Feb. 3, 2013, doulas from Sao Paulo organized a March for women’s right to have a doula during labor. They walked from one hospital toward the other, and held a huge demonstration with almost 1000 participants. Important leaders of the doula movement wrote letters and articles to newspapers and magazines, and received bitter replies from the doctors. The problem was that the relationship between doulas, from one side, and doctors and institutions, from the other side, had become harsh and disconnective. Yet, as I strongly suggest in this article, for the good of women and babies, doulas should work to establish smooth connections between themselves, mothers-to-be, and the medical staff, and should not challenge the medical team during labor and birth with anger and resentment.

Nothing is certain, only desire and hope. After the remarkable events of February 3rd, 2013, , my concern remains intense. Certainly, consumer power must be strengthened in order to develop a new space to debate the issue of humanized birth care and to produce change. Yet a clear national agenda for Brazilian doulas needs be developed through a maturation process that recognizes the concerns of the “other”—the medical professionals and institutions. The March for Doulas, with its exuberance, filled me with happiness, joy, hope and … doubts. I’m concerned about what our next steps should be after such a large mobilization.

By chance, I had seen the movie Les Miserables the day before the March, and the beautiful images and music were still in my memory. Naturally I drew a line—with a little creativity and imagination—that could unite the seemingly disparate realities of a contemporary march for doulas and a revolutionary scene from the 19th century. The “barricades” scene in the movie enacts a real historical event that closed the streets of Paris in 1830—the popular uprising against the government’s July Ordinances, which suppressed freedom of the press, dissolved the Chamber, nullified the latest elections and allowed the government to rule by decree. I could see a tiny thread connecting those July Ordinances and the “ban on doulas” in private hospitals in São Paulo.

The uprising of the “citoyens parisien” stemmed from the outrageous actions of a government oblivious to the desires of its people, who were hungry and needy. Yet despite their courageous efforts, the ragtag citizens fighting against troops loyal to the King finished as we saw in the film: they all died, decimated by a weakness they hadn’t noticed—they had no physical or ideological infrastructure solid enough to tackle the conservative government with clear and workable proposals. So the Battle of the Barricades was recorded in history as a bloodbath with no positive result (beyond the creation of wonderful songs, a Broadway musical, and Oscar contenders).

This is what I’m afraid of now. What if these hospitals reverse their positions and say, “Well, send your doulas!” Which doulas will we send? Activists? Women carrying bayonets with which to “fight the system”? How long can a situation of constant tension and confrontation in the labor room last between activist doulas and the hospital professionals who constantly feel threatened by their presence?

I do not believe that doulas can make birth better just by being sweet, resilient, calm, compassionate, and patient. I know the importance of activism and reinforce the words of Sheila Kitzinger, who said “We will not make a social revolution with pats on the back!” Yet there is a space for careand a space for activism, and those are very different social spaces. The cry for justice, even when correct, must not serve as a trigger for more injustice. Shooting wildly at all sides can bury for many years the efforts that many of us have been making to bring loving and humanized care to childbirth through the work of doulas.

There is a large and ongoing concern in Brazil among hospital practitioners that doulas are interfering in medical practice, giving medical advice, and performing activities that are not within their scope of practice. I think it is important to stimulate a discussion about this topic to improve the work we are doing in training and working with doulas as essential caregivers for the humanization of childbirth. It is important to stress that the role of the doula has nothing to do with giving medical advice or diagnosis—rather, their role is as helpers of women and supporters of women’s needs.

Some Brazilian doulas are trained by professional doula trainers (also doulas themselves), while others are trained by health professionals with extensive experience in caring for women during pregnancy, birth and breastfeeding. The health professionals who conduct doula trainings in Brazil include the internationally renowned obstetrician Michel Odent, the nationally renowned obstetrician Hugo Sabatino (a major proponent of squatting birth), the pioneering direct-entry homebirth midwife Ana Cristina Duarte, and myself—I am a holistic ob attending births at home and in hospital as part of doula-midwife-ob team (see Jones 2009).

The focus of the work of doulas is the laboring woman, not the birth itself. Doulas do not perform (and are not taught how to perform) any medical procedure, diagnostic or therapeutic, nor any nursing activity, such as taking a temperature, checking blood pressure, listening to the fetal or maternal heartbeat. Doulas do not make recommendations or diagnoses. Doulas are not allowed, let alone encouraged, to provide any medication to patients, whether allopathic, homeopathic or herbal. They are there to help women overcome the challenges of labor via physical and emotional support, not to interfere with medical practice. Doulas are prepared to help women and hospital staff by giving the mother-to-be and her partner a sense of calm and confidence during birth.

Numerous studies conducted in various countries show that when a doula is present, even epidurals become less frequent and less necessary, because the physical, emotional, psychological, and spiritual comfort doulas offer help the mothers to realize that the contractions are beneficial and thus to better cope with the pain. Doulas help mothers avoid both analgesia and cesarean sections by helping them find their inner strength. (The latest scientific evidence on the beneficial effects of doulas can be found in the Cochrane Library of Evidence-Based Medicine, and in the recommendations of the World Health Organization and the Ministry of Health of Brazil.)

It is important not to confuse the political ACTIVISM of doulas (and others who protest the objectification of women during labor and the massive overuse of interventions in hospitals) with doulas’ ACTIONS in providing childbirth assistance. It is not appropriate for doulas to express their opinions about medical topics while attending laboring women, nor to disregard the doctor’s authority or try to control the doctors or nurses. The labor room must not become a battlefield. Inside that room, doulas must be focused exclusively on the comfort and wellbeing of the laboring mother, and on working to ensure good communication between the pregnant couple and hospital personnel. They may conduct their ACTIVISM out there in the world, but never during labor.

What seems imperative now for the maturation of the doula profession in Brazil is to build a professional model and a national doula board for the whole country. This board should provide a Code of Ethics that specifies the doula’s scope of practice, and a set of guidelines for doula practice inside hospitals. As long as we have only separate individuals doing their best to support women in their own ways, we are not going to create a feasible system that provides a doula for every woman who wants one. We must work to make doulas welcome in hospitals, showing doctors and staff that they are not a threat to the work they are doing, but a help in their efforts. Many US hospitals have begun to welcome doulas because both nurses and obstetricians have found that the doula’s supportive presence lessens their workloads, freeing them to attend to other patients and other tasks. That’s the opportunity we have here in Brazil—to give women and babies the best of two worlds: the proven benefits of having a compassionate caregiver at the mother’s side during the challenges of childbirth focused only on helping and supporting her, and the help that medical technology and medical practitioners can bring for those who need it.

That’s the challenge, and doulas cannot meet it alone. They will need the help of humanistic doctors, interested nurses and well-informed couples. To change the way we are born is a huge social transformation that requires the participation of all individuals, because the changes we make at birth will ultimately change the world we all live in.

Ricardo Herbert Jones MD
Obstetrician, gynecologist, and homeopath
Author of Memoirs of the Man Made of Glass and Between the Ears: Stories of Birth (both in available only in Portuguese)
International speaker and teacher

Acknowledgement

I hereby express my profound appreciation to anthropologist Robbie Davis-Floyd for her extraordinarily helpful edits on the English version of this article.

Reference

Jones, Ricardo. 2009.  “Teamwork: An Obstetrician, a Midwife, and a Doula in Brazil.” In Birth Models That Work, edited by Robbie Davis-Floyd, Lesley Barclay, Betty-Anne Daviss, and Jan Tritten, pp. 271-304. Berkeley and London: University of California Press.

 Ricardo Herbert Jones
Obstetrician, gynecologist and homeopath
Professor invited in many doula courses in Brazil and Portugal
Writer of “The Memoirs of the Man Made of Glass” and “Between the Ears”
International speaker, with talks in many cities in Brazil and countries like USA, Mexico, Uruguay, Argentina, Portugal, UK and Bulgaria

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Nada é certo, apenas desejo e esperança. Depois dos marcantes acontecimentos ocorridos no dia 3 de fevereiro de 2013, quando mais de mil mulheres saíram às ruas para lutar pelo direito a ter uma doula no parto, minha preocupação continua intensa. A consolidação de uma agenda das doulas passa por um necessário amadurecimento. Esse processo pressupõe o reconhecimento do “outro”, quais sejam os médicos, os hospitais, as instituições e os demais atores do cenário do nascimento. Essa mobilização poderá produzir o fortalecimento das consumidoras, criando uma nova postura das USUÁRIAS (o único setor com potencial para produzir alguma mudança) e, a partir delas, a elaboração de um novo espaço de debate para a questão da assistência ao parto humanizado. A passeata das doulas, com sua exuberância, me encheu de felicidade, alegria, esperança e… dúvidas.

Eu continuo preocupado e angustiado com o que faremos após uma mobilização como essa. Por um acaso, eu havia acabado de assistir o filme “Os Miseráveis” (versão musical) no dia anterior à marcha, e as belas imagens e músicas continuavam em minha memória. Naturalmente tracei uma linha – com um pouco de criatividade e imaginação – que poderia unir as realidades aparentemente díspares de uma passeata contemporânea e de uma cena revolucionária do século XIX. Lembrei imediatamente da cena das “barricadas” que fecharam as ruas de Paris em 1830, no levante popular contra as Ordenações de Julho (Ordenanças de Julho), que suprimiram a liberdade de imprensa, dissolveram a câmara, reduzindo assim o eleitorado, anulando as últimas eleições e permitindo-se governar através de decretos. Algo muito parecido com a “proibição das doulas” em hospitais privados de São Paulo.

Pois o levante dos “citoyens parisien” foi determinado pelos acontecimentos violentos e descabidos produzidos por um governo alheio aos desejos de um povo faminto e necessitado. Entretanto, apesar do afã, do brio, da coragem e da força dos maltrapilhos combatentes, a luta contra as tropas leais ao Rei terminou como vimos no filme: todos morreram, dizimados por uma fraqueza que não imaginavam possuir. Sim, não havia estrutura, nem armas, nem pessoas, nem ativistas e nem um conjunto de ideologias sólidas e estruturadas para enfrentar – com propostas seguras e firmes – a reação dos conservadores. E a batalha das barricadas passou à história como um banho de sangue sem resultado positivo, a não ser a criação de maravilhosas canções, musicais da Broadway e candidatos ao Oscar.

É disso que tenho medo agora. Alguns hospitais – na melhor das hipóteses – poderão reverter suas posições e dizer: “Muito bem, mandem suas doulas.” E diante dessa oportunidade, que doulas mandaremos? Ativistas? Mulheres portando baionetas, cheias de ideias, conceitos tênues e enfrentamentos? Quanto tempo resistiremos a uma situação de constante embate, pela ameaça implícita que uma conduta belicosa pode gerar em hospitais acostumados ao poder magnânimo e inquestionável de uma corporação? Quanto tempo resistirão as doulas a uma perseguição sem trégua, de profissionais que se sentem constantemente ameaçados?

Não acredito na possibilidade de que as doulas entrem no caminho do nascimento para transformá-lo se não for com as ferramentas da doçura, da resiliência, da calma, da compaixão e da paciência. Sei da importância do ativismo, e faço coro às palavras de Sheila Kitzinger que dizia “Não é com tapinhas nas costas que faremos uma revolução social”. Entretanto, há o espaço do ativismo e o espaço da atenção, e esses campos distintos não podem se misturar na assistência, sob pena de produzirmos muito choro e ranger de dentes. Bradar por justiça, por mais correto que possa ser, não poderá servir de estopim para mais injustiça. Atirar para todos os lados, com o rubro a cobrir a esclerótica, pode sepultar por muitos anos os esforços de adicionar afeto e carinho no parto, através do trabalho das doulas.

Em referência às críticas a uma possível “intervenção das doulas” nas condutas médicas nas maternidades brasileiras, creio que é importante estimular uma reflexão sobre este tema e, a partir dela, melhorarmos o trabalho que estamos fazendo na formação e na utilização das doulas como grandes propulsoras da humanização do nascimento.

As doulas recebem treinamento de profissionais de saúde com larga experiência na atenção às mulheres gestantes. O foco do trabalho das doulas é a grávida, e não o parto propriamente dito. Elas não realizam (e não são instruídas para tanto) qualquer procedimento de caráter médico, diagnóstico ou terapêutico, e nenhuma ação de enfermagem, como verificar a pressão, escutar batimentos fetais, avaliar temperatura ou batimentos cardíacos maternos.

Doulas não estão autorizadas, muito menos estimuladas, a oferecer qualquer medicação às pacientes, seja esta alopática, homeopática ou fitoterápica. Elas são ajudantes da mulher e sua ação serve para auxiliá-las a vencer os desafios do trabalho de parto. Não cabe às doulas qualquer ação que se confunda com a prática médica.

Doulas são preparadas para auxiliar as mulheres, os médicos e os hospitais, oferecendo às gestantes e ao seu companheiro a necessária tranquilidade durante o nascimento. Doulas não interferem em condutas médicas e não fazem recomendações de caráter diagnóstico.

Por outro lado, inúmeros estudos comprovam que, quando a doula está presente, até mesmo as analgesias se tornam menos frequentes e menos necessárias, pois o aporte afetivo, psicológico, emocional, físico e espiritual que elas oferecem ajuda as parturientes a perceberem o sentido benéfico das dores pelas quais estão passando. Essa compreensão dos objetivos do processo de parto faz com que tais dores sejam suportadas de forma muito mais fácil, a ponto de dispensarem as analgesias e mesmo as cesarianas em muitas ocasiões.

É importante não confundir o ATIVISMO das doulas e de outros profissionais que atendem o nascimento – em função da objetualização de pacientes e do exagero no uso de intervenções durante o parto – com a sua AÇÃO durante a assistência ao parto. As doulas não “opinam” sobre temas médicos durante o parto, não dão orientações diagnósticas e não desconsideram a autoridade do médico. Como foi dito, sua ação é voltada exclusivamente para o conforto e o bem estar das mulheres. Elas não são “controladoras” do proceder dos profissionais; pelo contrário, estão agindo durante todo o tempo em que se encontram na atenção às parturientes para garantir uma boa comunicação entre elas e a equipe médica. Qualquer atividade de ATIVISMO poderá ser realizada em outros momentos de sua vida social, mas jamais durante o trabalho de parto.

Doulas são comprovadamente benéficas, em diversos estudos realizados em várias partes do mundo. Doulas são recursos baseados em evidências científicas atualizadas e tal comprovação pode ser encontrada na Biblioteca Cochrane, em determinações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Ministério da Saúde do Brasil.

O que parece imperativo agora é a construção de um modelo profissional e um conselho nacional de Doulas para todo o país. Este conselho deve fornecer um Código de Ética que estabeleça o âmbito específico de ação no qual as doulas vão atuar. Enquanto temos apenas indivíduos separados fazendo o seu melhor para apoiar as mulheres durante o parto, não teremos um sistema viável que forneça uma doula para cada mulher que assim desejar. Além disso, nós temos que fazer com que as Doulas sejam bem vindas aos hospitais, mostrando aos médicos e a todo o pessoal de suporte que elas não representam uma ameaça para o trabalho que eles estão realizando, mas uma ajuda em seus esforços. Essa é a grande oportunidade que temos de dar às mulheres e bebês o melhor de dois mundos: os benefícios comprovados de ter uma pessoa compassiva ao lado durante os desafios do nascimento, ao lado da ajuda que a tecnologia pode trazer para os que dela necessitam.

Esse é o desafio, e Doulas não pode fazer isso sozinho. Eles vão precisar da ajuda de médicos humanistas, enfermeiros interessados ​​e casais bem informados. Alterar a forma como nascemos é uma enorme transformação social que exige a participação de todos os indivíduos, porque as mudanças que fazemos no nascimento vão acabar por mudar o mundo em que vivemos.

Ricardo Herbert Jones

Obstetra, ginecologista e homeopata
Autor dos livros “Memórias do Homem de Vidro” e “Entre as Orelhas”
Professor convidado em dezenas de cursos de doulas no Brasil e em Portugal
Palestrante Internacional, tendo realizado palestras em várias cidades brasileiras, e países como Estados Unidos, México, Uruguai, Argentina, Portugal, Inglaterra e Bulgária

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