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Partus mutandis

Eu creio que hoje estamos vivendo o “Império do Imediatismo”. Nas conversas diárias as mensagens que ocorrem no ambiente da Internet precisamos ser concisos ao extremo e, quando possível, acrescentar um recurso qualquer que cative a atenção. Antes do advento das redes sociais tudo o que tínhamos para a troca bidirecional de ideias eram os “list servers”, as listas de discussão através de e-mail. Naquela época, para debater os dilemas do parto e nascimento e a violência obstétrica, só tínhamos o texto e seu conteúdo, o que nos forçava a pensar e resolver estas questões através da nossa capacidade racional. Hoje o esforço é por convencer; queremos derrotar os adversários e não pensamos duas vezes para usar recursos extraordinários para derrotar quem nos desafia – as dancinhas do TikTok, a retórica, as imagens, as fake news, os memes. Recursos para impactar e sentir, e não para pensar

Lembro que quando apresentei o Power Point ao meu pai ele me disse “Muito legal, mas cuidado. Ao fazer uma palestra esses recursos roubam a atenção e colocam você em segundo plano. Não esqueça que as pessoas vieram para ver você, não estes artifícios”. Ele se preocupava que as “firulas” pudessem tomar o lugar do pensamento, da lógica e da razão. Temia que o meio dominasse a mensagem, e parece que ele tinha razão. Hoje parece que o Facebook, Instagram, Tiktok, etc. são grandes e sofisticadas molduras ao redor de telas vazias ou insignificantes. Isso também explica o sujeito que é famoso “por ser famoso”, alguém que foi colocado nessa posição pelo BBB ou por alguma tolice de redes sociais, mas sem qualquer habilidade ou conteúdo que o faça merecer qualquer destaque.

Por certo que hoje o parto enfrenta novos desafios. Em uma população cada vez mais drogada, mais controlada externamente pela química, os médicos se comportam como se os pacientes fossem constantes ameaças, ao mesmo tempo em que os pacientes são ressentidos com uma corporação vista como onipotente e arrogante. Mulheres estão decidindo pela gravidez cada vez mais tarde, acrescentando uma nova configuração populacional e familiar, com o desaparecimento de irmãos, cunhados, primos e bisavós. Um número imenso de gestações agora ocorre na 5a década, através de fertilizações e inseminações, cujos riscos sequer temos plena compreensão. Aos poucos o parto fisiológico está desaparece do horizonte; mulheres já não podem contar com a própria fisiologia e suas capacidades inatas para parir, e talvez essa seja uma tendência irreversível, já que o medo de parir é estimulado por aqueles que controlam o parto nas culturas ocidentais. Se somos uma espécie especial no planeta porque nascemos de uma forma inusitada e bizarra, temo que o afastamento do processo de adaptação dinâmica à natureza fará surgir uma nova espécie, e não tenho nenhuma confiança de que ela será melhor do que esta.

Nas listas por e-mail do passado havia um desejo muito grande de vários atores sociais – obstetras, parteiras, doulas, pediatras, etc. – de oferecer uma perspectiva para a grande inconformidade que sentíamos em relação ao nascimento humano. Havia disputas no terreno das ideias, mas não existia muito espaço para lacração. Éramos jovens, cheios de energia criativa; os sonhos ainda nos dominavam. Eu espero que uma nova geração de ativistas de perspectiva materialista (ou seja, menos idealistas e mais práticos) venham a nos substituir. Ativistas que entendam o parto humanizado como ele realmente é: uma luta por espaços sobre a topografia física e emocional da mulher, e não uma disputa de saberes e evidências científicas, posto que estas não são capazes de produzir transformações. Precisamos ultrapassar o idealismo ingênuo e reconhecer a necessidade do enfrentamento, com a coragem de enfrentar os desafios inevitáveis.

A partir de uma conversa com Ana Cris Duarte

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Filantropos

Não há mais justificativa para negar que a filantropia em sua forma moderna, enquanto modelo empresarial, é a forma como os ricos e poderosos jogam migalhas aos pobres para que sua imagem seja melhorada e/ou aprimorada. Desde o início do capitalismo americano funciona assim, como nos ensinou John Rockefeller – o homem mais rico da história, que chegou a ser dono de 2% do PIB americano – jogando moedinhas (Dimes) para que as crianças na rua pudessem juntar. Era publicidade deslavada, tentando criar a imagem tão falsa quanto absurda de um “velhinho bondoso”. Na verdade se tratava de um dos lobos mais astutos e inescrupulosos do nascente império americano.

Todos esses sistemas de “ajuda aos pobres” só existem porque insistimos em um modelo capitalista injusto e que produz a brutalidade da iniquidade social. Nenhum país precisaria de ONGs para combater a fome, o analfabetismo ou as doenças endêmicas. Para oferecer este atendimento à população bastaria que os recursos PÚBLICOS fossem distribuídos de forma adequada e que não houvesse a concentração obscena de riqueza na mão de poucos capitalistas, que posteriormente devolvem uma fração minúscula de seus lucros como forma de publicidade, através de seus “institutos” e “fundações”.

É exatamente a perversidade desse sistema social e econômico que precisa ser combatida no século XXI. Quando a gente olha para estas instituições de ajuda à África, no combate à AIDs, à pobreza da América Latina, de proteção dos animais e de preservação da Amazônia e conhecemos os ativistas honestos e dedicados que dela participam, perdemos a noção do contexto amplo onde estas instituições são criadas, e ficamos incapacitados de perceber que a existência delas só pode ocorrer diante da falência do Estado. Sem a opressão sobre os povos e as desigualdades fomentadas entre os seres humanos nenhuma caridade seria necessária pois nenhuma filantropia faz sentido em um estado operante e que ocupe o posto de motor da distribuição equitativa de renda.

Enquanto isso não ocorre ficamos a mercê de seres desimportantes e sem brilho algum, como as primeiras damas de alguns Estados, as esposas de industriais que comandam fundações ou algum artista que tira milhões de seus seguidores e depois devolve uma parcela pequena – sempre para quem ele próprio escolhe, e não para quem mais necessita.

Os grandes filantropos americanos financiam Universidades pagas – como as da Ivy League – para que brancos de classe média possam estudar através de um sistema falsamente meritocrático, que sempre coloca em vantagem a classe que repousa sobre privilégios. Financiam também orquestras filarmônicas e museus (para a mesma classe), mas alguns fazem pior: estimulam pesquisas de medicamentos em negros e pobres africanos e da Ásia para serem posteriormente usados em brancos na América e Europa. Nada disso é bom, nada disso é adequado para a sociedade. Nada disso é justo e correto em uma sociedade que se pretende fraterna e justa.

“Caridade é ofensa; o povo quer – e merece – justiça social”.

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Piratas

Pirata

Depois da minha fala na Câmara de Vereadores de Porto Alegre ontem, no debate público sobre o projeto de lei das doulas, acompanhei meu neto Oliver até o corredor para pegarmos água no bebedouro que se localiza ao lado da entrada principal do salão. Logo ao chegar encontramos a simpática, jovem e enérgica vereadora Fernanda Melchionna, que veio me abraçar e agradecer as palavras de apoio ao projeto. Fernanda estava usando um curativo no olho direito, por uma lesão recente na …córnea, o que deixou meu neto de quase 3 anos absolutamente intrigado. Ainda no meu colo, olhava fixamente para seu rosto tentando entender o que estaria faltando, o que exatamente não se enquadrava na formatação dos rostos humanos que ele se acostumara a decifrar.

– A titia fez um dodói, um machucado no olho. Mas já vai ficar bom, explicou ela.

Oliver continuava a olhar fascinado, tentando compor e dar sentido ao que seus olhos de criança enxergavam. Depois de alguns instantes de séria observação abriu um sorriso majestoso e disparou:

– Você é uma pirata!

Fernanda caiu no riso e eu também não me contive. Entretanto, ficou impossível não entender sua observação como plena de um sentido transcendental. Ele tinha razão. TODOS nós ali éramos piratas, aventureiros, apaixonados, guerreiros por uma causa grandiosa e nobre: a dignidade do nascimento. Oliver, com sua ingenuidade, acabou mostrando que a luta por vezes inglória e solitária para dar voz às mulheres e espaço ao feminino é uma batalha motivada pela indignação crescente com a violência obstétrica e a objetualização de mulheres no momento de dar seus filhos à luz.

Corsários tenazes, sofridos e marcados pelas feridas de batalhas, continuamos firmes na busca pela dignidade, garantindo em cada luta um pedaço a mais de terreno. Hoje podemos ver que conquistamos lentamente o coração e as mentes de adversários de outrora, o que nos mostra a justeza de nossos ideais e a importância de nossas lutas.

Parabéns às doulas pelo seu dia, e muito obrigado pelo maravilhoso trabalho realizado pelo resgate do nascimento como evento grandiosamente humano.

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