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Gozo e Prazer

Essa compra de um “álbum completo” escancara a diferença entre gozo e prazer. Gozo é colecionar, trocar figurinhas, sofrer por não ter as difíceis, negociar com os pais a compra dos pacotes, ficar angustiado pelas faltantes e exultante com os “achados”. O gozo dura horas, dias, semanas, enquanto o prazer é instantâneo, e se desfaz logo após contemplar o álbum completo. O prazer é o fim do gozo.

Aprendi com os drogados que a verdadeira fissura é esperar pela droga, e não o seu uso. Aguardar a chegada, contando os minutos é o que verdadeiramente vicia. Transar também; o que nos fascina é esperar pelo objeto do nosso desejo, o lento despir-se, a lânguida sensação de eternidade de cada minuto que antecede o toque real e definitivo. É na espera que sofremos e gozamos.

Gozo é percorrer o Caminho de Santiago, prazer é chegar lá. “Mas porque não faz de carro em bem menos tempo?”, perguntava o garoto ingênuo diante da ideia de que o objetivo é alcançar a cidade, e não construir seu caminho. “Ora, diria eu, porque o gozo é fazer bolha nos pés, rebentar os músculos da perna, cansar até não conseguir dar sequer um passo a mais. Chegar é apenas um detalhe na trajetória, exatamente aquele que lhe dará fim.”

No parto a mesma coisa. O gozo é curtir (sim!!!) cada contração, construindo um vínculo eterno através de cada onda, saboreando o sacro-ofício de cada uma de suas dores. Parir é prazer, é orgasmo, mas o gozo está na preparação e no exercício da percepção de si mesma no processo de gerar.

A sociedade moderna busca o prazer imediato, um prazer de curto-circuito. Quer um álbum de figurinhas completo, onde o prazer é garantido, mas onde o gozo inexiste. Também quer transar sem conquistar, comer sem plantar, viajar sem sair do lugar, emagrecer sem exercício. Deseja conhecimento sem estudo, beleza sem saúde, saúde sem disciplina e pretende morrer sem ter construído um objetivo nobre, difícil e laborioso para a sua existência, apenas pautada pelo BIP – Busca Insaciável pelo Prazer.

Desde os anos 90 essa música de Marina faz eco em meus ouvidos, e me conduz até hoje…

“E às vezes alta madrugada
Ficam dúvidas com tudo
Quem sabe o fim não seja nada
E a estrada seja tudo”

(O meu Sim – Marina Lima & Antonio Cícero)

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Desapego

Minha decisão de morar de modo muito simples foi fortemente influenciada pelo Caminho de Santiago. Lá podemos ver de forma marcante que as “coisas” em nossa vida funcionam muito mais como peso do que por sua utilidade real, sejam carros, casas, roupas, utensílios, etc, e que desprender-se delas é uma parte importante do nosso caminho em direção à alegria das coisas simples.

Só depois de morar em uma casa pequena me dei conta do quanto de inutilidade existe no nosso modelo de vida. Vivemos existências perdulárias cercadas de redundâncias coloridas. As casas grandes precisam ser preenchidas com mais coisas, porque seus vazios denunciam a tolice dos exageros.

Nas casas pequenas a exiguidade do espaço nos faz repensar a utilidade dos artefatos. Depois de um certo tempo nos damos conta de que a qualidade de vida em nada foi prejudicada com a auto expropriação de centenas de badulaques e do lixo sofisticado que carregamos. E também nos damos conta que não possuímos coisas, mas que elas nos possuem.

Roupas? 10 calças? 20 sapatos? 3 carros? Camisas e ternos? Sério que precisamos tudo isso? Será que não somos todos – dentro do capitalismo – acumuladores patológicos em uma sociedade que preenche seu vazio de valores com coisas e objetos cuja utilidade é questionável?

Penso nas mansões dos artistas de Hollywood, gigantescas obras recheadas de inutilidades, apenas para que tantos quartos vazios não os lembrem todos os dias da miséria de uma sociedade em que milhares dormem nas ruas pela falta de um canto para repousar.

Viver na simplicidade, como fazia Gandhi, parece ser uma forma muito mais leve de carregar a vida

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O Caminho como Metáfora

Em 2003 fui apresentar uma aula onde procurava mostrar graficamente como o modelo tecnocrático e intervencionista da obstetrícia contemporânea era algo extremamente recente na história da nossa espécie. Minha primeira ideia foi mostrar um relógio e explicar que este modelo, que ora usamos, representava apenas os últimos 15 segundos de um dia inteiro de aprendizado para lidar com os desafios da parturição. Os 40 anos de tecnocracia mais agudizada ficavam minúsculos diante dos 200 mil anos de adaptação apenas desta espécie, sem falar na carga de ensinamentos que recebemos dos 7 milhões de anos de história de bipedalidade.

Um tempo depois pensei uma imagem mais próxima de nós – uma estrada. Em verdade próxima de mim e da minha fantasia adolescente. Coloquei o gif de um caminhante sobre o mapa do norte da Espanha, com o traçado que liga Saint Jean Pied de Post (na França) até Santiago de Compostela, já na Galícia. Abaixo os dizeres: “Caminho de Santiago = 800 km“. A ideia era mostrar que se a forma como atendemos o parto fosse em um tempo igual ao Caminho de Santiago, o modo tecnocrático, intervencionista, medicamente controlado, cientificista, insensível, frio e afastado das evidências científicas representaria apenas os últimos… 80 metros.

Espero que tenham entendido como as modificações recentes no parto, em especial a hospitalização, produziram efeitos muito importantes e graves na forma como entendemos e sentimos esta parte tão importante da sexualidade humana.

Agora eu me sinto no fim dos pródromos de um grande trabalho de parto, que durou 37 anos. Desde a minha viagem de 108 km de Porto Alegre até o litoral, quanto não contava mais do que 20 anos de idade, que sonho em percorrer a rota mística de Santiago. Ela esteve presente em meus sonhos, nos livros que li, nos filmes e documentários que assisti e nos inúmeros e infindáveis devaneios sobre o que me aguardaria na travessia.

As contrações agora se intensificaram e começo a sentir uma certa regularidade. Não sinto mais tantas dores, as bolhas serenaram, a sola engrossou, ou músculos pararam de se embebedar com o ácido lático de todos os dias. Apesar das dores os passos estão mais confiantes. A cada albergue que chegamos cresce nossa confiança; são como nas pausas silenciosas depois de cada contração. Os olhares de apoio das minhas companheiras de caminho são como as massagens de divinas doulas sobre um corpo cheio de cicatrizes e uma alma ainda rasgada de indignação. São elas que me estimulam, e quando dizem, jocosamente, “é logo ali”, sinto o mesmo frescor das palavras que por tantas vezes eu mesmo disse a quem sofria a dor do desconhecido.

Na minha jornada – o caminho é sempre solitário – levo no alforje a metáfora do nascimento. Se existe sentido na dor, na lágrima, no nariz que corre, no músculo retorcido e nos pés que sangram também terá valido a pena lutar para que o nascimento seja um evento de luz, com autonomia, liberdade, segurança e comunhão de almas.

Sigamos!!!
Ultréia!! Suséia!!!

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Bolhas

Então ela me pergunta, mantendo uma ruga questionadora na testa: “Mas por que isso? Qual o sentido das bolhas, da dor, das noites mal dormidas, das tendinites, do frio e da chuva? Em nome de quê?

Parei por alguns instantes e lhe perguntei: “Você tem filhos?” e ela me respondeu “Sim, dois. Partos normais”, e sorriu com orgulho.

Olhei em seus olhos e repeti sua própria pergunta: “Em nome de quê?”

Sim…. O que te leva a caminhar por 800 km no frio e na chuva é diferente do que te leva a ter filhos, mas ambos compartilham algo em comum: são ações que agridem seu conforto pessoal e te obrigam a encarar uma dimensão pouco conhecida: a transcendência.

Só a possibilidade de transcender os sentidos comuns na vida nos permite aceitar tais desafios. É mais fácil terminar a vida sem jamais perder o sono por um filho que chora ou que ainda não chegou da festa, assim como passar seus períodos de férias em uma praia ou numa viagem cultural por um país desconhecido. Somente a sensação incômoda de que há algo dentro de si mesmo que pode ser descoberto é que te impele a tomar atitudes que parecem estranhas e desafiantes.

Para uma sociedade que perde a noção de sagrado e transcendente, que sequer consegue nominar o que está além de sua compreensão, tudo parece ter preço.

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Emoção no Caminho

Em Carrion de los Condes fica o albergue de Santa Maria, controlado por freiras que se vestem com hábitos tradicionais, parecidos com a roupa de Sally Fields em “A Noviça Voadora” (The Flying Nun). Quando chegamos era possível sentir no ar como doçura e a simpatia destas senhoras é contagiante. Estávamos – obviamente – cansados e doloridos pela caminhada do dia e fomos recebidos com o mais caloroso dos sorrisos. Nos informaram as camas que ficaríamos, explicaram as regras gerais (horários, banhos, roupa por lavar, luzes, etc) e nos avisaram que as 17h haveria um “momento musical” ao qual estávamos convidados a participar.

Encontramos nossos amigos no Jardim dos fundos e ficamos por umas duas horas conversando com Alessandro, da Itália e Brian da Irlanda, contando as curiosidades e peculiaridades de nossos países.

Quando se aproximou das 17h Bebel e Juliana começaram a preparar nosso jantar. Depois de vários dias no “lanchinho” decidimos comer comida de verdade. Arroz, molho, vinho, queijo, legumes. Enquanto elas se ocupavam na cozinha resolvi entrar na sala onde haveria a apresentação.

Quando entrei já havia se iniciado e pude voltar no tempo ao ver as freirinhas tocando violão e cantando com a voz afinadinha canções adaptadas e hinos religiosos. A cena tocou fundo na minha memória mais infantil, quando isso acontecia nas igrejas da minha cidade.

Terminadas as canções ofereceram o violão a um grupo de brasileiros que recém haviam chegado. Estes não se fizeram de rogados e cantaram “Meu Erro” dos Paralamas. Foram muito aplaudidos.

No final fizeram uma bênção a cada um dos peregrinos presentes, fazendo uma imposição de mãos sobre a cabeça e nos deram de regalo uma estrela colorida que simbolizava o coração delas que nos acompanharia por todo o caminho. Eu me debulhei em lágrimas pensando em Zeza, Lucas, meus pais, irmãos, nora e netos e por um instante senti que muito da negatividade que carregava no coração pela dor diante das injustiças saíram naquelas lágrimas.

O Caminho traz surpresas inesperadas. Em verdade estas pérolas de carinho e cuidado nos trazem de volta para o otimismo e a positividade que a vida muitas vezes nos sonega. Às irmãs do Albergue Santa Maria um agradecimento especial pela delicadeza e a amorosidade que acolheram este coração ferido.

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Olhos emprestados

Olhos emprestados

“Não, acho que estás te fazendo de tonta, te dei meus olhos prá tomares conta, agora conta como hei de partir”.

(Chico Buarque)

A coisa mais mágica – e mais preciosa – que se recebe de um amor é a oportunidade de olhar o mundo pelos seus olhos. Eu sempre fui um menino de classe média baixa. Nunca tive os brinquedos mais caros, nem meu pai – um funcionário de nível médio de uma estatal – comprava carros novos, nem casa na praia, viagens caras, roupas de grife, etc. Era kichute, camiseta Hering e busāo para todos. Coca-Cola litrão no fim de semana.

Aos 17 anos namorava uma menina também da classe operária. Uma jovem garota com 6 irmãos, filha de um bancário e uma dona de casa. Classe média, um pouco mais baixa que a minha. Logo após começarmos a namorar eu entrei para a faculdade de medicina e ela foi cursar enfermagem. A faculdade abre nossos horizontes. O mundo se expande de forma avassaladora. O pequeno universo da família e do bairro se torna da cidade e do mundo (urbe et orbi, dizia o omni-bus que eu tomava). Meus colegas de aula tinham sobrenome de ruas da cidade e de instituições financeiras. Entre eles, os novos herdeiros de feudos médicos tradicionais. Chegavam à escola médica de carro próprio aos 18 anos e alguns se recusavam a comer no bandejão da universidade porque não gostavam do “tempero”. Eu era um alienígena em um ambiente feito para eles, não para mim.

Mas tudo poderia ser diferente. Eu poderia ter deixado minha namorada de escola por Jennifer. Filha de um oftalmologista – que dividia seu tempo entre a clínica na Padre Chagas e a criação de gado em Lavras do Sul – e uma juíza do trabalho, ela era o sonho de consumo de qualquer sujeito que almejasse um “upgrade” na escala social. Linda, loira, coqueta, vaidosa e estudiosa. Herdaria a clínica do pai e desde o início da faculdade seu mundo se resumia a um “olho”, cuja anatomia devorara rapidamente dos livros, com suas câmaras, íris, pálpebras e dutos lacrimais. Um futuro róseo e feliz planava altivo por sobre suas sobrancelhas grossas e morenas. Quis o destino que Jennifer nunca tenha tomado conhecimento da minha existência e que minha namorada de escola tenha me oferecido seus olhos para que eu tomasse conta. Ao invés de ver o mundo através da alta classe, fiquei com os olhos verdes de uma proletária.

Acreditem, para mim isso fez toda a diferença. Minha vida se manteve fiel às suas origens sem que as promessas de um mundo charmoso e sofisticado daquela profissão, crivada de privilégios, me deixasse esquecer de onde vim. Tive a oportunidade especial de olhar o mundo que se abriu à minha frente pelos olhos emprestados de uma enfermeira e isso me proporcionou uma brecha de autocrítica extremamente rara no mundo médico. A ela devo tudo que sei, tudo que aprendi e o pouco que pude ensinar. Se há algo de valioso nas parcerias que fazemos, em especial aquelas cujo amor é o elo essencial, esta é a chance de ver o mundo com os olhos do outro. Agradeço a oportunidade única de ter recebido de uma enfermeira a possibilidade de enxergar os dilemas do nascimento através do seu doce olhar.

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