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A concubina e a madrasta

Vamos deixar algo bem claro: é nítido o desconforto de muitos com a figura de Janja no cenário da política nacional. Vários são os fatores, e o mais importante é que Janja é uma mulher querendo exercer protagonismo sem ter recebido votos para isso. Ou seja: ela estaria agindo na sombra do Lula. Mesmo entre os analistas identificados com a esquerda, existem pessoas que a criticam por falar quando não devia e se intrometer em assuntos de “gente grande”. Além disso, suas posições são francamente liberais, à direita do espectro político e identitárias. Para a esquerda raiz, uma pedra no sapato apertado do governo Lula. 

Ainda assim, creio mesmo que os narizes torcidos para Janja que surgem na esquerda são devidos à ligação que muitos carregam na memória com dona Marisa, o que eu acho compreensível pela importância da ex-esposa de Lula na criação deste personagem político e para o próprio surgimento do PT. É possível entender esse sentimento, mas é certo que não se pode justificá-lo. Janja, para estes, seria a madrasta a tomar o lugar de nossa mãe. Entretanto, é inegável que a essência de muitas das críticas revela um evidente pendor misógino, algo que conhecemos muito bem. Quem poderia esquecer os adesivos de Dilma nos automóveis, o massacre midiático sobre qualquer deslize em seu discurso, as perguntas invasivas e indiscretas e as acusações falsas que acabaram por retirá-la do governo? Nada disso teria acontecido se, dos porões do inconsciente social, não brotasse uma frase, que continuamente era sussurrada: “este não é o seu lugar”. Mesmo entre aqueles que se diziam a favor da equidade, da diversidade e reconheciam os méritos de Dilma se incomodavam com ela, em especial com o seu sucesso.

Agora, mais uma vez, a esquerda caiu com extrema facilidade no discurso orquestrado pela mídia burguesa. A “víbora” da vez é Janja, que teria saído do seu lugar de “sombra” e tomado a palavra em um jantar durante a visita de Lula à China. Sem pedir licença ao marido, acabou por constranger o presidente Xi Jinping com perguntas indevidas sobre o TikTok. A direita se deleitou com o relato, apresentou a cena como um acidente diplomático e descreveu Janja como uma personagem falastrona, indiscreta, boquirrota e deselegante. Parte da esquerda uniu-se aos ataques dizendo que ela prejudica os esforços de Lula em construir pontes com a China, e que faria melhor caso se mantivesse calada. “Janja calada é uma poetisa”, diriam alguns.

A verdade veio no dia seguinte por intermédio do presidente Lula em entrevista coletiva: não foi Janja quem questionou o presidente Xi; a pergunta partiu do próprio Lula. Além disso, não foi sobre TikTok especificamente, mas o incluiu. Janja apenas pediu a palavra para endossar a posição expressa de Lula sobre o entendimento de boa parcela da esquerda de regulamentar as redes sociais e deu sua opinião sobre o domínio do TikTok pela extrema-direita. Ou seja: não houve “quebra de protocolo”, ela não foi indelicada, não causou constrangimento e o presidente Xi concordou com a ideia de mandar um representante ao Brasil para debater o tema das redes sociais sequestradas pelo fascismo.

Sobra uma verdade nesse caso: é preciso mudar a forma de pensar sobre a manifestação das mulheres e o seu direito de expressar livremente suas opiniões e suas perspectivas de mundo. Mesmo quando discordamos – e deixo claro que rejeito a ideia de cercear a livre expressão de ideias – é forçoso reconhecer que o fato de ser uma mulher a falar incomoda, irrita e nos faz desvalorizar seu ponto de vista. Isso precisa mudar, pois é injusto com as mulheres que chegam ao poder. Não é mais admissível tratar metade da população do mundo como se fossem cidadãs de segunda categoria. E deixo claro: não é blindagem aos erros que Janja possa porventura cometer; eu mesmo sou crítico contumaz de suas posições. Entretanto, é necessário aceitar que, entre os seus possíveis equívocos, não podemos incluir a “falha imperdoável” de ser mulher.

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Direito à paternidade

Circula na Internet um texto sobre paternidade escrito por um humorista da minha cidade que faz sucesso entre pessoas que conheço. Acho esse texto um brutal equívoco, mas…. na boa, perco até a vontade de explicar ao me dar conta que isso vai alertar as patrulhas, pois se trata de um texto nutrido pelo mais cristalino preconceito de classe.

Ok, devido aos pedidos incessantes, explico: o articulista, um humorista de rádio, deixa claro que a paternidade só deve ser exercida por aqueles que, como ele, usufruem de boas condições vida, que podem cuidar com atenção e denodo das suas crias. A condição de pai seria vedada ao proletário que carece (entre outras virtudes) de paciência porque suas condições de trabalho são estressantes, ou que precisa dormir aos domingos para recuperar energias gastas durante a semana de trabalho incessante. Para ele a paternidade deve ser garantida apenas àqueles que têm as condições características da burguesia: tempo, dinheiro, disposição, saúde e educação.

Não passa pela cabeça desses “formadores de opinião” que é necessário que as condições sociais melhorarem para todos, para que não seja necessário arbitrar quem pode e quem não pode exercer o direito sagrado de ser pai ou mãe. Sua manifestação parte de uma divisão social estanque, fixa, pétrea, onde os estratos sociais determinariam quem poderia exercer direitos humanos básicos. Como a paternidade.

Mais ainda, o texto coloca a culpa nas pessoas que não tem tempo, estão cansadas, esgotadas, sobrecarregadas, impacientes, neuróticas e angustiadas, ao invés de olhar para o contexto massacrante em que suas vidas estão inseridas. Isso me lembra, com tristeza, o velho papo da burguesia que reclama o fato de que pobres, deseducados e ignorantes também tem (pasmem!!!) o direito de votar.

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