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Opressão de classe

A questão de classe se sobrepõe à questão racial. Negros foram escravizados há 500 anos, trazidos de África, para serem trabalhadores forçados nas propriedades brasileiras, mas na história da Grécia e de Roma outros povos brancos foram trazidos para as metrópoles do mundo antigo como escravizados. Até na própria África negra havia escravos negros de senhores igualmente negros. Outros exemplos são os asiáticos no leste americano e os irlandeses pelos ingleses, tratados com o desprezo reservado às classes inferiores. A opressão dos mais fortes usa a cor da pele como desculpa para oprimir e explorar os mais fragilizados. No caso do Brasil – semelhante à dos Estados Unidos – a luta contra o racismo não pode assumir o caráter identitário, privilegiando apenas uma identidade, acreditando que o sofrimentos dos negros é único e uniforme.

Em verdade, esse sofrimento só será exterminado quando os negros tiverem acesso aos recursos econômicos para a sobrevivência digna nessa sociedade, um movimento que não vai acontecer apenas através da ascensão de alguns poucos negros às classes superiores, mas com a supressão das classes sociais. Sem classes dominantes e enormes contingentes de dominados, o racismo não terá como se expressar. Por essa razão, lutar contra o racismo sem entender que ele é uma consequência da sociedade capitalista de classes apenas gera conflito dentro da classe operária. É por essa específica razão que a direita americana oferece um apoio tão consistente para organizações identitárias que objetivam a divisão da classe trabalhadora, usando a luta antirracista, feminista e pró LGBT para minar a luta contra o capitalismo.

Não há dúvida de que ninguém vê senhoras negras dirigindo uma Ferrari aqui no Brasil, mas nos Estados Unidos existem centenas, talvez milhares de mulheres negras ricas que usam esse tipo de ostentação. Podemos então dizer que por lá o racismo foi derrotado? Eu diria que é exatamente o oposto: lá o racismo é muito pior. Esse é o grave problema do identitarismo, porque a existência de personagens negros com muito dinheiro não eliminou o racismo, o sofrimento do povo negro, e muito menos a exclusão da população negra da riqueza nacional, mas dá a eles uma ilusão de que o liberalismo é capaz de lhe oferecer as condições de ascensão social. Essa mentira percorre o imaginário há séculos.

Sobre os trabalhos domésticos, os serviços perigosos e danosos reservados aos negros, isso não é condição inerente da pele negra…. mas da pobreza!!!! O fato de haver muitos negros pobres no Brasil nos oferece a ilusão de que a cor da pela é a questão primordial, pois negritude e pobreza se confundem num país que se liberou da escravidão há 150 anos. Entretanto, o que conduz essas pessoas a condições de trabalho indignas é sua classe social, e não a quantidade de melanina que carregam.

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Zumbi dos Palmares

No último fim de semana das minhas férias fui visitar com a família um lugar que há muitos anos desejava conhecer. Como estamos há alguns dias em Maceió resolvi pegar o carro e visitar a Serra da Barriga, onde se situa o famoso Quilombo dos Palmares.

A viagem se faz pela BR 104 até a cidade de União dos Palmares, bem no sopé da montanha, e não leva mais do que 90 minutos. A cidade é simples e pobre como centenas de outras pequenas cidades nordestinas. O comércio de roupas, as lojas de celular, a tímida estátua de Zumbi dos Palmares na saída da cidade, o carro de som gritando promoções pelas ruas e a gente simpática e atenciosa das Alagoas. Saindo da cidade, enfrentamos uma subida um tanto íngreme por uma estrada de paralelepípedos, para para chegar ao local onde, até os umbrais do século XVIII, floresceu um território de homens livres.

Durante a subida exercitei minha imaginação visualizando o cenário que lá existia há 350 anos. Provavelmente a estrada que agora usávamos fora construída por sobre velhas picadas criadas pelos próprios indígenas nativos e pelos negros que chegaram depois. Tentei imaginar a emoção de um negro fugido que se aproximava da terra prometida, a comunidade mítica de negros libertos, livres da opressão da escravidão.

Enquanto o Quilombo de Palmares existiu houve inúmeras tentativas de destruí-lo, todas rechaçadas pela bravura dos guerreiros e pela posição estratégica onde se situa o Quilombo. Do alto da Serra da Barriga as atalaias vislumbram toda a planície abaixo, permitindo que se saiba com antecedência a chegada de forasteiros. Palmares foi o resultado de uma junção de “mocambos”, que eram pequenos assentamentos de escravos fugidos desde o início do comércio transatlântico de africanos para o trabalho na lavoura. Em Palmares os mocambos formavam uma “confederação quilombola” que cobria um território razoavelmente grande onde hoje é o estado de Alagoas. Alguns dos mocambos que formavam Palmares eram Aqualtune, Andalaquituche, Subupira e Cerca Real do Macaco (ou apenas mocambo do Macaco). O mais importante era este último, o mocambo Cerca Real do Macaco, que era o centro político de Palmares, onde residia o rei do quilombo e, por ser a capital, era o mais populoso, com mais de 6 mil habitantes.

Os Reis Ganga Zumba e Zumbi, assim como Dandara, a esposa de Zumbi, são personagens importantíssimos da história primeira do Brasil após a chegada dos portugueses. Suas façanhas se mantiveram nas lendas contadas sobre o heroísmo, a resistência, a luta pela liberdade e a natureza indômita de Zumbi. Somente em 1694, passados quase 100 anos da sua provável criação, o Quilombo dos Palmares foi tomado e destruído pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, e apenas porque junto com seus milhares de soldados trouxeram canhões, que foram utilizados para derrubar as paliçadas. Após o ataque que destruiu o Quilombo, Zumbi teria fugido com um grupo de soldados de elite, mas foi morto no ano seguinte numa emboscada dos portugueses. O Quilombo foi totalmente destruído e não sobrou nenhuma construção no local, mas foi feita uma reconstituição da arquitetura da época para termos uma ideia de como eram as edificações onde viviam os quilombolas daquele período.

A visita me deixou muito impactado, em especial por perceber que um personagem tão importante como este não recebeu ainda do Brasil a merecida homenagem. Zumbi encarna muito mais do que a luta pelos negros; ele representa a luta pelos ideais de liberdade e autonomia que todos nós carregamos no peito. Apesar de Zumbi ter o status de “herói nacional” o Quilombo não recebe do Brasil o tanto de reverência que merece. Deveria haver um gigantesco monumento à cultura negra, junto a um museu sobre a escravidão, onde seria possível ouvir as histórias heroicas dos quilombolas traduzidas para vários idiomas, além de relatos sobre a organização política do local junto a um memorial dedicado a este personagem, que foi um dos maiores heróis da história do Brasil. Infelizmente pouco existe no local a espelhar a grandeza de sua memória. Espero que um dia Zumbi dos Palmares seja reconhecido como um dos maiores heróis desta nação.

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Brasil dividido

Li o texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo de hoje, 2 de janeiro 2018, “Ódio ao Brasil” e de pronto concordei com sua tese sobre um Brasil que cultiva ódios e se distancia das nações mais democráticas por se manter atrelado a uma divisão arbitrária em sua sociedade. O debate sobre sermos um “país majoritariamente negro“, que eu discordei, é um detalhe irrelevante. Eu me associo à sua visão de país dividido, assim abraço a tese de Jessé Souza que acredita que somos uma sociedade que jamais se recuperou de “maio de 88”.

Sim, não errei de ano. Não me refiro à “maio de 68” em Paris, mas 13 de maio de 1888, data da promulgação da Lei Áurea. Nunca conseguimos nos recuperar plenamente do trauma do fim da escravidão. Jamais abandonamos a ideia inconsciente de uma sociedade dividida entre cidadãos e e escravos, entre gente e sub-gente; entre senhores e serviçais. É esse nojo do Brasil mestiço que esteve palpitando nas manifestações contra Dilma, naquele mar que misturava o verde e o amarelo nas camisetas com o branco da pele, e por cima daquelas faces raivosas uma fantasia de moralidade e combate à corrupção.

O silêncio das panelas é a prova insofismável de que nunca houve uma real rejeição à corrupção. O que movia essa parte mais branquinha do Brasil era o rechaço a um projeto de pais mais igual, mais colorido, mais integrado. O pecado dos governantes de antes foi tocar no nervo exposto das castas sociais.

Lembrei de um colega dos meus tempos de médico militar. Sempre muito vaidoso, cultivava uma cabeleira fora dos padrões, mas para mantê-la parecia ter costas largas com os coronéis. Sempre se comportava como um Lord inglês perdido no meio de tupiniquins. Diz-se dele que, apesar do salário médio dos oficiais militares, adorava ostentar. Quando compareceu à festa de 10 anos de formatura da medicina em sua cidade teve o cuidado de chegar na festa com um carro importado. Alugado, mas ninguém precisava saber.

Uma vez durante as férias economizou o suficiente para viajar para a Europa com a esposa. Na volta me disse uma frase que nunca esqueci, referindo-se a Paris: “Aquilo sim que é cidade, e não essa chinelagem daqui. Eu merecia ter nascido lá, e não no meio dessa porcaria”.

Essa frase me marcou, mesmo passados quase 30 anos, porque resume a ideia de uma porção considerável da classe média branca brasileira. Parece a eles que acabaram de desembarcar no Brasil vindos do velho continente e perceberam que esse país está cheio de uma gente estranha, escura, ignorante e suja. “Aqui não é o meu lugar”, dizem eles de costas para o Brasil. Sua postura é de uma eterna distopia; estão no lugar errado, cercados de gente inferior.

Deus é um cara gozador
Adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo
Tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado
me botar cabreiro
Na barriga da miséria nasci brasileiro
(e ainda no Rio de Janeiro!!!)
– Chico Buarque –

Pois eu digo que esse Brasil que desprezam só é assim porque uma parte muito grande da classe média continua sonhando ser o que não é, além de cultivar uma postura xenofílica e pedante.

Na verdade é o Brasil que não precisa mais dessa classe média arrogante e egoísta.

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