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Protocolo

Logo após o término da faculdade e da residência comecei a trabalhar em um hospital de periferia onde o atendimento era 100% SUS. Eu era o responsável pelo atendimento nas sextas-feiras no Centro Obstétrico, e acredito que aquele plantão, pelas características de atender pessoas desconhecidas que haviam realizado pré-natal no sistema público de saúde, foi uma forma bastante desafiadora de levar adiante a prática dos elementos fundamentais da humanização do nascimento. Eu tinha na mente uma clara inconformidade com a forma como aconteciam os atendimentos ao parto, mas além dela uma perspectiva humanista, centrada nos elementos constitutivos do sujeito, que mesclava os fatores físicos, hormonais e mecânicos mais grosseiros com os elementos sutis, emocionais, psicológicos, sociais e espirituais das mulheres que estavam parindo seus filhos. Esse foi o terreno fértil para uma postura de confrontação ao modelo alienante da obstetrícia dos anos 90.

Na época destes plantões eu criei um programa para uso pessoal que chamei de PAOH – Protocolo de Atenção Obstétrica Humanizada, que nada mais era do que uma lista de princípios gerais para que me orientariam no projeto de otimizar resultados. Para mim, o objetivo mais importante é de que o parto fosse realizado com o máximo de segurança, e que culminasse com o nascimento de um bebê saudável e de uma mãe que tivesse obtido, além do seu bem-estar, todo o proveito da experiência. Para além da mera sobrevivência – o essencial – era fundamental oferecer à experiência do parto a possibilidade de alavancar o crescimento pessoal. Partos fisiológicos, bebês saudáveis, contato precoce, amamentação livre, fortalecimento dos laços familiares, etc. O protocolo era composto de 6 elementos simples:

1. Ambiente propício

Muito já se falava à época dos trabalhos de Frederik Leboyer e seu “nascimento sem violência”, e o quanto as interferências de luz e som na condução do parto tinham a potencialidade de atrasar e prejudicar seu bom andamento. Por esta razão, decidi que uma das mais importantes ações para garantir a segurança do parto seria diminuir tanto o barulho quanto os estímulos visuais na sala de parto. Os partos assim seriam conduzidos no silêncio e na penumbra, para não interromper o fluxo fisiológico do parto e favorecer o “apagamento neocortical”. A ideia era tratar o parto como “parte da vida sexual normal de uma mulher”, como afirmava Michel Odent, e ter os mesmos cuidados de privacidade e intimidade das relações sexuais. Com isso esperávamos diminuir a adrenalina circulante e aumentar os níveis de oxitocina entre todos os participantes da cena do parto.

2. Suporte psico-afetivo

Eu acreditava nas premissas básicas do obstetra britânico Grantly Dick-Read e sua ênfase nas questões ambientais para o sucesso do parto. Esta é uma das razões pelas quais partos conduzidos por mulheres compassivas – parteiras profissionais – têm mais sucesso do que aqueles conduzidos por figuras técnicas cuja vinculação afetiva é muito mais difícil: os médicos e cirurgiões. Desta forma criei o compromisso de não me afastar das pacientes durante todo o processo, ficando acessível aos seus pedidos e queixas para quando elas achassem necessário. Também acreditava que o acompanhante poderia trazer inúmeros benefícios para a condução do processo, e estimulava a presença do marido ou de qualquer outro acompanhante de livre escolha. O que hoje parece simples, há 35 anos era uma batalha diária.

3. Posição verticalizada preferencial para o parto.

Minha experiência com a posição de cócoras para parir já foi descrita no meu primeiro livro “Memórias do Homem de Vidro”, mas quando construí este protocolo – no fim dos anos 80 e início dos anos 90 – eu já estava absolutamente apaixonado pelos resultados que eu mesmo havia observado, e no que era possível encontrar em trabalhos e livros (como “Aprenda a Nascer com os Índios”, de Moysés Paciornik). Mais tarde esta recomendação deu lugar a uma proposta muito mais aberta, que garantia às mulheres a liberdade para escolher a posição que mais lhes agradava. Entretanto, no início desta caminhada, era preciso ser mais enfático e mostrar de forma bem explícita algo que a cultura havia sonegado: a vantagem das posições verticais e uma ergonomia mais fisiológica, natural e segura para o nascimento dos bebês. Também não foi fácil chegar a este ponto: colegas médicos me acusavam de “humilhar as mulheres”, fazendo que parissem como “galinhas botando ovos“.

4. Uso restrito e criterioso de medicações, sempre que possível

Toda medicação tem efeitos indesejáveis e com repercussões imprevisíveis. É notável a crescente drogadição da sociedade, e isso é uma preocupação das grandes organizações internacionais relacionadas à saúde pública. A simples “correção de dinâmica” (melhorar as contrações) através do uso de uma droga chamada “oxitocina sintética” pode levar a uma “taquissistolia” (aumento na frequência das contrações) que tem a potencialidade de criar grandes riscos para o bebê, inclusive produzindo stress fetal – que leva a cesarianas de urgência. Assim, todas as drogas utilizadas, incluindo aí os antibióticos, uterotônicos, etc, só poderiam ser utilizados de forma muito criteriosa; caso contrário deveriam ser evitadas.

5. Uso restrito de intervenções e manobras, sempre que possível

Boa parte das manobras médicas em obstetrícia parte de uma lógica perversa: a crença de que as mulheres são incapazes de levar adiante a tarefa de gestar, parir e maternar sem a intervenção da tecnologia e dos profissionais que a controlam. Desafiar essa ideia, encarando as mulheres como intrinsecamente capazes de realizar o trabalho multimilenário de parir, significaria questionar o poder médico exercido sobre seus corpos grávidos. Isso jamais aconteceria impunemente; todavia, quando testemunhamos setores da sociedade, como a classe média, que ostentam taxas inacreditáveis de intervenção – tipo, 90% de cesarianas – fica claro que, mais cedo ou mais tarde, alguém questionaria este tipo de intromissão abusiva, perigosa e sem respaldado na ciência sobre os corpos das mulheres grávidas.

6. Trabalho com as doulas

Meu trabalho com as doulas se iniciou nos estertores do século passado quando tomei contato com as mulheres que se dedicavam a dar suporte afetivo, emocional, psicológico e físico para as mulheres durante o processo de parir. Elas ofereciam uma parte da atenção que a mim era interditada: o profundo contato físico e amoroso oferecido às gestantes durante o trabalho de parto. Além disso, elas ofereciam o toque, o apoio emocional, o cuidado com o ambiente, o auxílio à família e a sintonia feminina que se pode testemunhar entre a doula e a gestante sob seus cuidados. Foi uma grande descoberta, pela qual eu me apaixonei e dediquei décadas da minha vida à sua divulgação, formação e disseminação. Infelizmente, esse foi um item acrescentado à posteriori, pois no início da década de 90 aquele centro obstétrico não estava preparado para a revolução das doulas, e os responsáveis pelo centro obstétrico jamais aceitariam sua presença nos partos.

Esse protocolo foi usado durante toda a minha vida profissional, mas jamais me iludi com o fato de que isso incomodaria os donos do poder, os mesmos que olhavam a taxa crescente de cesarianas e outras intervenções no ciclo gravido-puerperal sem criticar. Não havia nenhum debate acadêmico, no meio onde eu atuava, que questionasse onde esta escalada intervencionista nos levaria. Todavia, como diria Vladimir, “O critério da Verdade é a práxis”, e desta forma percebi que eu só teria certeza da justeza de tudo que era publicado a respeito das vantagens da perspectiva humanista para o nascimento quando isso se tornasse algo além das letras dispersas em livros e estudos, e se tornasse prática cotidiana de assistência. Era preciso que alguém colocasse mãos à obra e praticasse o que era oferecido pela ciência contemporânea, mesmo que esta atitude afrontasse diretamente os interesses corporativos.

Na época em que eu atendia naquele hospital as taxas de cesariana eram da ordem de 45% – muito maiores (o triplo) do que o recomendado pelas grandes agências como WHO ou OPAS – mas as minhas taxas pessoais de cesariana giravam ao redor de 10 a 15% dos partos, o que comprovava a ideia de que era possível diminuir esses números, bastando para isso um desejo de mudança associado à coragem de fazê-lo. Minhas cesarianas obedeciam critérios muito rígidos para sua execução, e por causa disso logo senti a antipatia dos anestesistas “Por que você não marca suas cesarianas para antes da novela? Seus colegas sabem de antemão quais os partos que ‘não vão ter passagem’; só você nos chama de madrugada”. Não só dos anestesistas percebi antagonismo; era evidente que para os médicos ditos “cesaristas” meu exemplo era um prejuízo para o trabalho que faziam. Assim, é possível imaginar a dificuldade em trabalhar sem a colaboração de pessoas da equipe que, por razões de conforto pessoal, não aceitavam alguém que atuasse em favor das mulheres, seus desejos, seus direitos e sua segurança.

Alguns anos depois de iniciar este trabalho encontrei um velho colega de residência que decidiu trabalhar no interior do Estado, na cidade da qual era originário. Quando me viu, perguntou se eu continuava com as mesmas ideias “estranhas” do tempo em que trabalhamos juntos no hospital onde fizemos a residência, tipo “parto de índio”, “contato pele a pele”, “marido na sala”, “crítica às episiotomias” e uma aversão ao “abuso de cesarianas”. Respondi que sim, que continuava com muita esperança que estas ações pudessem revolucionar a prática obstétrica, mesmo que levasse muito tempo para isso. Sua resposta foi maravilhosa, e a mantenho até hoje na memória para entender como se processam as mudanças.

Admiro sua persistência. Já eu faço o que eles querem. Meus partos são bem  tradicionais, como são feitos desde os anos 30. Tenho uma taxa muito alta de cesarianas, e não me envergonho disso. Nunca discuto alternativas; pacientes não podem controlar os médicos. Não quero ser acusado de nada, e não quero mudar nada; para mim está muito bom assim. Mas, é claro, concordo com suas ideias, apesar de que jamais as levaria adiante. Não sou kamikaze.

Naquela época um velho médico, próximo da aposentadoria, me disse uma frase que resumiria esta situação de forma muito didática. Segundo ele, “Existem dois tipos básicos de médicos: uns desejam resolver os problemas de seus pacientes, enquanto os outros querem resolver os seus problemas através dos pacientes. Cabe a você – e só a você – escolher a qual grupo deseja se juntar.”

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Parto: passado, presente e futuro

O movimento de humanização do nascimento não se produz num vácuo conceitual mas, pelo contrário, surge no bojo das profundas transformações do pós guerra no que diz respeito à distribuição dos gêneros no mercado de trabalho, nos costumes, nos direitos sobre o corpo e nas questões relativas à sexualidade – incluindo aí a contracepção e o ciclo gravídico-puerperal. Nos anos 70-80 pela primeira vez se tornou possível mensurar de uma forma metódica e abrangente o resultado da invasão tecnológica sobre o parto ao confrontarmos os resultados obtidos pela institucionalização do parto com sua versão artesanal e domiciliar que foi o modelo hegemônico por toda a história da humanidade. Por esta razão nesta época apareceram no nosso horizonte os primeiros contrapontos ao modelo vigente.

No que diz respeito ao terreno das ideias, a partir desse período era possível beber em diversas fontes. Entre as principais referências estavam na Inglaterra o obstetra Grantly Dick-Read, que tratou da ambiência do parto e suas repercussões (em especial o ciclo medo-tensão-dor) e o parto como fato social; na França surgiu Fernand Lamaze que falava dos domínios do consciente sobre o parto. Mais uma vez na França surgiu a questão da violência na atenção ao parto, e Frederick Leboyer surgiu com a perspectiva do recém-nascido e o conceito de “imprint”. Ainda na França, Michel Odent abriu um portal no entendimento do parto ao falar desse evento como fenômeno “mamífero”, com seus estudos da etologia e os efeitos da ocitocina para o rtabalho de parto e o psiquismo materno. Finalmente, nos Estados Unidos surge o trabalho da antropóloga e Robbie Davis-Floyd que nos apresenta a perspectiva ritualística do parto, e os elementos simbólicos das rotinas obstétricas. Estes foram personagens e ideias que produziram o arcabouço ideológico que fomentou nossa perspectiva teleológica do processo de nascimento. O modelo humanista, surgido do caldo de ideias desses pensadores, ocorre em contraposição à crescente alienação das mulheres no ato de parir e o domínio da tecnologia sobre seus corpos. Certamente que a tarefa de desconstrução sobre o modelo tecnocrático de atenção ao parto só poderia ocorrer de forma conflituosa, porque sobre o corpo das mulheres existem claras demarcações, zonas de domínio, que são próprias da estruturação do modelo patriarcal. Desta forma, o movimento de humanização passou por etapas cujo reconhecimento é extremamente essencial para sua continuidade. Também é importante entender que, como todo fenômeno social, estas etapas não são estanques e são intercambiáveis no tempo e no espaço.

1- Indignação e Acolhimento

A primeira etapa é o que eu chamo de “Acolhimento“. O acolhimento vai ocorrer quando um sujeito, vítima real de uma situação ou contexto, procura a ajuda de pessoas que possam lhe escutar e entender suas feridas e traumas. Os primórdios da humanização do nascimento, desde o início das “list servers” sobre parto humanizado, eram recheados de histórias e relatos de partos onde a dignidade e a autonomia das mulheres e bebês foi claramente ofendida. Era tarefa dessa comunidade acolher as vítimas de um modelo de atenção que lhes parecia violento e insensível. O problema é que o ser humano tem mecanismos de satisfação que lhe permitem obter vantagens pela sua condição de vítima, seja por benefícios ou privilégios. Essa atitude é muito primitiva em nós, bastando para isso ver uma criança que chora copiosamente ao cair, sabendo que isso significará um ação acolhedora da mãe. Com o tempo esta atitude pode se tornar padrão de comportamento, criando uma criança manhosa, que percebe na sua condição real (ou fantasiosa) de vítima uma chance de receber o prêmio do carinho que deseja. Na atenção ao parto muitas mulheres se recolhem na condição de vítimas do sistema e o movimento de humanização às acolhe, gerando um circuito que oferece a elas um gozo pela sua condição.

É evidente que esta ação não pode perdurar porque uma regra básica das relações humanas é que a pessoa que se encontra na condição de vítima não pode ser protagonista, uma condição antagônica a esta posição. Desta forma o padrão maternal acolherá a criança ou o adulto vítima e lhe dará o cuidado necessário para sua proteção e recuperação, mas manterá o sujeito preso a um vínculo de dependência. Somente a posição paternal subsequente poderá livrar o sujeito dessa condição, obrigando-o a uma posição proativa. É importante notar que posições maternais e paternais se referem às funções e não aos personagens mãe e pai e muito menos às identidades de mulher e homem.

2- Punição

Essa condição de vítima é geradora de ressentimentos e o ressentimento vai produzir o segundo passo neste processo que é o “Punitivismo“. Esta foi uma tendência marcada nos primeiros anos do movimento de humanização. Se conhecíamos as vítimas de uma atenção inadequada por certo que haveria aqueles a quem culpar, em especial os que detém mais poder e conhecimento autoritativo. Nessa etapa muito se discutia sobre as punições devidas aos médicos e hospitais que utilizavam de forma exagerada e insensata os recursos tecnológicos. Da mesma forma como o enxergamos nos problemas sociais, o punitivismo na obstetrícia se baseia na crença que o aumento ou alargamento das punições sobre médicos e hospitais poderia garantir uma maior qualidade da atenção, pela simples eliminação da impunidade. Décadas de observação e inúmeras experiências nos mostram que esta é uma estratégia equivocada e de resultados pífios. Se punir quem vendia álcool na lei seca não diminuiu seu consumo, porque a punição aos médicos poderia trazer qualquer benefício, em especial quando sabemos que eles são igualmente reféns do “imperativo tecnológico” que os mantém prisioneiros de um modelo tecnocrático e intervencionista, mesmo quando têm pleno conhecimento de que não é o mais adequado.

3- Idealismo

A etapa seguinte eu chamo de “Idealismo”. Esta etapa ocorre quando vemos o florescimento de uma enorme quantidade de ideias e propostas relacionadas à atenção ao parto. Começamos a nortear nossas ações centrados nos trabalhos, pesquisas e estudos de ideólogos e pesquisadores que produziram um olhar desafiador sobre o parto. Assim, o “parto Leboyer” surgiu como uma prática – repleta de variantes – a partir das ideias do obstetra francês Frederick Leboyer. Alguns anos após, outro francês, Michel Odent, nos convidava a refletir sobre nossa ancestralidade e as reais necessidades de uma gestante em seu momento de parir. A partir deles, muitos outros vieram, entretanto, como pode ser facilmente observado, “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam”. O livro de Robbie “Birth as an American Rite of Passage” foi publicado há mais de 30 anos, e nessas três décadas o cenário do nascimento humano no mundo ocidental apenas piorou no que diz respeito à autonomia das mulheres, mesmo com grande acúmulo de perspectivas inovadoras e estudos que as embasam. As taxas de cesariana no Brasil chegaram a um platô que se situava entre 55 e 57% e não conseguem descer abaixo disso – em verdade os últimos relatórios falam de uma taxa de 59.7% de cesarianas e 82% no setor privado – inobstante as boas iniciativas de algumas instituições e poucos profissionais. As Intervenções continuam em alta, apesar de inúmeras publicações demonstrando sua inutilidade e mesmo seu efeito deletério para o binômio mãe-bebê

Fica evidente que as ideias são incapazes – por si só – de promover mudanças. Por mais que os médicos saibam da inutilidade da episiotomia, da alta taxa de cesarianas, dos enemas e da posição de litotomia, o simples reconhecimento desses erros não os leva a mudanças significativas em suas atitudes. Esse tipo de pensamento idealista nos levou a fazer “caravanas” pela humanização do nascimento no início do século, baseados na ilusão de que a simples confrontação com a verdade das pesquisas seria capaz de imprimir novas condutas médicas. Ledo engano; não houve nenhuma mudança significativa; nenhum índice de intervenção se tornou melhor pela demonstração prática de sua inadequação. Mesmo o programa “Parto Adequado” que foi utilizado em hospitais privados – o ponto nevrálgico das intervenções desmedidas – teve um “sucesso” inicial de diminuir em 1% as intervenções de nascimentos cirúrgicos, mas os valores voltaram a crescer algum tempo depois. A “educação médica” não parece surtir efeito, pois parte de uma perspectiva que não reconhece a dinâmica de poder que permeia a atenção à saúde.

4- Reformismo

A próxima etapa é derivada do idealismo e se refere a um movimento que ainda é hegemônico entre os obstetras “liberais”, aqueles simpatizantes do parto normal (também conhecidos como “vaginalistas”) e entre muitos profissionais das correntes da humanização do nascimento. Ela se chama “Reformismo“, que consiste na ideia de que é possível transformar a atenção ao parto se houver uma educação ampla, reforma no ensino da medicina, contratação de médicos alinhados com os projetos de humanização e estímulo à contratação de enfermeiras obstetras pelos centros de atenção ao parto. Essa proposta acredita que é possível “moralizar” a atenção apostando no sujeito, nos “bons profissionais” (os “good guys”) na suavização de suas práticas, na eliminação de intervenções desnecessárias, na educação e na informação científica atualizada – mas não na mudança do sistema no qual estes profissionais estão inseridos.

Existem inúmeros hospitais de caráter reformista na atualidade, alguns por acreditarem nessa proposta, enquanto outros por entenderem que se trata de um modelo intermediário para uma verdadeira mudança que só ocorrerá num futuro distante. No último congresso internacional da ReHuNa houve um momento profundamente revelador dessa proposta: o convite para que o presidente da Febrasgo (Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil) tivesse uma fala. Nesta ocasião ele se mostrou educado, afável e compreensivo com as reivindicações dos seus entrevistadores. Para muitos um ato de reconhecimento de nossa relevância. Todavia, deveria ter ficado evidente para todos os presentes em sua palestra que a sua concordância – ou não – com as nossas propostas é absolutamente irrelevante para uma real transformação. O mesmo acontece com uma mesa em que representantes israelenses se encontram com a população palestina para discutir o futuro da região. As posições jamais serão alcançadas através da simples concordância com as visões dispares de mundo, e qualquer solução só poderá brotar do atrito e do choque de poderes – mais ou menos violento. Para isso é preciso uma abordagem “materialista e dialética”.

O Materialismo dialético é uma concepção filosófica e uma metodologia científica que propões a visão de que o ambiente, o sujeito e os fenômenos materiais e físicos tanto modelam a sociedade e a cultura quanto são modelados por eles; ou seja, que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social. Por mais que seja evidente a correção da luta por autonomia das mulheres em relação ao parto e nascimento, estas ideias somente terão avanços quando o ambiente social se modificar e as próprias mulheres se colocarem à frente do processo de mudança. Precisamos tanto de melhores profissionais quanto melhores clientes para o parto. Médicos e gestantes estão sujeitos ao mesmo modelo, atuam dentro dele e ao mesmo tempo são afetados por ele, e precisam agir em consonância para que este seja transformado. No atual estado da arte, a Medicina e sua lógica da intervenção está em antagonismo com as reivindicações das gestantes que desejam um parto humanizado. Jamais conseguiremos uma modificação profunda no sistema através de reformas que não mudam em profundidade o sistema de poderes que governa o corpo das mulheres, sua sexualidade e reprodução.

Enquanto o parto for considerado “ato médico” e se mantiver nas mãos de cirurgiões nenhum avanço significativo será alcançado, pois que a perspectiva médica e a visão da parteria são antípodas no espectro da atenção. A lógica médica aplicada ao nascimento objetualiza as pacientes, transformando-as em objetos dóceis e inermes para a sua atuação e intervenção. Essa lógica é essencial para o tratamento de muitas doenças e em especial para a realização de cirurgias, mas não se aplica ao atendimento de um evento fisiológico como o parto sem excluir as mulheres e seus bebês da equação. A aventura da Medicina no percurso do nascimento humano levou inexoravelmente ao apagamento das mães de qualquer decisão, colocando nas mãos dos médicos toda a responsabilidade do que vai acontecer a elas. Não por outra razão em nossa cultura os médicos “fazem partos”.

5- Revolução

O que resta como solução é deixar para trás as ilusões, entendendo a arena do nascimento como uma “luta de classes” que não vai chegar a qualquer consenso enquanto os médicos mantiverem o controle político e econômico sobre o processo de parir. Somente com a queda deste poder, e a ascensão das especialistas no parto – parteiras profissionais e tradicionais – haverá possibilidade de uma verdadeira “Revolução do Parto”, mas que só vai acontecer quando as massas, nutridas pela inescapável indignação, reivindicarem que a assistência volte ao controle das próprias mulheres e através do auxílio dos profissionais mais capacitados para este ofício. Cabe também resguardar aos médicos a nobre tarefa de agir nas circunstâncias em que a trilha da fisiologia se perdeu no emaranhado único de cada nascimento e adentrou na rota perigosa da patologia, para que eles sejam os heróis que tanto necessitamos. Todavia, diante dessa tarefa, é importante lembrar de Simon Chapman, professor de Psicologia na Austrália, que durante muitos anos estudou a questão do tabagismo e expôs a indústria de tabaco pelos seus malefícios à saúde humana. Em suas palavras “uma vez que seu trabalho ameace uma determinada indústria, corporação ou ideologia dominante, você será atacado sem tréguas e de forma cruel. Portanto, crie para si mesmo uma couraça de rinoceronte”. Todo aquele que deseja confrontar os poderes estabelecidos sobre o parto e, portanto, sobre o controle da sexualidade feminina, será atacado de forma incessante e violenta por aqueles que se sentem ameaçados pelo novo paradigma. Nunca isso foi tão verdade como agora.

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Pais expulsos do parto

Pais e Filhos

Insistir nesse equívoco – “expulsar” os pais (homens) da sala de parto – atrapalha historicamente os projetos e objetivos da humanização do nascimento. E por “equívoco” eu considero qualquer determinação externa que não parta da mulher.

Inserir o pai ou expulsá-lo é a mesma coisa, se nos negamos a olhar cada mulher e cada parto como únicos e especiais. Sem o protagonismo poderemos apenas sofisticar tutelas. Expulsar o pai piora o parto, inseri-lo no ambiente de parto como regra fixa também. Quando é que vamos parar com estas regras ridículas as quais as mulheres devem se submeter, determinações apriorísticas que não levam em consideração o contexto, seu desejo, sua vontade e a sua subjetividade?

A ideia original do Michel (Odent) é de que, para que o parto possa ser levado em segurança é fundamental que a paciente não se sinta observada, resguardando assim a sua privacidade e intimidade. Com isso elevaremos os níveis de ocitocina e manteremos a adrenalina baixa, produzindo uma harmonização do ambiente psicológico e hormonal, regularizando as contrações e alcançando o progresso adequado do trabalho de parto. O entorno é fundamental, como diria Grantly Dick-Read; a “psicosfera” é determinante, como diria meu colega Max. Este parece ser um ponto pacífico, e quase ninguém parece discordar dele.

Entretanto, criar sobre este princípio geral uma “regra”, um “protocolo”, um determinante externo ao desejo da mulher é tratar as mulheres como bichos desprovidos de subjetividade e de linguagem. Estabelecer que todos os pais devem sair do ambiente de parto é um equívoco; determinar que todas as mães amamentem na primeira hora também. Obrigar a euforia e a felicidade após cada parto é uma imposição cruel e desumana. Não tem saída: o único caminho dentro da trilha da linguagem é olhar para este fenômeno como algo especial, irreproduzível e infinito em suas particularidades e detalhes.

Quantas vezes será necessário repetir que “intimidade” é um valor subjetivo, pessoal e determinado por circunstâncias de ordem cultural, circunstancial e contextual?

O que era intimidade há 200 anos hoje não é. Dormitórios para os pais diferente daquele dos filhos parece uma obviedade hoje em dia, mas há poucos anos o contrário era o padrão. A intimidade – de um casal ou de uma mulher parindo – é uma criação de caráter social, e não um valor biológico para os humanos. As análises etológicas, que estudam o comportamento animal, são excelentes fontes de ensino, mas não podemos expandir a compreensão de comportamentos – como no sexo e no parto – daquilo que observamos em animais para os seres humanos, dotados de linguagem e cultura. Portanto, o que é válido para uma vaca, uma cabra, um felino ou um equino não é necessariamente adequado para seres humanos!!

Uma mulher pode se sentir vigiada estando sozinha em uma sala, e pode se sentir plenamente segura e com intimidade estando rodeada de amigos, familiares e profissionais que a atendem. Criar proibições para este evento tão delicado não parece ter embasamento científico e lógico, e não parece ser adequado ou justo.

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