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Com açúcar com afeto

Ele sentou-se na poltrona à minha frente enquanto escutávamos ao longe a melodia serena da vida, envoltos na bruma matinal e escutando os pássaros alvissareiros.

– Então Ric, quer saber como foi?

– Pode contar

– Diga aí uma droga que já ouviu falar. Qualquer uma.

Minha relação com as drogas sempre foi de aversão e uma certa repulsa. Quando nos anos 90 criei o PAOH – Protocolo de Assistência Obstétrica Humanizada – um simples protocolo de atendimento baseado em premissas simples de acompanhamento ao parto de baixo risco, um dos elementos fundamentais na lista de seis itens era “Uso judicioso e restrito de medicamentos durante o trabalho de parto”. Portanto, minha distância com as drogas incluía tanto as drogas ilegais quanto as legais, posto que ambas possuem efeitos perigosos para a economia orgânica. Entendia eu que a “legalidade” de uma droga não se referia à sua periculosidade ou dano possível, mas a questões contextuais e culturais ligadas ao seu controle e produção. Maconha é ilegal e cachaça é legalizada, mas o álcool tem uma mortalidade milhares de vezes superior à maconha. Portanto, eu sabia o quanto esse valor era volátil na sociedade. As descrições de Freud sobre seu uso de Cocaína no início do século passado são curiosas, enquanto as propagandas com médicos fumando e fazendo publicidade de Camel – aliado ao (agora) estranho patrocínio da indústria do tabaco às instituições médicas – também nos ajudam a entender um pouco mais a complexidade do tema.

Fiquei olhando para Bruno com atenção enquanto pensava em uma resposta para seu desafio. Não queria dizer uma droga muito simples para não ser considerado ingênuo, mas também nenhuma muito pesada para não ser ofensivo. Ele continuava parado à minha frente com um sorriso instigante. Era alto, levemente grisalho e ostentava uma barba bem cortada.

– Cocaína, disse eu finalmente.

Com um sorriso respondeu

– Muito, doutor. E por muitos anos. Diga outra.

– Maconha? Heroína? Metanfetamina? Crack?

A todas elas me respondia afirmativamente, e para cada uma acrescentava outras em sua longa lista de drogas experimentadas. Todas tinham sua história, as quais descrevia como quem relata as lembranças de uma amante do passado: um início fulgurante, a lua-de-mel, a convivência conturbada e o longo martírio de um final catastrófico.

Levantou-se do assento em que estava e foi até a estante logo atrás. Trouxe um grosso livro de capa dura em que se lia na capa “O Pão dos Deuses”, de Terence de McKeena, uma espécie de enciclopédia das drogas. Folheei algumas páginas lustrosas ricamente ilustradas com fotos de plantas, equipamentos, cigarros artesanais, cachimbos e seringas.

– Estou limpo há três anos, doutor. Nada mesmo. Fiz essa promessa a ela.

Olhamos ambos para o quarto onde a ação se desenrolava. Ali, sua mulher respirava profundamente enquanto aguardava que suas contrações voltassem. Seu semblante era sereno, no intermezzo melífluo entre duas ondas de contração. Atrás dela a doula massageava suas costas deixando o ambiente com um suave aroma de lavanda. Abraçada a ela a parteira dançava os passos de uma dança tão antiga quanto conhecida. São dois prá lá, dois prá cá. Respire fundo, deixe seu corpo se inundar de energia.

Ficamos escutando por alguns segundos os sons do quarto adjacente enquanto eu fechava o livro de capa dura à minha frente.

– Sabe qual foi a mais difícil de largar?, perguntou

– Nunca tive que largar nenhuma, disse eu, quase envergonhado da minha caretice. Eu diria que o cigarro, pelo menos é o que tantos pacientes me disseram ser tão complexo e difícil.

Ele abriu um sorriso.

– Negativo. Não digo que larguei o cigarro de forma fácil, mas nem se compara à droga mais difícil de todas elas. Abra de novo o livro, está nas primeiras páginas.

Folheei as páginas brilhantes desde o início até o momento em que ele me pediu para parar e apontou para um montinho de grãos brancos.

– Esse aí, doutor. Para mim o açúcar foi a droga mais difícil para me libertar.

Sorri com ele. Subitamente me senti um viciado e pensando comigo “Não, eu paro quando quiser”….

Nossa conversa se manteve entre risadas, comentários sarcásticos e sussurros até o momento que Zeza me chamou.

Completou”, disse ela, com aquele sorriso cheio de satisfação que eu bem conhecia.

– Você pode ir para a banheira agora, se quiser, disse ela para a bela menina que sentia suas últimas dores.

Zeza se posicionou à sua frente, enquanto a doula permanecia ao lado. O marido abraçou-a por trás firmemente, enquanto esperávamos pela chegada do bebê. Seu corpo semissubmerso se contorcia a cada onda contrátil, e depois relaxava no espaço silente entre elas. A tudo eu observava atentamente, mantendo a câmera a postos para gravar o momento da chegada.

Enquanto as velas ao redor da banheira iluminavam o espaço do banheiro minha atenção se concentrava no rosto sereno da mãe e me perdia pensando sobre os significados últimos dessa passagem. Quando vejo o momento inexplicável do apagamento neocortical, o mergulho na “partolândia” e o mistério eterno deste momento para o mundo masculino eu sempre lembro do sorriso de Elisabeth Davis no documentário “Orgasmic Birth” ao dizer “Se lhe dissessem que esta é a maior aventura possível da existência humana e que aqui está o mapa, você recusaria?

Os minutos se sucederam na velocidade dos gemidos enquanto mantivemos o nosso silêncio solene diante do que estava para acontecer. As chamas das velas tremulavam a cada suspiro mais longo, a cada palavra que saía dos lábios da bela menina. Zeza, a postos, finalmente aponta discretamente seu indicador para me mostrar a emergência dos cabelos do bebê. O momento da chegada se aproximava.

Se há um momento nessa cultura em que as máscaras caem, é este. As carapaças pétreas que seguram nossa experiência cotidiana se desfazem diante da explosão de emoções e significados que emergem durante o nascimento. Sei que nada será como antes, amanhã…

O momento tão esperado se aproximava e eu podia sentir na pele o silêncio de Bruno. Não havia um som, uma palavra, apenas os músculos retesados de seus braços e o olhar parado sobre o ventre de sua mulher. Abraçado a ela ele aguardava calado o momento decisivo.

Zeza virou seu olhar para mim e eu percebi o sinal. Na próxima contração ele viria. O silêncio se fez ainda mais ruidoso e só foi interrompido com o grito primal, seguido do som das mãos de Zeza retirando o bebê da água e colocando-o de frente para o sorriso de êxtase de sua mãe. Registrei o momento mágico com minhas mãos trêmulas, firmes o suficiente para não estragar a imagem. Em mais um momento e o bebê silenciosamente se aninhava no colo da mãe.

Foi então que o silêncio da cena foi novamente interrompido. Como a erupção de um vulcão, Bruno gritou com o máximo de seus pulmões. Gritou não como um grito de vitória, ou de consagração, mas como algo muito mais profundo e inquietante. E sobre seu grito sobreveio outro, e mais outro e depois outro.

Zeza olhou para mim com alguma preocupação. A conversa anterior sobre as drogas me deixou preocupado, confesso. E se ele estivesse entrando em uma espécie de surto? E se ele se descontrolasse? E se algo ocorresse que colocasse a todos – em especial ele mesmo – em risco?

Olhei para Zeza e a doula e nossos olhares mudos tinham o mesmo sentido: era melhor tirá-lo da cena até que se acalmasse. Foi então que eu lhe fiz um convite irrecusável:

– Bruno, quem sabe deixamos as mulheres com essa parte e vamos tomar um café na cozinha?

Apelei para o meu vício. Talvez assim, assumindo diante dele uma parceria no universo das adições, ele se sentisse compelido a me acompanhar.

– Claro, disse ele. Eu passo um café para nós.

Colocou-se de pé, e secou o corpo com a toalha pendurada. Foi até seu quarto e rapidamente trocou a bermuda que usava. Entrou comigo na cozinha, mas não conseguia controlar-se diante das emoções que havia presenciado.

– Ric, foi muito demais. Foi algo espetacular. Foi mágico.

Colocava as mãos à frente do rosto e caminhava inquieto de um lado para o outro da cozinha, e seus passos se deixavam acompanhar pelo chiado da chaleira. O aroma do café em pó invadiu o recinto enquanto ele continuava a falar.

– Tudo Ric, não apenas o momento da chegada do bebê. Não somente o êxtase, mas tudo que o precedeu. Não se trata de valorizar o prazer de receber sua filha nos braços, mas poder valorizar a completude da experiência humana. O medo, a angústia, a espera, a tensão, a ansiedade pelo momento de sentir na pele a maciez de um bebê. Todas essas emoções fazem parte do pacote, e seu valor é imenso exatamente por isso. Como podem escolher conscientemente trocar esta rica experiência por nascimentos mediados pela tecnologia, onde as emoções são engarrafadas, pasteurizadas, controladas por máquinas e onde recebemos apenas a parte final, sem que o ciclo todo tenha se completado?

Tomou um pouco de fôlego, respirou profundamente e fixou o olhar em algum ponto do infinito cósmico. Olhou mais uma vez para mim e disse:

– Ric, eu usei todas as drogas do mundo, tive todas as sensações que a vida pode oferecer. Participei das viagens lisérgicas mais doidas e mais bizarras. Andei pelo vale das sombras e consegui milagrosamente chegar até aqui. Por isso mesmo posso te afirmar que nenhuma sensação chega sequer perto desta que acabo de sentir. Nenhuma experiência supera esta e nenhum barato consegue ultrapassar esta emoção.

Nenhuma descrição de uma experiência sensorial poderia ser mais clara sobre a temática do gozo e do prazer, e só alguém que esteve por tantos anos envolvido no mundo da adição química poderia dar uma explicação tão rica quanto esta.

Verteu a água fumegante sobre o coador repleto e serviu uma xícara para mim. Ofereceu açúcar e eu menti que não queria. Ele sorriu da minha falsidade.

Enquanto ele se preparava para sentar na mesma poltrona em que estivera nas horas que antecederam, algo milagroso ocorreu.

O telefone tocou.

Bruno titubeou por instantes antes de atender. O bebê não tinha sequer 10 minutos de vida, e alguém ligava. O que seria?

– Alô, pois não?

Eu o acompanhava com o olhar, tentando adivinhar as palavras que só ele ouvia. Não era preciso mais do que metade das falas para saber do que se tratava.

– Sim, pai, está tudo bem. A bebê acabou de nascer. Não, estamos mesmo em casa, mas depois eu explico. Não se preocupe estamos muito bem. Não, não pesamos ainda, mas ela é linda e saudável. Assim que soubermos mais detalhes vamos informar. Ela está com a enfermeira e sua auxiliar aprendendo a mamar. Amanhã vocês podem vir aqui fazer uma visita. Claro pai, muito obrigado. Sim, eu sei…. claro que eu sempre soube.

Sua voz ficou mais pesada, mais grave. Ele estava visivelmente emocionado. Pensei em me levantar e deixa-lo a sós falando com o pai, mas não houve tempo para isso.

– Agora eu também sou pai, e talvez eu possa finalmente entendê-lo. Um beijo pai e obrigado.

Ao longe escutamos o choro forte da bebê. Tomei um gole de café amargo e me diverti com o vapor que pulava da xícara para embaçar meus óculos. Melhor assim; prefiro que não vejam um velho obstetra chorar.

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Moderação no Discurso

Algumas mulheres poderiam – em nome do respeito, da racionalidade e da boa convivência – aprender que discordar das suas opiniões NÃO significa desconsiderá-las, silenciá-las ou desmerecê-las. Debater com alguém demanda reconhecer visões de mundo diferentes e possibilidades diversas de olhar para o mesmo fenômeno. Escutar dignamente uma opinião diversa, sem adjetivos, ofensas ou criticas “ad hominem”, são condições indispensáveis ao debate.

Infelizmente nas redes sociais qualquer discordância significa malquerência. Uma mulher ofender um homem que ousou discordar dos detalhes de uma argumentação (mesmos tendo concordado com a conclusão) é muito triste de ver, pois determina o fim de qualquer possibilidade de interlocução.

E isso é sempre uma perda…

Debater é fundamental, mas entendo como o mundo virtual pode transformar uma conversa frugal em uma briga. Ontem fui discutir uma piada machista sobre a bunda da Yoko Ono e fui xingado, mesmo concordando com a tese principal e condenando o machismo explícito do chiste. Entretanto a pessoa dizia que Yoko era mais do que uma bunda, a qual “só serve para eliminar fezes“.

Aí eu discordei. “Peraí. Uma bunda é muito mais do que isso, e por seu valor simbólico e erótico ela é tão valorizada. Uma bunda é o quadril, as ancas, e por ali passam bebês. Passam dores e passam desejos. Ali está o sexo com suas reentrâncias e mistérios. Uma bunda tem valor simbólico, muito mais do que operacional. Para criticar uma piada machista não é necessário biologizar a bunda, ou o corpo da mulher“.

Por dizer isso e discordar da visão diminutiva de um fetiche (adorado em todos os povos, tanto quanto os seios fartos), fui agredido virtualmente, mesmo reconhecendo que a Yoko não merecia esta desconsideração de caráter objetual e machista.

Ok, “mea culpa“…

Eu já falei sobre isso, e a culpa é minha. Trata-se do “debate com as vítimas“. Quando um dos sujeitos do debate É vitima (como as mulheres são) qualquer “adversário” (pois sou colocado nessa posição) está inexoravelmente perdido. Ele não tem perdão por incorporar em sua fala, mesmo sem o desejar, o agressor. Se eu disser, em forma de conselho, que “as mulheres deveriam…” isso é transformado – antes mesmo de atingir a retina – em uma ordem indevida, e tratado de forma injusta como se uma violência fosse. Quando o debate fica assim e literalmente TODAS as palavras precisam ser vigiadas é por que o diálogo já acabou ha muito tempo e só o que resta é um enfrentamento de solilóquios.

Por outro lado é interessante notar como algumas mulheres chamam homens de “machistas” com total liberalidade. Creio que as que fazem isso não se dão conta como isso é ofensivo. Pior: não oferecem sequer uma defesa possível. Vou contar um segredo. Toda a vez que eu escuto uma mulher me acusar de machista, apenas por discordar dela sobre palavras ou detalhes de percepção, eu me sinto como uma mulher que, ao debater com um homem, é chamada de “mal amada”. Pense nisso antes de chamar um amigo seu de “machista”, principalmente quando o seu amigo simplesmente discordou de você.

Meu pedido é que debatam e dialoguem sem ofender, sem rotular ou adjetivar. E o meu “mimimi” não é gratuito. É uma tristeza de ver gente que não tem consideração pelo interlocutor. Que ofende apenas porque discorda. Que agride e fere, mas que reclama das (verdadeiras) agressões sistemáticas que sofre. Como eu disse anteriormente, quando as palavras precisam ser medidas para não serem usadas contra quem as proferiu é porque o desejo de debater deu lugar há muito tempo para sentimentos menos nobres.

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