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Sensibilidade

Veja região do hospital em Gaza antes e depois da bomba

Diz-se que na segunda Grande Guerra a opção pelo extermínio em larga escala de judeus, ciganos, gays, eslavos, russos, etc., ocorreu por dois grandes motivos. O primeiro foi de ordem econômica, já que a guerra se prolongava por mais tempo que o previsto e as balas dos fuzis eram muito mais necessárias no front de batalha do que nos campos de concentração. Não era admissível gastar tanta munição em prisioneiros esquálidos e desimportantes para a grande economia de guerra. A segunda razão, descoberta mais tarde pelos estudiosos do fenômeno nazista, foi preservar a sanidade mental dos soldados alemães.

Sim, a banalização da morte acontece em qualquer guerra, e um nível de isolamento emocional é sempre essencial para manter a sanidade. Corações empedernidos suportam melhor os horrores dos combates. Criamos uma redoma de proteção psíquica para poder sobreviver à carnificina e ao absurdo do extermínio de semelhantes de forma cotidiana. Até os médicos e enfermeiras, que lidam com a morte no seu dia a dia, precisam desse recurso para não destruir seu aparelho psíquico com cada óbito que testemunham em seu labor diário. Entretanto, esse tipo de proteção afetiva e emocional tem suas falhas e com o tempo se deteriora e se torna ineficiente. Quando somos o vetor da destruição de dezenas ou centenas de inocentes não há isolamento emocional seja suficiente para sustentar tamanha desgraça. Com o tempo os soldados dos pelotões de fuzilamento nazistas acabavam tendo crises emocionais graves e muitos deles apelaram ao suicídio para se livrar da dor insuportável de serem os algozes dos prisioneiros.

As perdas de jovens soldados alemães acabaram mostrando ser impossível manter este tipo de aniquilação sem pagar um custo elevado entre as próprias tropas nazistas. A decisão pelas mortes “por atacado” foi muito baseada na necessidade logística dos comandantes alemães de eliminar o máximo possível, no menor período de tempo e com o menor custo psicológico entre os próprios combatentes.

Hoje, com a banalização das mortes de civis na Palestina, ainda usando as mentiras surradas e antigas de crianças sendo usadas como “escudos humanos” ou que o “Hamas bombardeou o próprio povo”, podemos estar testemunhando o mesmo fenômeno, agora do lado sionista. Eu tento entender o que acontece com as emoções de um jovem piloto sionista ao receber a ordem de bombardear um hospital, uma escola, um edifício de moradia sabendo que suas bombas vão matar e mutilar centenas de crianças, mulheres, velhos e profissionais de saúde. Como esse sujeito volta para casa para abraçar sua mulher e seus filhos? Como suporta ser o veículo de tanta dor, tanta desgraça, tanta desumanidade? Até quando vai suportar o peso de sua culpa? Com o tempo o peso dessa barbárie começa a pesar sobre os ombros dos próprios israelenses. Muitos já são os reservistas que preferem ir para a prisão à participar de operações do IDF que são verdadeiras chacinas. Outros resolvem se tornar ativistas pela paz e até se unem em organizações pró Palestina. Não há como manter-se são quando suas mãos estão manchadas do sengue de crianças.

Espero que a mesma dor sentida pelos jovem atiradores alemães atinja também os matadores de hoje, e que ela seja capaz de transformar suas consciências ado(rm)ecidas. A grande revolução na Palestina também vai contar com o que resta de humanidade entre os israelenses.

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Morrer

Minha mãe morreu em casa, como todos que têm a possibilidade de escolher deveriam cogitar.

Em verdade, esta escolha se fez há alguns anos quando de sua última internação por um problema neurológico. Muito piores que as dores e angústias do seu transtorno físico foram as burocracias relacionadas à internação. Apesar do notável o esforço da equipe de enfermagem em diminuir o desconforto com a situação, nada foi suficiente diante da objetualização natural a que passam todos os velhos confinados em hospital.

“Para um velho a rotina é um alívio”, diz meu pai. Seu argumento é de que a mudança de um padrão diário de atividades produz a inevitável necessidade de readaptação às novidades. Esse exercício de mudança é simples e estimulante para os jovens, mas angustiante e até mesmo aterrador para os velhos. Quando minha mãe acordava de madrugada e não encontrava meu pai ao seu lado isso produzia um sofrimento diretamente proporcional ao seu grau de confusão. Este foi apenas um dos múltiplos efeitos da internação; as medicações estupefacientes, a falta de luz solar, as pessoas uniformizadas ao seu redor, a impessoalidade, as visitas restritas, a cerimônia, a “papelada”… tudo contribui para a piora do quadro psíquico dos idosos.

Com o meu pai ocorreu o mesmo. Quando de sua internação por um AVC o drama foi muito mais o hospital do que a própria doença. As visitas, as rotinas, as drogas, a troca da equipe de enfermagem, as avaliações médicas relâmpago, o atraso dos neurologistas e as “normas de segurança” tornaram a internação um suplício, tanto para ele quanto para nós, os familiares.

Não quero demonizar hospitais e profissionais que lá trabalham, mas alertar apenas do custo muito alto de manter pessoas idosas em tais lugares. A escolha para levar e manter idosos no hospital deveria ser por exclusão. No hospital deveriam permanecer apenas quem dele pode se beneficiar.

Por isso nos mantivemos firmes em não internar minha mãe diante da sua piora e da proximidade do seu quadro final. Mesmo sabendo da dificuldade de suportar a tensão do último suspiro de quem tanto amamos, a escolha de permitir que a passagem se faça com suavidade e na paz do lar vale o sacrifício.

Assim como nascer, a morte deveria ser um momento pleno de afeto e cuidado, e junto aos seus. Os polos da vida se encontram na necessidade de oferecer significado aos momentos mais importantes da nossa breve estada. Nascer e morrer deveriam ser momentos sagrados, resguardados da intervenção exagerada dos sistemas de poder.

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Suicídio

O despreparo para lidar com a morte é uma das características mais dramáticas da formação médica ocidental. As dificuldade em lidar com o nascimento e com a autonomia dos pacientes lhe seguem. Entretanto, a morte é o maior tabu. Morte é fracasso, erro, fim. Perdemos todos, paciente e profissionais, derrotados pelo fantasma do fim. Morte mostra nossos limites e nossa falibilidade última. Não salvamos a todos e sempre haverá um truque do destino a nos trair.

O suicídio é onde testemunhamos essa incapacidade de forma mais gritante. Não aceitamos que alguém deseje se atirar no abismo do qual nos esforçamos para salvá-las. A nossa abordagem com os suicidas é, via de regra, baseada em julgamentos, em uma postura moralista e opressiva.

Um episódio ocorrido no Pronto Socorro, há 35 anos, foi relatado a mim por colegas de outra escala de plantões. Um colega estudante atendeu um sujeito que havia tentado o suicídio com um revólver de baixo calibre dando um tiro na própria boca. A tentativa foi frustra: a bala apenas transpassou sua bochecha. Diante disso, o colega do plantão disse ao paciente que aquele tinha sido “um trabalho mal feito”, e que o correto seria atirar de cima para baixo e com um revólver mais potente. O homem escutou calado enquanto tratavam do seu ferimento. Um mês depois o paciente volta ao pronto socorro tendo realizado o trabalho da forma correta. Ao saber disso o colega se defendeu dizendo que “poupou o trabalho de muita gente”.

Os aspectos psicológicos da atenção médica sempre foram negligenciados durante a minha formação. Mais do que isso: qualquer tentativa de abordá-los era vista como “fraqueza”, falta de “seriedade acadêmica” ou “frescura”. Em se misturando os dois temas – autonomia do paciente e morte – o buraco era gigantesco, um vazio de palavras, conceitos, preparo e, acima de tudo, empatia.

Encarar a morte dentro da vida e enxergar o suicídio como uma tentativa desesperada de escapar à dor é um grande desafio. Como a depressão, em especial, não aparece em nenhum exame de laboratório ou de imagem somos levados a desacreditar em sua própria existência, rotulando as dores da alma e os desejos de acabar com a vida como carências pontuais.

Nada poderia estar mais errado. A dor é real e corrosiva, a ponto da morte se tornar menos dolorosa que ela. Enquanto não houver preparo para a abordagem empática de paciente diante dos dilemas do aborto, do suicídio e dos transtornos mentais jamais conseguiremos oferecer o alívio e o auxílio que são as nossas tarefas mais primordiais e essenciais.

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Admirável Mundo Novo

Acompanhei meu pai a uma consulta médica em um centro clínico ligado a um hospital da minha cidade. A princípio seria uma consulta banal, para entrega de exames e uma conversa sobre os medicamentos que ele utiliza. Marcada a consulta nos dirigimos ao hospital.

A entrada do prédio é majestosa, por onde seguranças discretos passeiam de um lado para outro, com os indefectíveis fones de ouvido. O hall é grande, amplo, marmóreo e limpo. Se de um lado tal magnitude reforça a imponência do ambiente, por outro lado diminui de forma considerável a importância do sujeito que o procura. Eu me senti pequeno, diminuto, uma minúscula engrenagem num sistema gigante. Apresentamos nossos documentos de identidade para funcionários de uniforme. Meu pai tentou dizer uma gracinha costumeira para a funcionária, para tentar desmanchar seu olhar soturno. Nada conseguiu. Após dizermos o nome da médica e a sua especialidade, recebemos nossos crachás magnéticos e brevíssimas instruções de como usá-los nas catracas eletrônicas.

Ao lado da recepção uma grade é interrompida por pequenos monstrengos cromados: as catracas. Uma leve aproximação do crachá modernoso e uma seta verde brilha no aparelho trifásico. Está liberada. “Catrrracc“, grita o bichano quando meu corpo empurra seus braços de ferro. Sim, ponderei… nada mais é que uma onomatopeia, mas só hoje, depois de mais de 50 anos, eu me dei conta dessa banalidade. Nunca é tarde para se aprender com a experiência cotidiana. Pegamos o elevador que vai para o décimo segundo andar. Impossível não lembrar:

Estranho é gostar tanto do seu All Star Azul
Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras
Satisfeito sorri quando chego ali
E entro no elevador
Aperto o 12 que é o seu andar
Não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem
Ficou pra hoje

Infelizmente não era Cássia Eller que estava nos aguardando para terminar aquela conversa que começamos no outro dia. Na verdade eu gostaria de lhe dizer muita coisa. Queria ouvir sua voz rouca, falar sobre seu filho, a dureza de uma vida conturbada, suas dificuldades em lidar com a sexualidade sem arreios. Queria também lhe perguntar, por exemplo, naquele fatídico dia, o que ela…

Meu pai interrompe meus pensamentos e aponta para uma máquina pequena à nossa frente. Pequena e amarela, com um botão azul. Sobre ela o lia-se um cartaz: “Retire sua senha e aguarde ser chamado”. Aperto conforme determinado e o aparelho vomita uma tarja amarelo-biliosa com um número destacado: 341. Digo ao meu pai que é melhor sentar e aguardar, pois ainda teremos 340 consultas antes da nossa. Ele sorri, pois sabe que este é um humor típico da nossa família, e a culpa é sua por essa herança maldita. Seguimos em frente e entramos na ampla sala de espera do centro clínico.

A sala estava repleta de pessoas, mas achamos vagas duas poltronas no canto. À nossa frente uma linha de recepcionistas com telefones acoplados à cabeça. As pessoas na recepção não sorriem, parecem tensas ou conformadas. Não existe nenhum vestígio de alegria. Meu pai ainda tenta me contar piadas, ou fazer comentários curiosos sobre as pessoas presentes, mas o ambiente não ajuda. Ficamos alguns minutos aguardando que algo viesse a acontecer, mas a TV ligada à nossa frente com reprises de novelas dos anos 90 era o único som a preencher o ambiente carregado. As janelas mostravam um dia radiante, com temperatura ainda amena e agradável, mesmo que o clima dentro da sala de espera fosse artificialmente controlado. Os raios de sol passavam raspando pela última das janelas, deixando um filete radiante e dourado na parede adjacente, anunciando que o pôr do sol não tardaria.

Resolvi me levantar e perguntar o que ocorreria a seguir. Dirigi-me à recepcionista que estava livre e sem dizer nada apresentei a ela minha “senha”: 341. Ela me cumprimentou sorridente e disse que já ia mesmo chamar. Avisou que a consulta está confirmada com a doutora “P”, neste mesmo andar, e que anunciaria no sistema de alto-falantes quando fosse a hora de entrar. Já haviam transcorrido mais de 30 minutos de nossa chegada e o horário da consulta também já tinha passado.

Voltei para o meu lugar e meu pai apenas deu de ombros. Continuamos a conversar sobre amenidades: meu neto, a comunidade que pensávamos criar, minha mãe. Alguns minutos mais tarde o alto-falante anunciou: “Pacientes da doutora “P”….

Levantamos imediatamente, mas notamos que ao nosso lado outra pessoa também se ergueu. O som do alto-falante continuou: “Pacientes da doutora “P”…. as consultas estão atrasadas em uma hora”. Percebemos que o senhor que se levantou ao nosso lado também esperava por uma consulta com a mesma médica. Olhou para nós conformado e resolveu ligar para alguém da família avisando o atraso. Finalmente, uma hora e meia após o horário previamente marcado, e a recepcionista nos avisou. “Por favor, dirijam-se ao consultório de número 11 no corredor à esquerda”, diz a secretária. Um pequeno passeio pelo labirinto e fomos levados pelos números nas portas idênticas até o consultório. “Consultório 11 – Office 11”, dizia a placa bilíngue, obviamente preparada para a Copa do Mundo.

Era tudo branco. Uma parede branca, cadeiras brancas. Um computador sobre uma mesa branca e nua. A Dra. “P” nos recebeu amavelmente, com um sorriso e boas-vindas. Nem uma palavra sequer sobre o atraso de uma hora e meia. Lembrei das palavras do meu filho, quando costumava almoçar comigo próximo do meu consultório, na época em que ele estudava no centro da cidade. Saíamos do restaurante, depois de muita conversa, às 14h, o exato horário em que estava marcada a minha primeira consulta da tarde. Na verdade o consultório ficava na mesma quadra do edifício onde eu trabalhava, o que me faria chegar 5 minutos atrasado. Diante dessa minha desculpa, meu filho sempre respondia: “Claro, são os SEUS cinco minutos, e não os do paciente. Eles que esperem, afinal são pacientes, certo?” Ele tinha razão, mas os atrasos em consultórios médicos, excetuando-se a parcela menos expressiva de atrasos justificáveis, são derivados da curiosa tessitura que compõe esse encontro. A espera do paciente – muitas vezes torturante – é a primeira parte da consulta; ela serve para mostrar quem manda naquela relação. O chá de banco é uma instituição que normatiza relações de poder desde que o mundo é mundo – ou desde que os bancos foram inventados. O tempo, a mais importante mercadoria, se mantém sob o controle de quem detém o poder. Ao doente, já desempoderado pela sua fragilidade física ou emocional, só cabe esperar. E ser “paciente”.

A Dra. “P” começou a sua consulta e pediu para que o meu pai esclarecesse o que ocorreu em suas últimas entrevistas. Percebi que ela lembrava muito pouco do caso que estávamos trazendo à sua frente. Olhava para meu pai tentando lembrar detalhes, até que ele mencionou um exame realizado, o que a fez ligar instantaneamente uma lanterna mental que iluminou um espaço obscuro de suas lembranças. Depois disso ela perguntou as reações a algumas medicações e os efeitos previstos no organismo.

Nenhum papel, nenhuma anotação. Não havia uma caneta sobre a mesa. Nada, uma mesa branca, limpa, estéril. Não havia marcas da consulta anterior, nenhuma ficha sobre um canto da sala. Este ambiente era idêntico a um pequeno ambulatório, como aquelas salas de hospital onde se aplicam injeções ou se faz uma nebulização. As paredes, alvas e nuas, não tinham nenhuma marca, nenhum prego. Somente atrás da cadeira da doutora havia uma pintura abstrata, igual a várias outras espalhadas pelo centro clínico. Percebi que estas obras eram feitas em série: o mesmo artista, a mesma técnica. “Ah, você é artista? Pois queremos comprar umas obras suas. Quantas? Umas 100, todas do mesmo modelo, assim, como se diz? Ahhh… abstrato

Não havia livros na sala. Ou revistas. Qualquer informação era obtida pelo computador. Percebi que a história do meu pai estava ali, na tela, mas era apenas a fotografia biológica de um sujeito; nenhuma percepção subjetiva, impressão, ideia ou intuição. Não, apenas cálcio, sódio, ferro, hemogramas, eletrocardiogramas, ureia e fosfatases. A nudez absoluta, a minimalização extremada: uma pessoa reduzida aos seus componentes moleculares. A complexidade infinita de um sujeito condensada em poucos elementos químicos e desenhada nas linhas de traçados sinuosos.

Percebi, com uma espécie de espanto, que aquele consultório não era da Dra. “P”. Aquele era um “consultório genérico”. Uma mesa branca, uma maca branca, paredes brancas e um computador. A Dra. “P” provavelmente chegou ao hospital e perguntou às secretárias qual consultório havia sido designado a ela para as consultas daquele dia, e para lá se dirigiu. Não havia nenhuma marca pessoal: a foto do namorado, ou do marido, uma foto de crianças ou de um lugar que lhe trazia lembranças agradáveis. Não, ela era tão alienígena ali quanto nós.

Fui obrigado a fazer uma comparação mental com o meu consultório. Livros pela sala, que servem de consulta à Matéria Médica e ao Repertório Homeopático. Livros de obstetrícia e manuais do Ministério da Saúde. Quadros nas paredes da recepção. Pedras sobre a mesa, presentes de uma paciente geóloga. Ao lado esquerdo dos pacientes um nu feminino e as fotos de meus filhos misturadas – propositalmente – com crianças fotografadas em Serra Pelada por Sebastião Salgado. Papéis espalhados, fichas de pacientes, calendários de data menstrual, anotações de partos futuros e datas de palestras. Café, muito café. Crachás de palestras que participei, coleção que imitei de Debra Pascali-Bonaro. Música no computador, onde uma foto sorridente do meu neto Oliver aparece em alta definição. E Zeza ao meu lado…

A Dra. “P” explicou pacientemente as medicações e as medidas a serem tomadas. Foi educada e mostrou interesse em todas as informações, mas era possível perceber, mesmo que de forma muito sutil, a impaciência para o término da consulta. Sim, não mais do que 20 minutos já haviam passado, mas o que mais há para se falar sobre moléculas, exames laboratoriais e efeitos colaterais de medicações? Meu pai, ingenuamente, espichava a conversa e tentava falar dele, de suas manias, seus jeitos, suas ideias e suas suposições. Arriscava disgnósticos baseados em suas percepções e na sequência lógica de eventos que experimentava. Criava fantasias sobre suas dores e sofrimentos e a possível conexão destes com seu mundo afetivo e emocional. Nada disso parecia cativar a atenção e muito menos atiçar a curiosidade da jovem doutora; nada a fez aprofundar qualquer dessas questões. Meu pai falava de uma conexão para ela inexistente, mundos separados por séculos, onde os desejos, as paixões e a angústia haviam se divorciado da carne crua, e com ela não mantinham nenhum contato. Mas meu pai não sabia desse divórcio litigioso e continuou a falar sobre sua alma até que eu, gentilmente, lhe toquei o braço, anunciando que era tempo de “liberar” a doutora da nossa presença.

Combinamos uma nova consulta para um par de meses, apenas para acompanhar o andamento das novas medicações. Nos despedimos e caminhamos em sentido inverso no corredor branco que nos levava de volta à recepção, e de lá para os elevadores, as catracas e o mundo. Falei ao meu pai que aquela consulta poderia ter sido feita por telefone, durando não mais do que 15 minutos de simples informações, o que ele concordou. Comentei que naquele ambiente nós não somos relevantes; somos peças de uma engrenagem, da qual o médico é também apenas mais um elemento. Percebi que quem fez a consulta foi o computador, o sistema: os exames, as análises laboratoriais, as pesquisas dos remédios, tudo isso é feito por programas específicos que guardam todas as informações. Ao mesmo tempo em que somos estorvo, o médico se torna, paulatinamente, supérfluo.

Eu havia visitado com meu pai o “Admirável Mundo Novo”, ou as clínicas de eutanásia de “Soylent Green”. O cenário futurista e tecnológico servia para deixar claro que o importante no local é o fluxo ordenado, a segurança e o controle; as consultas são meros acessórios para a fluidez mecânica e programada de todos os elementos do atendimento. A identificação, as catracas, as senhas, a espera tediosa, a consulta meteórica, as salas nuas e despojadas, o tratamento educado, gentil e intencionalmente impessoal, tudo me mostrava que ali não éramos as estrelas. Sim, Cássia, ali nós não fomos “All Star“. Não, os pacientes são pontos escuros em um mapa de circulação humana numa central cibernética. Nada naquele dia me mostrou afeto, proximidade, carinho, cuidado centrado no sujeito, entendimento e visão complementar. Tudo era branco demais, limpo demais, claro demais. Estéril.

Pensei na minha abordagem “narrativa” de pedir a uma paciente – que me procurava por um corrimento ou uma dificuldade em engravidar – que discorresse livremente sobre sua vida e suas paixões; sua história e seus sonhos. Percebi que é provável que muitas clientes pensassem nisso como uma absurda perda de tempo, uma conversa sem sentido e que apenas atrasava a chegada “ao ponto”: a mancha, a dor, a cólica, o prurido, as tripas, as angústias e as feridas. Por outro lado, algumas percebiamm que é exatamente nessa conversa e nessa experiência exonerativa que se instalava a verdadeira conexão terapêutica. Não é no remédio, na droga ou no bisturi: é na palavra, a não ser quando o desequilíbrio avançava a ponto de não ser mais possível recuperar o dano que se instituía no corpo.

Minha mente me fez lembrar, sorrindo, das minhas consultas na Liga Homeopática. Lá, mesmo que não soubessem, os pacientes marcavam uma consulta mas recebiam duas. A minha, consulta médica propriamente dita, e a “consulta” que tinham com a secretária que os atendia na recepção. Esta mulher, dotada de uma rara sabedoria, acalmava, tranquilizava, oferecia alternativas, orientava e preparava os espíritos para a consulta que ocorreria em alguns minutos. Por mais que entendamos os limites destes encontros, é importante reconhecer e reverenciar seus aspectos terapêuticos. Ali, tudo era conexão: os filhos, o emprego do marido, as dores nas pernas, a gastrite e as gripes; nada fugia à necessária conexão com o todo.

Já na rua me despedi de meu pai. Foi um prazer poder acompanhá-lo à consulta, e penso que os filhos deveriam fazer isso sempre. Infelizmente percebi que o mundo contemporâneo não trata os pacientes como as estrelas no cenário da atenção. A tecnologia, com seu canto sedutor, nos faz acreditar que as paredes brancas e assépticas de uma clínica, o avental impecável de uma jovem doutora, o computador cheio de dados e números, possa – por fim – nos desvendar os mistérios últimos que nos constituem. A pobreza das respostas, a falha de cumprir com sua promessa de nos redimir da dor e da morte, nos mostram que pouco ou nada sabemos de profundo sobre os enigmas que nos rondam. Saímos do centro clínico com algumas angústias a mais do que tínhamos ao chegar. Voltei meu olhar para a rua e caminhei em direção ao estacionamento. Pensei mais uma vez em Cássia… e falei com ela em meus pensamentos. Na minha cabeça chegaram palavras, palavras ao vento…

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar

Que o nosso amor pra sempre viva
Minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será

Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras

PS: Voltei a ler esse texto 10 anos após ter sido escrito. Coloquei minhas impressões no papel logo depois da consulta com meu pai. Nesta época, tanto ele quanto minha mãe ainda estavam vivos. Na verdade, ao escrever o texto ocultei detalhes importantes. Não era uma “doutora P”, mas um médico, muito jovem, um neurologista com poucos anos de formado, e a consulta era para a minha mãe (que não tinha condições de estar presente). Esse jovem neurologista era profundamente arrogante, insensível e sem qualquer tipo de empatia. Ele havia atendido a minha mãe durante uma crise terrível que ela passou no hospital Moinhos de Vento e chegou 2 horas após ter sido chamado, e para esse atraso sequer pediu desculpas ou se explicou. Chegou ao hospital vestido como se estivesse em uma festa, e fez questão de deixar claro – por suas atitudes – que a crise neurológica de minha mãe estava atrapalhando sua vida social. A consulta havia sido marcada com ele porque foi automaticamente agendada quando minha mãe recebeu alta.

Não revelei isso no texto original porque era a minha irmã quem controlava os médicos do meu pai e da minha mãe e eu não queria que ela soubesse da minha contrariedade; não desejava ser o responsável por atrapalhar uma transferência que podia existir. Muitos anos depois meu pai me disse que havia detestado a consulta e o médico, mas não quis me dizer para que eu não pensasse mal dele. Fiquei muito impressionado com o péssimo atendimento da chamada “medicina de grupo” (meu pai tinha Unimed) e percebi o quanto este tipo de seguro saúde vale muito mais como divisor de classe social do que um verdadeiro “upgrade” na qualidade do atendimento. Uma sociedade realmente evoluída não divide a atenção à saúde por classes: num mundo ideal, o médico do Ministro atenderia também os faxineiros do Palácio.

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