Um dos aspectos de Geni e o Zepelim – entre os inúmeros outros possíveis, além de infinitas metáforas e leituras – que mais gosto é aquele que aproxima a música de Chico Buarque de “O dia em que a Terra Parou”, filme de 1951, dirigido por Robert Wise, estrelado por Michael Rennie e adaptado de “Farewell to the Master”, de Harry Bates.
Neste filme, realizado logo após a II Guerra Mundial e nos primórdios do império americano, uma nave alienígena chega à Terra trazendo uma ameaça dos líderes de outra parte do universo. Inicialmente Klaatu, o alien (auxiliado por seu escudeiro robótico Gort), tenta dialogar com os cientistas da Terra e, quando deixa claro que deseja se encontrar com os governantes para alertá-los das consequências de seus atos nefastos, passa a ser hostilizado e ameaçado pelos humanos.
Na música de Chico ocorre uma trama semelhante. Um Zepelim prateado desce à terra e seu comandante “cheirando a brilho e a cobre”, se espanta com nossa estupidez e “ao ver tanto horror e iniquidade” resolve tudo explodir. Entretanto, avisa que poderá mudar de ideia se a transexual Geni o satisfizer por uma noite. Tanto o forasteiro do Zepelim quanto Klaatu são portadores de uma ameaça externa, e ambos são tomados de indignação e fúria ao se chocarem com a realidade de um planeta governado pelo egoísmo e corroído pela estrutura perversa da sociedade.
Em ambos os casos a solução vem pelo sacrifício e pelo amor. No caso de Chico, uma Geni que se entrega ao forasteiro temido e poderoso, salvando a Terra ao satisfazê-lo. Já na história de Harry Bates a salvação da civilização também ocorre pelo encontro com a “fissura bizarra na ordem cósmica”, a inesperada tensão sexual que se estabelece entre Klaatu e sua anfitriã, a senhora Helen Benson. Foi esse contato com o desejo que permitiu a Klaatu – mesmo ferido de morte – reconhecer a necessidade de oferecer à Terra uma nova chance.
Sim, eu reconheço que há uma leitura alternativa – e mais explícita – do filme dirigido por Robert Wise. Nesta visão, a película inaugura a “pax americana”. Os alienígenas – nobres, prateados, limpos e justos – seriam os americanos, a polícia do planeta, levando a democracia liberal e o capitalismo para os povos “bárbaros”, da Coreia ao Oriente Médio. Junto com estas regras impostas vem implícito um ultimato: comportem-se ou serão destruídos; ou no mínimo estrangulados, como Cuba, Irã e Venezuela.
Na história de Chico o mundo é salvo e tudo volta a ser “como dantes, no quartel de Abrantes”. Geni volta a ocupar o lugar social da puta desprezível e os preconceitos seguem inalterados. O sol volta a brilhar e a gratidão pela renúncia de Geni é rapidamente esquecida. Um final muito mais triste do que a ficção científica de “O dia em que a Terra Parou”.
A música de Chico agora vai se transformar em filme e desde já me pergunto: haverá um Zepelim? Prateado mesmo? Geni será uma atriz trans? O final será melancólico como na música?
Faço parte de um grupo no Facebook que se reuniu para conversar sobre séries antigas de TV. As informações, fotos de bastidores, imagens originais, história dos atores, cenários são sempre muito interessantes e nos fazem viajar um pouco para nossa época de infância e entrada na adolescência. É sempre bom reviver o passado compartilhando com as pessoas da nossa geração as emoções que tivemos com a nascente TV no Brasil
É evidente que um resultado natural seria o “saudosismo” que, ao contrário da saudade – que nos lembra de momentos felizes do passado – produz uma exaltação acrítica e fantasiosa dos acontecimentos, como uma fábula onde escondemos os aspectos ruins e colocamos um holofote irreal sobre aqueles fatos e contextos que gostamos. Em verdade, as lembranças da infância trazem sempre essa marca de irrealidade: somos programados para esquecer as coisas ruins e ressaltar as boas, e só por isso continuamos a crer que a “infância é a fase mais linda da vida”. Nada poderia estar mais longe da verdade.
A ideia que mais aparece nos debates é de que nos anos 60 e 70 a TV não tinha a crueldade, a malícia e a “pornografia” de hoje. Tudo era muito mais puro, e as famílias podiam assistir os programas sem temor de constrangimentos. Não havia drogas, adultérios, sexo desvairado, promiscuidade e muito menos a atual “campanha contra a família e os costumes”.
Família Robinson e Dr. Zachary Smith
Por certo que a TV era mais comedida nesses temas (vivemos boa parte da infância sob uma ditadura militar), mas a verdadeira pornografia se fazia presente de forma insidiosa e dissimulada: ela vinha através da padronização da mentalidade ocidental. Era a época de consolidação da hegemonia do Império Americano. Para alcançar essa hegemonia estética Hollywood foi uma das mais importantes ferramentas. As séries que eu mais gostava na infância eram do genial produtor Irwin Allen. Foi dele a ideia desses três grandes sucessos: “Perdidos no Espaço“, “Viagem ao Fundo do Mar” e “Terra de Gigantes“. A primeira versava sobre a conquista do espaço, que estava no seu auge com a disputa entre americanos e soviéticos. A segunda tratava dos mistérios do mar e o último sobre o encontro de navegantes perdidos com uma civilização de alienígenas gigantes.
Almirante Nelson e Capitão Crane
Minha perspectiva é que o fio de conexão entre elas é o imperialismo americano que, se não nasceu no pós guerra, teve ali seu grande impulso por ser a América o único parque industrial intocado – toda a Europa e a Ásia se encontravam destruídas – e ainda aquecido pelo esforço de guerra. Todas estas séries descrevem o encontro da civilização cristã, branca e ocidental com o estranho, o diferente, o alienígena. Assim como o expansionismo americano através do Império, esse encontro sempre gerava conflito e disputa, mas sempre terminava com a vitória moral do Ocidente, seja pela família Robinson e a Júpiter II num planeta inóspito e desértico, com o submarino SeaView e sua tripulação corajosa ou com o grupo de americanos perdidos em um planeta distante cercados por gigantes ameaçadores.
Equipe completa de Terra de Gigantes
A mensagem onipresente era sempre a da conversão. Como jesuítas modernos, eles levavam a palavra do capitalismo e do Império para outros planetas e civilizações, assim como também para as profundezas do mar, com suas criaturas exóticas e indômitas. A moral que emergia dessas histórias era a da resistência aos ataques de fora na tarefa de entregar a “boa nova”, o evangelho capitalista e, a superioridade moral do ocidente aos “selvagens”.
Todas essas séries podem ser ligadas ao grande filme de ficção científica dos anos 50: “O dia em que a Terra parou” (1951). Nesse filme os alienígenas é que assumem a postura imperialista, ameaçando os homens do nosso planeta. Em sua palavras afirmam que, caso não se comportem, serão destruídos. Por esta razão, o alienígena Klaatu é mostrado como um homem branco, ocidental, justo, sábio e nobre, enquanto os terráqueos são mostrados como indiferentes, egoístas e brutos. Nada descreveria melhor o imperialismo americano e sua busca de hegemonia através da aceitação pacífica por parte dos conquistados dos valores cristãos ocidentais, em lugares tão díspares quanto Japão, a Alemanha derrotada, Brasil, Oriente Médio e Coreia.
O discurso final de Klaatu, para uma plateia de terráqueos impassíveis, é uma pérola do discurso Imperialista, a “Pax Americana”. Lá estão o viajante interplanetário prateado, a plateia de boca aberta escutando sua sabedoria e até o cientista que imita descaradamente a figura de Albert Einstein. Sua palavras foram:
“O resultado é que nós vivemos em paz, sem armas ou exércitos, seguros por saber que nós somos livres de agressão e guerra, livres para buscar mais negócios lucrativos. Não pensamos ter atingido a perfeição, mas nós temos um sistema, e ele funciona.
Eu vim aqui para lhe dar esses fatos. Não é de nossa conta como vocês dirigem seu planeta, entretanto, caso vocês ameacem estender sua violência, essa sua Terra será reduzida a cinzas.
Sua escolha é simples. Junte-se a nós e vivam em paz, ou persistam no seu caminho atual e irão encontrar sua total aniquilação. Estamos esperando sua resposta. A decisão está em suas mãos.” (os grifos são meus)
Nada poderia ser mais ameaçador e mais terrível do que um alienígena com poder inimaginável dizendo o que podemos ou não fazer, e isso com a nobre desculpa de estarmos “protegendo o universo da ameaça que vocês representam”. E nada descreve melhor o imperialismo americano em todo o planeta do que a ameaça do belo, magro e branco alien, cheio de belas palavras e propósitos.
Não faço críticas anacrônicas destas obras. Elas eram espetaculares e divertidas para a época em que nós as assistimos. Creio apenas que é possível lembrar com saudade dos Shows de TV de outrora sem desconsiderar os seus sentidos mais profundos e sua impregnação cultural, usada como veículo de uma mensagem mais profunda. É absolutamente compatível uma leitura mais superficial que exalta a aventura, a tensão, o suspense e a “vitória do bem” e ao mesmo tempo reconhecer o ideário imperialista que pode ser visto como um subtexto que permeia todas estas produções dos anos 60 em diante.
Assisti esse filme na adolescência e ele ficou marcado na minha memória. Nunca esqueci o robô Gort e sua mensagem imperialista em um filme lançado logo depois do final da II guerra mundial, anunciando como seria a política externa americana. Spoiler: os americanos, no filme, não são eles próprios, mas os alienígenas trazendo uma “stela pace”, uma paz estelar através do imperialismo e do colonialismo cultural.
Quando adolescente li escrito no muro de um terreno baldio perto do Hospital de Clínicas a frase “Klaatu Barata Nikto” e fiquei emocionado ao ver que mais alguém se lembrava desse filme. Tive vontade de conhecer o cara que fez a pixação para trocar umas ideias.
Pois… só muitos anos depois foi possível rever o filme. Não existia possibilidade de assistir um filme do passado a não ser torcendo para cair na programação da madrugada. Hoje a internet nos oferece essa oportunidade num piscar de dedos, e isso é um milagre.
Hoje resolvi assistir de novo “The Day the Earth Stone Still” (o original, claro) com Michael Rennie, porque estamos numa situação semelhante. A Terra, efetivamente “parou” e precisamos rever nossos passos até aqui. É necessário repensar os modelos econômicos e criar novas vias fora do capitalismo. Esse modelo chegou ao seu esgotamento, e uma nova era está nos pródromos aguardando ser parida.
SPOILER ALERT: uma curiosidade do filme. No livro que baseia o filme, quando Klaatu baleado e é carregado para a nave um dos terráqueos presentes se dirige ao robô Gort e diz: “Desculpe-nos por termos matado seu amo”, ao que o robô responde “Creio que vocês estão enganados ou não entenderam; o amo sou eu”. Essa parte GENIAL do livro foi suprimida e não aparece na versão do cinema.