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A Realidade da Educação: Entre a Severidade e a Permissividade

“Eu achava que meus pais eram muito rígidos, mas vendo essa geração de hoje eu acho que eles me salvaram”.

Uma afirmação no mínimo arriscada. Se a “rigidez” se refere a firmeza de princípios, então estamos juntos. Caso ela esteja lançando uma tese saudosista sobre os castigos e o uso dos “corretivos”, que eram comuns na minha época, então estamos bem distantes. Talvez os pais de ontem – que agora são bisavós – pensem desta forma, exaltando a educação dura que receberam, mas eu creio que esta postura serve como uma excelente desculpa para espancamentos, surras e demonstrações de violência que ocorriam em tempos passados. Tipo “Sim, bati nos meus filhos e dei a eles castigos degradantes e humilhantes, mas os salvei do destino terrível da permissividade”. Fácil, não?

Não há dúvida que existe um clima de “laisser faire” na educação, e uma crença de que os filhos são máquinas de desejo a quem não convém frustrar. Por certo que existe um enfraquecimento da figura paterna, tanto pela ausência física dos pais em função da fragilidade dos casamentos, quanto por uma cobrança crescente e intensa sobre a severidade e a brutalidade dos métodos de educação aplicados pelos pais do passado. Entretanto, o questionamento sobre os métodos “frouxos” de educação doméstica não pode permitir a crença de que o modelo de surras e castigos seja justo ou adequado. Se existem crianças “sem limites” e abusivas também é verdade que os traumas causados pelas práticas violentas de outrora não podem ser negligenciados. Temos uma legião de homens e mulheres velhos cuja infância foi marcada pela violência doméstica, socialmente validada, mas que causa neles sintomas tanto visíveis quanto silenciosos até hoje.

Não devemos cair na sedução fácil de um falso dilema. “Ahh, no meu tempo é que era bom!!”, normalmente é uma frase dita por alguém que não entendeu como foi terrível a criação das crianças no passado. “Apanhei, mas sobrevivi”, o que é verdade, mas a que preço? O que dizer dos medos, das angústias, da falta de confiança e das mágoas que até agora lhe atormentam? Portanto, é razoável imaginar que ambos os modelos são ruins, e que não é necessário escolher entre duas perspectivas – violência ou permissividade – como se fossem as únicas alternativas possíveis. Não; é possível educar os filhos com firmeza e autoridade sem cair na tentação fácil da violência física e moral que oferece respostas imediatas, mas que deixa marcas indeléveis na alma das crianças.

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Imperfeições

Se a sua parceira não tivesse os defeitos que tanto lhe incomodam, ainda assim lhe escolheria para partilhar a vida? Sem as imperfeições que ela carrega, ainda assim você seria útil ou atraente para ela?

Talvez você não fosse mais interessante para ela, nem necessário. Não é justo abandonar essa perspectiva. Se ela não fosse gordinha, estaria com você? Se ela não fosse pobre, ainda assim se encantaria pela sua “personalidade”? Se ela não fosse insegura, continuaria ao seu lado? Se ela não fosse desequilibrada, ainda sim estaria consigo? Sem sua extremada carência, ainda assim lhe olharia com ternura e carinho?

Agora mude os gêneros acima e pergunte: se você não fosse gordo, feio, pobre, inseguro, frágil, angustiado, dependente ainda assim estaria com sua atual companheira(o)? Pense nisso. Quem seria você se não tivesse as amarras que o prendem ao mundo da contenção? Não há como saber sem passar pela prova, mas existem vários exemplos para nos mostrar o que nos tornamos quando perdemos alguns desses “defeitos”. Pensem no jogador de futebol que aos 24 anos faz seu grande contrato e fica milionário – literalmente da noite para o dia. Olhe a cantora sertaneja que “estoura” nas paradas de sucesso e passa a contar seus milhões. Olhe para o pobre funcionário que ganha na loteria. Depois desses eventos, como ficaram suas vidas? Como ficaram seus valores e suas exigências?

Como nos ensinava Marx, temos os valores da classe em que estamos, não daquela de onde viemos. Somos produto do entorno, do campo simbólico que nos rodeia, e somos uma chama de vida nutrida pelo desejo. Somente podem criticar aqueles que abusam do poder os que, tendo visitado o reino da opulência, colocaram cera nos ouvidos para não escutar suas sereias. Todos os outros se iludem com seus reais valores e limites, que muito mais refletem o quanto podemos do que o valor que realmente temos.

Pensem nisso…

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Memórias do Homem de Vidro – 11

Fátima e o Protagonismo Devolvido

Fátima veio à consulta carregando uma sacola de exames e trazia estampado no rosto um olhar de resignação. Grávida de 37 semanas, procurou-me porque sua obstetra estava de férias, e a substituta que esta havia indicado não lhe agradou. Vinha, portanto, à procura de um terceiro médico naquela gestação, o que tornava a consulta um pouco diferente das demais. Quando entrou no consultório, eu me impressionei com o seu ventre. Era real­mente muito grande, mesmo para uma mulher alta e corpulenta. Veio com a fa­mosa pilha de ecografias, é óbvio, sendo que a última prenunciava um feto com 4,5 quilos. Diante disso, tanto sua médica quanto a substituta foram taxativas: “É cesariana, porque não vai passar”. Para complicar a situação, essa paciente tinha uma cesariana prévia, com um bebê 8 meses por pré-eclampsia e que, mesmo sendo prematuro, pesou 4,3 quilos. Tinha uma leve alteração da glicemia no último exame realizado há uma semana. Macrossomia, cesárea prévia, diabete gestacional leve. Precisa mais? Ela me disse que queria deixar marcada a cirurgia, “já que precisava ser cesariana”.

Foi então que eu perguntei a ela:

— O que você gostaria que fosse?

*   *   *

“A lógica dos encontros médicos necessita de uma reversão”, dizia Maximilian. Durante anos da minha prática diária de consultório, sofri com a postura de algu­mas de minhas clientes diante do desafio do encontro médico-paciente. Por muito tempo, o padrão era este: elas se aproximavam, me avaliavam com os olhos e perguntavam: “Como é sua conduta quando atende um parto?”. A partir dessa pergunta, eu explicava os pontos importantes da humanização do nascimento, como a posição verticalizada, a presença de um acompanhante de livre escolha, a utilização restrita e judiciosa de intervenções, a valorização do parto vaginal, etc. Entretanto, a pergunta, e minha subsequente resposta, a partir de uma determi­nada época, passaram a me deixar insatisfeito e inquieto. Alguma coisa parecia fora de lugar, produzindo uma espécie de irritação, um incômodo, uma inconformi­dade.

Acho que foi durante uma entrevista para a televisão que eu tive a clareza, pela primeira vez, sobre a questão do protagonismo na assistência ao parto. A produ­tora de uma emissora local me telefonou, convidando para uma entrevista sobre “parto de cócoras”. No dia combinado, lá fui eu engravatado para a TV. A entre­vistadora, uma conhecida e simpática jornalista, me cumprimentou e disse que as perguntas seriam sobre esse tipo especial de partos, e que a matéria tinha sido escolhida por ser 19 de abril, Dia do Índio. Sorri da ideia, aparentemente precon­ceituosa, de que “parto de cócoras é coisa de índio”, quando na verdade a imensa maioria das sociedades primitivas adotou instintivamente essa postura para parir, inclusive os índios brasileiros. Longe de ser uma particularidade indígena, é uma característica de quase todos os grupamentos humanos. Abriu o programa me apresentando e fazendo a chamada de uma “nova velha técnica de trazer os be­bês ao mundo”. Pediu os comerciais e, quando o programa retornou, voltou-se para mim e perguntou:

— Então, doutor, como é essa história de fazer partos de cócoras? Desde quando o senhor faz partos assim?

Quando eu estava me preparando para responder, acendeu uma luz. Acho que talvez tenha tido mais luminosidade que os spots do estúdio, mas apenas eu per­cebi. Hoje em dia eu creio que isso poderia ser definido como insight. É provável que sim.Uma confluência de emoções, sentimentos, pensamentos, antigas análises, lem­branças, tudo entrando em sincronia e produzindo uma espécie de erupção. Fiquei por alguns instantes olhando para a bela apresentadora, até que respondi:

— Eu não faço partos de cócoras — respondi eu. — Minhas pacientes é que ficam nessa posição, quando lhes convém. Na verdade, eu não deveria fazer nada, eu só…

A entrevistadora me olhou com indisfarçável contrariedade. Achou que eu estava criticando a sua pergunta ou querendo ser engraçadinho. Não era isso. Eu não estava achando graça nenhuma; estava, na verdade, em meio a um redemoinho de pensamentos e dúvidas sobre o que realmente eu fazia, ou o que deveria fazer.

— O senhor utiliza uma técnica que é o parto de cócoras, certo? Pois essa téc­nica, usada pelos índios, agora está sendo redescoberta, é isso? — A expressão da jornalista era de franca impaciência.

A ideia prevalente era a de que, ao contrário de uma técnica de partos horizontais, eu estava utilizando outra técnica sobre as minhas pacientes. Uma técnica alter­nativa. Um método de fazer partos. Novo e velho. As palavras de Maximilian apareceram à minha frente e atingiram em cheio o plexo solar. Senti o soco potente de uma verdade há tempos escondida, e que agora podia se manifestar. Por alguns instantes, fiquei olhando a jornalista sem saber o que dizer. “Humanização do nascimento, meu caro Ric, é a devolução do protagonismo à mulher. O resto é apenas sofisticação de tutela.” As palavras fa­ziam eco na minha cabeça, e eu não conseguia falar. Não queria parecer evasivo, mas naquele instante eu não poderia responder o que ela estava a me perguntar, porque a pergunta já não fazia mais sentido. Percebi naquele fragmento de ins­tante a razão da extrema irritação de Leboyer quando lhe questionavam sobre o “método Leboyer”. Ele odiava essa forma de encarar seu trabalho, e sempre res­pondia com clara impaciência a essa pergunta, dizendo que nunca quis criar mé­todo algum. Naquele momento, eu estava me dando conta de que, se você criar uma “técnica de partos de cócoras” estará em verdade mantendo o cerne da questão intocado, mas nutrindo-se da ilusão de que algo diferente está sendo feito.

Ou você entrega o poder de parir às mulheres, ou apenas estará sofisticando seu controle sobre elas, sua dignidade, sua autonomia e sua feminilidade. Fazer “par­tos de cócoras”, como a jornalista me perguntava, me aliava à grande massa da obstetrícia contemporânea que julga as mulheres incompetentes e incapazes de escolher a postura que mais lhes agrada. Determinar para elas uma posição de parir mais fisiológica e racional, como o são as posições verticalizadas, pode pa­recer interessante do ponto de vista dos resultados observados, mas continua sendo uma imposição ditatorial sobre um fenômeno natural e feminino. Estava tornando meu jugo sobre as pacientes menos agressivo e mais suave, mas conti­nuava sem lhes oferecer o protagonismo. Eu estava, enfim, “sofisticando a tutela”.

Naquele instante, percebi que a maior batalha ainda estava por ser travada. Era preciso entregar de volta às mulheres o controle dos nascimentos, e ao mesmo tempo encontrar uma função digna para um obstetra, que não passasse pela ex­propriação do nascer em nome de uma tutela anacrônica. Por outro lado, eu intuía que não seria fácil essa mudança no cenário do nascimento, dominado pela visão tecnocrática há três séculos e meio. Peça a um homem que recuse qualquer acréscimo na sua vida e terá sucesso, mesmo que com dor e privação, mas retire alguns de seus antigos privilégios e você terá luta. Olhei para a bela entrevistadora mais uma vez, e depois de um suspiro respondi:

— Uma mulher pode encontrar por si mesma a posição que mais lhe parece ade­quada para ter seu filho. Minha função é apenas ajudá-la a encontrar essa pos­tura, criando as condições psicológicas e ambientais para isso. A posição de cóco­ras é uma das mais escolhidas pelas gestantes, porque permite uma ampla aber­tura das conjugatas, que são as distâncias entre os ossos da pelve. Além disso, a posição vertical, ao contrário da posição horizontal, não comprime os vasos ma­ternos do abdômen, nem interrompe o retorno venoso criado por essa compres­são. A força da gravidade e a facilidade de fazer prensa abdominal são excelentes fatores coadjuvantes. Mas nada disso pode ser imposto a essa grávida. Ela deve estar no comando, escolhendo por si o melhor caminho.

Respirei fundo mais uma vez, e, depois de um sorriso de alívio, terminei:

Sem garqantia de protagonismo, não existe humanização do nascimento. Sem que as pacientes possam livremente escolher a posição para parir, seu acompa­nhante, o local, suas roupas, suas tradições e suas inúmeras vontades, apenas estaremos reproduzindo uma história de abusos e interferências desnecessárias, que não tem mais cabimento em um mundo que se propõe democrático e igualitá­rio.

Não recordo de mais nada do que disse na entrevista, mas a bela jornalista parece não ter gostado de minhas respostas. A partir daquele dia, eu não mais falei sobre “partos de cócoras”, porque a questão da autonomia feminina passou a ser o foco de minha atenção. Em algum lugar, Max sorria e brindava, levando ao alto um espumante copo de cerveja.

*   *   *

Voltei a olhar para Fátima, que parecia um pouco aturdida com a minha pergunta. Ela certamente não esperava pela minha reação. Joguei a “batata-quente” de volta, e ela sentiu o calor nas mãos. Depois de alguns instantes me olhando atur­dida, respondeu:

— Ora, doutor, eu preferiria parto normal, que a gente pode ir para casa mais rá­pido. Tenho uma filha de nove anos que precisa da minha ajuda. Sei que uma ce­sariana é uma cirurgia, e que a recuperação é muito mais lenta.

As pesquisas realizadas no Brasil pelo Dr. Joe Potter e pela professora de antro­pologia da Universidade do Texas, Kristine Hopkins, assim como uma recente­mente publicada pela FIOCRUZ, apontam para uma realidade muitas vezes dissi­mulada: mulheres preferem majoritariamente realizar partos normais. Elas sabem das vantagens de um nascimento natural, tanto para elas quanto para os bebês. A perversidade das cesarianas desmedidas não pode mais ser contabilizada como uma culpa dessas mulheres, porque a inversão do desejo de um parto vaginal ocorre quando elas adentram os centros obstétricos. Fátima tinha conhecimento da qualidade superior do parto normal, mas só agora estava podendo expressar.

— Fátima, o destino do seu parto depende mais de você do que de qualquer outro fator externo — disse eu. — Se você deseja ter seu filho de parto normal, esse é um direito seu, que ninguém pode lhe retirar. O que mais conta nessas situações é o desejo, a vontade e a confiança que você deposita em si mesma. Acho que seu caso inspira cuidado e atenção redobrados, mas penso também que temos uma esperança, e é agarrado nela que eu acho que devemos nos manter. Ela sorriu e respondeu:

— Mas doutor, eu quero ter meu filho de parto normal. Mas meus médicos disse­ram que era impossível por causa da cesariana anterior, da diabete, do tamanho do bebê, e…

— Posso entender a preocupação dos seus médicos Fátima, pois, como eu mesmo disse, seu caso tem muitas complicações. Porém, nenhuma delas é cla­ramente impeditiva para um nascimento normal e com menos riscos. Nada, nem ninguém, é mais forte que a sua força de vontade e seu desejo. Se você deseja ter seu filho de parto normal, temos a obrigação de tentar, mesmo sabendo que será um desafio difícil.

Ela sorriu e combinou de voltar com o marido. Consultou novamente alguns dias depois, logo que começou a apresentar algu­mas contrações. Ao exame de toque, ela tinha um bebê muito alto na pelve e a dilatação de uma polpa digital. As contrações uterinas eram ainda esporádicas e fracas. Pedi que me ligasse se viessem a ocorrer com maior intensidade.

No mesmo dia, ela me ligou dizendo que estava com contrações mais fortes e pedi-lhe que retornasse ao meu consultório para uma nova avaliação. O cenário havia se modificado. Agora já se havia instalado a fase ativa do trabalho de parto, e ela tinha de três a quatro dedos de dilatação. Apesar disso, o bebê continuava alto. Pensei comigo: Será que desce? Será que não está apenas dilatando pra depois trancar no estreito médio? Esses meus pensamentos se exteriorizaram com um sorriso benevolente. Pura encenação, confesso. Mas era para uma causa nobre: insuflar confiança nas suas capacidades; apostar na sua força e competên­cia para ter seu filho. Eu estava apostando minhas fichas nela, “pagando para ver”.

Pedi que retornasse para casa e aguardasse mais algumas horas antes de ir para o centro obstétrico. Os hospitais sempre produzem um efeito complicador sobre o desenrolar do trabalho de parto e, portanto, quanto mais longe as pacientes de baixo risco puderem ficar dele durante o período inicial de pródromos, melhor. Um centro obstétrico, por melhor que seja, sempre produz nas mulheres um estado ansiogênico de percepção do meio circundante. Na nossa história adaptativa como espécie, o local de nascimento sempre teve como signo fundamental a se­gurança. Para todos os mamíferos superiores, e mesmo para os primatas, preva­lece a atitude de procurar abrigo seguro quando as contrações se iniciam. A multi­plicidade de ameaças e a natural fragilidade com que uma grávida se encontra fazem com que esse local seja escolhido para oferecer o máximo de proteção, tanto à mãe quanto à cria. Além disso, a presença de um suporte técnico e afetivo foi uma marca de nossa ancestralidade, talvez se iniciando com os primeiros exemplares do gênero homo há dois milhões de anos. Aí se inseria a função da parteira, tão antiga que se perde nas brumas do tempo.

A ida de Fátima para casa, longe do estresse propiciado pela hospitalização, tinha esta função: aguardar a dilatação no seu domínio. O hospital, por ser “um local estranho, onde estranhas pessoas operam estranhas máquinas”, no dizer de Marsden Wagner, cria um cenário de temor e apreensão, que facilmente coloca a gestante no temido, mas pouco compreendido, círculo vicioso de medo-tensão-dor. Manter a paciente em casa tem essa grande vantagem: conservá-la em um lugar da sua confiança e, portanto, de segurança. Algumas horas mais tarde, ela me ligou (na verdade o marido, dizendo que Fátima estava “quase desmaiando”) e eu solicitei que se dirigissem ao hospital. Por morar em uma cidade vizinha, além do tamanho fetal presumido e da cesariana prévia, nem se cogitou em realizar um parto domiciliar. Fátima não se conformaria a ne­nhum protocolo estabelecido e, portanto, essa possibilidade jamais foi aventada nas conversas prévias. Chegando ao hospital, às 14 horas, fiz uma avaliação da situação e percebi que ela já se encontrava com seis centímetros de dilatação, mas com uma apresentação ainda muito alta.

— Vamos caminhar, mulher — disse eu com uma risada. — Precisamos fazer este bebê descer. E, para isso, nada como um bom passeio.

Nos velhos tempos da residência, eu aprendi, com Maximilian, a importância da deambulação das parturientes. Ele tinha a mania de tirá-las para dançar, e não sei se pelo riso que isso provocava, ou pela dança mesmo, o resultado era um incre­mento da contratilidade uterina. Muitos anos depois, escutando as palavras da parteira americana Ina May Gaskin, pude confirmar a ideia de que o riso tem uma poderosa capacidade terapêutica durante o parto. “Faça a paciente rir, dar garga­lhadas, e você terá resultados incríveis”, dizia-me ela. As posições verticalizadas auxiliam na descida da apresentação fetal pela ação da gravidade sobre o feto, porém mais importante talvez seja a mobilidade incrementada do quadril, que fa­vorece a adequação da apresentação ao estreito canal que o bebê terá que atra­vessar. A bipedalidade, e depois o aumento craniano, determinaram que esse feto tivesse que realizar um caminho tortuoso dentro da pelve, para poder ultrapassar as barreiras ósseas do percurso. A entrada do canal é mais larga no sentido lá­tero-lateral, enquanto a saída é mais larga no sentido ântero-posterior. Com isso, nosso pequeno herói precisa cumprir um sinuoso trajeto dentro da pelve e postar-se com a nuca encostada no osso púbico da mãe, ao contrário dos grandes ma­cacos pongídeos, nos quais esse movimento não ocorre e seus partos são em geral mais rápidos e fáceis.

A deambulação e a mobilização constantes são de extremo auxílio para essa situ­ação. Mais uma razão para que as mulheres de baixo risco não sejam monitoriza­das eletronicamente durante o trabalho de parto, porque assim, atadas ao monitor, têm sua mobilidade extremamente prejudicada. Zeza me acompanhava no hospital, e lá se foram as duas caminhando pelos cor­redores do centro obstétrico. Às quatro horas da tarde, Fátima já estava com oito centímetros de dilatação, au­mentando para nove centímetros duas horas mais tarde. A dilatação já estava concluída às oito e meia da noite, mas o bebê continuava alto. O que fazer? Seria um bebê grande demais? Seria uma impossibilidade clara e incontornável? Ou uma tentativa inútil e frustrante? Como ter certeza? Valeria a pena tentar, correndo o risco de não conseguir e ter que apelar para uma cesari­ana?

O físico Niels Bohr já dizia que “certezas são fruto de nossa presunção, e nada tem a ver com ciência”. Aristóteles, por sua vez, falava aos seus discípulos que, “quanto maior a capacidade e o saber de um homem, maiores as suas dúvidas. As certezas foram dadas pelo criador aos medíocres, como um prêmio de consola­ção”. Minha angústia por não ter certezas sobre o melhor a fazer era, pelo menos, premiada com excelente companhia. Entretanto, as falsas certezas são caracte­rísticas do modelo médico contemporâneo, em que a encenação e o discurso au­toritário são mais constantes do que a conversa franca e o embasamento das condutas na solidez das evidências científicas. Depois de um tempo saí da sala para tomar um café. Minha saída fora mais pelo desafogo das tensões do que pela cafeína. Pouco depois, Zeza me chamou ao quarto novamente e disse que Fátima precisava conversar comigo, pois tinha algo muito importante para dizer. Adentrei a sala e a encontrei acomodada de costas para a porta. Ela parecia can­sada e abatida. Sentada na beira da cama, apoiava as mãos sobre os joelhos, como se fosse uma asmática. Levantou a cabeça e me falou, com um ar contrari­ado:

— Doutor, não estou gostando nada disso. Eu devia ter escolhido aquela outra médica. Ela já teria me livrado desse suplício. Por que esperar tanto? O senhor não me diz a que horas vai nascer, e eu continuo aqui com minhas dores. Por que isso tudo? Por que não inventaram uma forma mais humana para se ter filhos?

Uma forma mais “humana” de ter filhos? O que pode haver de mais visceralmente humano do que ter filhos de forma natural?,pensei, enquanto encarava Fátima e tentava entender suas dúvidas.

Desde muito cedo, ainda na faculdade de medicina, eu me preocupei com a questão do “sentido oculto das palavras”. Muitas vezes, conversei com Nadine e Max a respeito de algo que eu chamava de “patologia da palavra” e que Max cos­tumava chamar de verbose, que é a potencialidade mórbida do que é dito, fre­quentemente usada pelos profissionais de saúde. Antes das atitudes inadequadas, das condutas equivocadas ou dos procedimentos errôneos, muitas das falhas no sistema médico iniciam-se com o uso errôneo de palavras, expressões e gestos. Durante um congresso no México, tive a oportunidade de falar sobre a palavra dita e seus significados com Debra Pascali-Bonaro, que é uma das mais importantes doulas americanas. Nessa ocasião, ela me falou algo muito interessante a respeito de safeword, ou seja, os códigos de comunicação entre a equipe de assistência e a grávida em trabalho de parto. Essa animada conversa me remeteu a uma outra, que tive com Max alguns anos antes.

*   *   *

Uma vez Maximilian me trouxe um artigo escrito pela psicóloga Eliana Calligaris a respeito de um congresso de sadomasoquismo que ela tomou conhecimento nos Estados Unidos. Claro que Max achava a maior graça o pessoal da “Leather Community” se organizar em congressos. Ficava fazendo piadinha o tempo todo, imaginando os cartazes pregados nas portas: “Antes de entrar no auditório, pen­dure seu chicote aqui”. Ou então o cara que ia fazer uma palestra sobre maso­quismo e não conseguia segurar o microfone por causa das algemas. O que ele achou interessante no artigo escrito pela Eliana, foi o conceito de “palavra-chave”. Sua intenção era me chamar à aten­ção para um detalhe no artigo que falava sobre a forma específica de lidar com as demandas durante um processo de alteração consciencial. Entregou-me o artigo com um misto de surpresa e entusiasmo, e me disse que aquilo um dia poderia ser utilizado em trabalho de parto.

— Max, só você mesmo para discutir similaridades entre sadomasoquismo e parto. O que tem a ver uma coisa com a outra? — dizia eu.

Max dava uma risadinha e dizia:

— As coisas estão entrelaçadas no universo. Só existe verdade em um aspecto da vida se pudermos formar analogias em escalas superiores. Leia o artigo e depois comentamos.

Comecei a imaginar o que Max queria dizer, tentando estabelecer as analogias possíveis entre esses mundos aparentemente tão díspares. A leitura do artigo foi uma estimulante surpresa. Facilmente pude perceber o que Max estava me propondo. O ponto de contato entre as práticas sexuais e o traba­lho de parto estava no “princípio do prazer”, que havia muitos anos eu lera no livro A Good Birth, a Safe Birth, de Roberta Scaer e Diana Korte, e que depois foi dis­secado no livro de Michel Odent, A Cientificação do Amor. A chave está em que, nas duas situações, na excitação do jogo sadomasoquista e no “tesão” do trabalho de parto, os envolvidos estão em estados alterados de consciência. Era essa a ligação que Max me apontava. As práticas na “comunidade do couro” são simbolicamente sexuais e reportam o indivíduo à dubiedade de um mundo sexual primitivo, em que a submissão e o comportamento autoritário fazem os papéis principais em um envolvimento de de­sejo. A questão toda, para a articulista, era onde terminava o ilimitado mundo fan­tasioso dos participantes e onde se iniciava o mundo da realidade carnal. Nesse fino liame se estabeleciam os riscos. Max continuava a me descrever cenas engraçadas do encontro, e eu tentava ter­minar o artigo para compreender as possíveis interfaces que ele apontara.

— Se era para me incomodar, para que me emprestou o artigo? Dá licença de eu me concentrar?

Finalmente chego na parte do artigo em que Eliana fala da palestra de um “mes­tre” sádico em que ele explica as vantagens do safeword, que poderia ser tradu­zida por “senha”. Pois ele se dizia extremamente preocupado com casos aconte­cidos havia alguns anos em que, durante práticas sadomasoquistas, ocorreram violências, traumatismos com certa gravidade e, com uma frequência inaceitável, alguns casos de morte. A história, segundo o mestre, era sempre contada da mesma forma. A prática se­xual entre a dupla (às vezes eram mais pessoas) fazia com que estas entrassem em um tipo de transe sexual (acrescido ou não de drogas e álcool), em que o que menos importa é o intercurso sexual. Seria levar as “preliminares” às suas últimas consequências. No meio desse transe, você faz uma prática qualquer, por exem­plo, dar tapas, bater no rosto, dar com chicotes ou sufocar com as mãos. Faz parte do ritual que o masoquista reclame, que chore, que grite, que diga “não”. Entretanto, o perigo residia em que a mesma palavra usada no jogo seria a pala­vra a ser utilizada no retorno ao mundo real, criando-se uma confusão na intersec­ção dos planos (fantasia – realidade). Esta palavra de três letras — NÃO — (com as suas óbvias variações “não quero”, “pare”, “chega”, etc.) perdeu a validade nos jogos sadomasoquistas, por ser demasiadamente abusada como peça do discurso de quem “sofre” a brincadeira.

Diante dos perigos de se avaliar as reais necessidades de alguém envolvido em uma alteração de consciência, faz-se necessário estabelecer regras para o per­feito entendimento do que se quer. O que o palestrante pretendia era a criação e a adoção de palavras que substituíssem de forma inquestionável as manifestações que pudessem significar algo além do pronunciado. Aqui, então, se encaixa a analogia de Max. Que valor possui, no contexto do tra­balho de parto, a frase Eu quero uma cesariana agora!?

Em muitas vezes em que ela é dita, existe uma alteração do estado de consciên­cia e, portanto, as palavras não possuem o seu verdadeiro valor. Essa compreen­são do valor relativo das expressões é fundamental para não cairmos na armadi­lha de fazer uma cesariana no primeiro pedido, que nada mais é do que uma soli­citação de atenção com suas dores, uma necessidade de carinho, esperança e reasseguramento. Assim sendo, essa expressão, e esse pedido, precisam ser entendidos de forma abrangente. Os participantes da “Comunidade do Couro” encontram na negativa, o “não” repe­tido e chorado, um estímulo para as suas brincadeiras, porque a graça está em oprimir e obrigar o parceiro a um estado de escravidão.

Mas como saber se a coisa é séria? Aí se encaixa o conceito de senha. O “Mes­tre” falava da importância das senhas previamente estabelecidas nas brincadeiras. Dizia que, sem ela, o sadomasoquismo se tornaria uma prática perigosa e que atentaria contra a vida das pessoas. Mortes poderiam ter sido impedidas se os participantes entendessem a importância de respeitar os limites de cada um dos envolvidos, e fazer com que a comunicação fosse plenamente entendida. Com isso, muitas dores e tristezas poderiam ser evitadas. Debra me falava que o pedido de cesariana deveria ser muito conversado durante o pré-natal. E ela acenava com a possibilidade de se criar uma “senha” para a ce­sariana, que seria a palavra ou gesto que cumpriria a função de explicar que todos os esforços foram feitos, que todas as tentativas foram realizadas, mas que o li­mite das suas capacidades foi extrapolado, e que não haveria mais espaço para tentativas. É um momento extremamente tenso, mas que deve ser respeitado e previamente estabelecido em suas regras. Concordei com minha amiga, porque percebi nessa postura a compreensão do momento especial que é o trabalho de parto, resguardando para a paciente a ga­rantia do protagonismo. Eu digo que sempre obedecerei às determinações da minha paciente, mas não de uma forma cega e automática, desreconhecendo a mudança do significado das palavras nos estados alterados de consciência. Entretanto, temos que estar aber­tos para o fato de que uma mulher, lá pelas tantas, venha a dizer:

— Abacaxi! Quero uma cesariana!

“Abacaxi” era, hipoteticamente, a senha previamente combinada. Ela só seria dita no caso de uma mulher não suportar mesmo e, depois de muito pensar, decidiu-se por uma cesariana. Mesmo sabendo da possibilidade de uma analgesia, ou aguardar mais um pouco, ou mesmo relaxar e ir para o chuveiro, ela preferiu de­sistir da proposta do parto natural e ir para a cirurgia. Eu escutei isso de uma paciente, fazia uns dez anos. Ela olhou nos olhos, com uma face brava, quase colérica, e disse:

— Chega. Não quero mais saber dessa história de parto natural. Nem de parto de cócoras, nem parto normal. Nada. Quero uma cesariana agora, !

Eu percebi que ela havia desistido mesmo. Estava apenas com seis centímetros, e o bebê era grande. Não me deixou nenhum espaço para tentar demovê-la da ideia. Fiz a cesariana na mesma hora. Mesmo assim, ela ficou brava comigo, di­zendo que eu não deveria tê-la deixado entrar em trabalho de parto, porque as dores eram horríveis, e que é algo insuportável e todas as outras coisas que paci­entes magoadas dizem. Ela teve uma chance de ter um filho de parto normal, e empoderadamente decidiu-se pelo que achava melhor. Foi protagonista de sua escolha, escolhendo a via que achava melhor diante de seus valores. É necessário ter a sabedoria para entender os sentidos últimos escondidos nas palavras. É fundamental valorizar a participação e o protagonismo pleno do nas­cimento humano. As palavras de “senha” podem cumprir o papel de avisar ao mé­dico (ou à equipe) que a cliente cruzou o limite do jogo; está desistindo de uma proposta e uma possibilidade. E isso deve ser sempre respeitado.

*   *   *

Olhei mais uma vez para Fátima e pude perceber que ela tinha medo. Mesmo tendo chegado tão longe, ela ainda sentia temor diante do seu parto. Depois de respirar fundo e ficar em silêncio, resolvi fazer um novo toque. Dilatação completa, bolsa íntegra, a cabeça do bebê estava mais baixa na pelve do que no exame anterior. Ainda estava alto, mas já havia descido. Foi então que eu dei mi­nha cartada final.

— Ok, minha flor. Você é quem sabe. Se você diz que não pode aguentar mais, eu acreditarei no que você diz. Se você quer terminar esse “suplício”, como você mesmo chama, então vamos lá.

Ela não tinha muita dor. Conheço “cara de mulher com dores”. Ela tinha medo, angústia, apreensão. E cansaço.

— Se realmente você chegou ao fim de suas forças, sou obrigado a acreditar em você, e não me restará outra opção a não ser acabar com tudo isso e operá-la. Para isso, basta chamar o anestesista e o auxiliar cirúrgico. Entretanto, eu impo­nho apenas uma pequena condição: só farei essa cirurgia se você olhar no fundo dos meus olhos e me disser que não suporta mais, que está no seu limite, que não pode mais esperar, e que vai querer uma cesariana, mesmo estando com a dilata­ção completa. Essa decisão vai ser sua, e seja qual for eu vou obedecer. Se eu fizer essa cesariana, será com tristeza, mas eu acreditarei em você e obedecerei à sua decisão. Eu estava solicitando a senha, a palavra que me confirmaria a sua desistência. Estava preparado para escutá-la, porque me mantinha fiel à ideia do protagonismo devolvido às mulheres. Peguei pesado, fui firme. Será? Disse a exata verdade dos fatos, mesmo com uma ênfase propositalmente dramática, mas estava realmente preparado para aceitar sua decisão. Minha postura era clara: “Você vai decidir. Você é responsável pelo seu parto. Você tem o poder nas mãos. Use-o”. Ela me encarou com olhos de súplica. Tentou balbuciar algo tipo “mas quanto tempo ain..”, mas eu lhe cortei:

— O tempo vai depender de você. Podem ser alguns minutos ou algumas horas ainda. Nada posso prometer, a não ser ficar ao seu lado aguardando e avaliando você e seu bebê. Nesse exato instante, ambos estão ótimos.

Ela estava com dilatação completa, e, mesmo que ainda não tivesse apresentado puxos, poderíamos considerá-la como estando dentro do segundo estágio do tra­balho de parto, que é quando o período de dilatação já se completou. Mas quanto tempo poderíamos aguardar até o nascimento do seu filho? Essa questão torna-se crucial nos casos em que a descida da apresentação fetal é mais lenta do que o normal, mesmo após ter se completado a dilatação do colo uterino. Em verdade sobre essa questão, a biblioteca Cochrane de medicina ba­seada em evidências é taxativa: “Se houver progressão do trabalho de parto, e ambos (mãe e bebê) estiverem bem, não há justificativa para se estabelecer um limite máximo para o segundo estágio do trabalho de parto”. Além disso, a relação entre períodos expulsivos mais lentos e morbidade fetal não existe. Os trabalhos bem acompanhados no mundo inteiro deixam bem claro aos profissionais que tra­balham com o nascimento humano que não existe vantagem alguma em interrom­per o desencadear de um processo de nascimento mais vagaroso pelo medo de uma alteração perigosa. Entre as técnicas e habilidades a serem utilizadas nessa situação, a mais efetiva e, no entanto, a mais difícil de ser encontrada, é a… paci­ência. Fátima ficou alguns segundos pensativa e cerrou fortemente os olhos quando a nova contração se deu. Passada mais essa “onda”, olhou novamente para mim e disse, depois de liberar mais um suspiro:

— O que eu preciso fazer, doutor?

Ufa… Por uns instantes, temi por ela, mas ela foi mais forte do que eu pensava.

Aí é que entrou a magia das mulheres. Eu lhe disse:

— Você está com a dilatação completa. Está sem nada “na frente” do seu bebê. Pode até fazer força se quiser ou sentir uma forte vontade. Pegue na mão da Zeza e saia caminhando com ela até o chuveiro. Fiquem lá vocês duas. Deixe que a água quente da ducha a acalme e relaxe.

Ela concordou e lá se foram as duas. Saí da sala e anotei em um papel o nome e o telefone do anestesista e da minha auxiliar. Pensei comigo: não vou usar esses números, ela vai conseguir. Seria um otimismo exagerado, ou apenas uma tenta­tiva de convencer a mim mesmo da possibilidade? Passaram-se uns 20 minutos, quando vi a entrada de Zeza na sala dos médicos esfregando as mãos. Olhei pra ela sem entender.

— Coroou — disse ela. — Já está ali! Eu vi, eu vi!

Não acreditei. Estava muito alto quando a examinei há alguns minutos. Poderia ela ter progredido tão rápido assim? Fui até o chuveiro e entrei quase debaixo da ducha. Incrível. Lá estava ele! Estava saindo mesmo! Pedi a Fátima que saísse do pequeno box e subisse na cama para parto de cóco­ras. É uma mesa da JICA que o hospital recentemente havia adquirido. Mais alguns minutos e lá vinha vindo ele. Devagar e lentamente. Assustei-me com o tamanho da cabeça. Era muito grande. Mas o desprendimento era suave, tran­quilo. O períneo suportou muito bem. Vinha vindo, vinha vindo. Ela olhou para mim, como que a perguntar o que fazer, e eu lhe disse:

— Sei que você está com uma contração. Deixe-o nascer. Não tenha medo. Você vai conseguir. Relaxe; tenha confiança.

Uma última força e a cabeça nasceu. Grande, redonda, sem nenhuma bossa. Tive que fazer uma manobra suave, porém firme, para o desprendimento dos ombros. O “resto” do bebê veio logo depois. Quando ele nasceu, eu não acreditei… Era enorme! Um gigante. Muito maior do que a previsão. Chorou logo depois. Era vermelho e redondo. Eu brinquei com ela: “Parece um chinês!” A pediatra não estava na sala porque havia sido chamada, minutos antes, para uma emergência, mas sua auxiliar ficou por perto para qualquer imprevisto. Nada aconteceu, apenas risos e alegria.

O mais surpreendente verificamos depois. O bebê pesou nada menos do que 5,355 quilos. Um trabalho de parto rápido e sem nenhuma laceração perineal. Eu falei para as enfermeiras presentes que, contando, ninguém acreditaria. Essa pa­ciente deveria estar em uma sala de recuperação pós-anestésica, cheia de soros e medicamentos, dopada e sonolenta e, no entanto, estava amamentando seu bebê gorducho, sem nenhum ponto, sem nenhuma droga e sem nenhum pro­blema. Apenas felicidade. A equipe de enfermagem foi maravilhosa, o que reforça a minha convicção de que bons hospitais não são feitos de máquinas sofisticadas ou instalações suntuosas; são feitos de gente, a matéria-prima mais complicada, rara e valiosa. As enfermei­ras e auxiliares permaneceram o tempo inteiro nos prestando auxílio sem interferir, e quando vinham ter conosco sempre traziam uma palavra de encorajamento e confiança.

A presença da Zeza foi fundamental; um capítulo à parte nessa história. Sua can­dura e paciência foram o toque mágico que despertou as capacidades que Fátima trazia consigo. Sem ela, não teríamos tido sucesso. A feminilidade com que esse nascimento ficou impregnado é que possibilitou que sua capacidade de parir vi­esse à tona. E ficou para mim uma grande lição: acreditar sempre, porque as mu­lheres merecem esse crédito. Ao ver Fátima agarrada ao seu filho, lembrei que todas as mulheres do mundo estavam de parabéns. Uma vitória como essa é uma conquista de cada uma das mulheres do mundo. Uma vitória contra o descrédito e a desconfiança.

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Espaços estanques

Estava eu aqui pensando nos limites entre “vida profissional” e “vida privada” quando lembrei de um dos meus encontros com as parteiras do México – em especial Angelina Martinez, de quem tenho a honra de ser amigo até hoje. Em uma de nossas visitas à sua Casa de Parto em Temixco, próximo de Cuernavaca, depois de uma manhã atribulada resolvemos fazer uma pausa para almoçar.

Enquanto comíamos a deliciosa comida que sua nora nos preparava vi Angelina cruzar a cozinha da casa e entrar em seu quarto segurando a mão de uma grávida. Alguns minutos depois, saiu com a gestante, despediu-se dela e se uniu à nós na mesa. Intrigado com a cena, perguntei-lhe quem era.

Ahh, disse Angelina, apenas uma cliente que veio fazer “rebozo”. Como os leitos da Casa de Parto estavam todos ocupados eu a trouxe para cá e fiz a “sobada” e o rebozo na minha própria cama mesmo.

A sua explicação me deixou espantado. Tendo passado muito tempo nos Estados Unidos visitando consultórios médicos – onde o contato é restrito aos rígidos limites profissionais e onde sequer o telefone pessoal do médico se tem acesso – aquela cena me chocou. A naturalidade com que Angelina mesclou espaços privados com públicos estava muito além da minha experiência até então.

Pensei nas roupas brancas, no estetoscópio pendurado no pescoço, no dialeto mediquês, nas várias salas que precisa-se vencer até chegar ao profissional, na mesa que separa corpos e hierarquias, nos diplomas na parede e no discurso empolado e pude perceber com inusitada clareza que são todos tão somente artifícios produzidos para afastar os médicos de seus pacientes, numa espécie de redoma de significados e palavras que, ao mesmo tempo que os protege, também os exalta. Criamos barreiras para não permitir que o paciente enxergue nossa humanidade, permitindo a eles apenas a visão idealizada que constroem sobre nós.

Angelina não precisava desses signos e por esta razão não usava nenhuma barreira para afastar seu mundo do mundo de suas “gorditas”. Depois desse dia passei a enxergar de forma mais crítica todas as formas que criamos para manter separados estes espaços.

Obrigado também por isso, Angelina.

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Tempo

No início do século XX iniciou-se a instalação de telefones residenciais em Paris. Além de serem caros eles receberam o rechaço inicial do segmento mais rico da população, exatamente quem teria dinheiro para adquirir uma linha.

Mas por quê? Ora, porque o telefone invadia as casas; as linhas que chegavam na sala ou na biblioteca entravam através das paredes sem cerimônia alguma e a voz de um desconhecido podia ser escutada na intimidade do lar. Era como se alguém, qualquer pessoa, entrasse na sua sala de estar sem ser anunciado. Lembro vagamente de uma descrição de Marcel Proust dizendo pela boca de um personagem “Fulano é desses novos ricos, sem estirpe, que tem até telefone em casa“.

Estamos no ocaso da vida privada. A ideia antiquada de privacidade está desaparecendo. Câmeras nas ruas, nas praças, nos smartphones e em todos os lugares públicos demonstram que intimidade é um conceito que tende a desaparecer.

Essa derrocada da vida íntima também ocorre no campo das profissões. Cada vez mais vemos clientes (ab)usando os recursos cibernéticos para acessar os profissionais à distância, tornando-se necessário estabelecer limites claros para os atendimentos, sejam eles quais forem.

Não há dúvida de que jogar seus limites na cara do outro é uma arrogância no mínimo desagradável. Também é certo que uma mensagem por whatsapp enviada de madrugada pode ser vista no início da manhã, sem fazer disso um drama ou uma discordância. Equilíbrio é essencial, mas esse parece ser um caminho sem volta.

Eu recebi a vida inteira consultas simples de pacientes por whatsapp e Messenger (e antes disso por telefone), e até mesmo de completos desconhecidos de outros países (algo que você não encontra nos Estados Unidos, por exemplo, onde estes limites são muito rígidos). Reconheço que todos eram cuidadosos ao invadir esse espaço e sempre os atendi muito bem porque tenho prazer em ajudar e dissipar angústias gratuitamente – mas não exijo isso de ninguém e muito menos cobro isso de pessoas que fazem do conhecimento seu ganha-pão.

Por outro lado eu entendo que pessoas expressem seus limites, e de forma muito clara, nos âmbitos profissional e pessoal. Conheço médicos obstetras que viajam em fins de semana alargado para lugares sem celular ou TV, incomunicáveis, deixando seus colegas cuidando de seus casos. Meu professor de obstetrícia na faculdade jogava futebol numa cidade vizinha com os amigos todos os sábados, e quem entrasse em trabalho de parto nesse dia jamais conseguiria encontrá-lo. Todavia, todas as suas pacientes tinham conhecimento disso. Estaria errado? Não creio. Esse era o seu limite.

Existem obstetras que trabalham em hospitais, centros de saúde, UPAS ou clínicas para os quais às 18h de sexta feira nenhum assunto do seu trabalho poderá atrapalhar seu fim de semana. Prezam a privacidade, a família e o lazer. Estariam sendo errados e caindo no egoísmo? Não creio.

Existem, por outro lado, médicos que colocam sua vida inteira à disposição da sua clientela particular, que dão conselhos e orientações por telefone (e whatsapp), que atendem fora de hora, que saem de casa às 2h da madrugada para atender partos, emergências ou cirurgias. Serão eles heróis?

Nada disso, são apenas sujeitos que estabelecem limites mais alargados entre vida profissional e pessoal. Não existe apenas altruísmo em suas ações; há benefícios pessoais para quem se comporta desta forma, desde financeiros até psicológicos.

Dizer que um estilo de trabalho – de médicos, professores, advogados ou marceneiros – é “melhor” ou “mais nobre” do que o outro é injusto. A única queixa válida é para quem vende disponibilidade e não entrega, até porque ser um profissional à disposição de seus clientes é a parte mais custosa e cara do trabalho destas pessoas.

Na era da extrema facilidade de comunicação seria óbvio que esta mistura de espaços ocorreria. Desta forma, cada vez mais cabe a cada profissional deixar de forma explícita os limites preciso do tempo que se compromete a ceder para seus clientes, para que isso não venha a gerar angústias e ressentimentos.

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