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O Alçapão

Sonhei que estava em Nova York, participando de um congresso em um edifício cheio de brilhos e espelhos. Sonhar com essa cidade é algo recorrente; ela desempenha para mim um espaço curioso desde a experiência inesperada que tive ao conhecê-la, recém saído da adolescência, há 40 anos. Sei que isso é clichê, mas esta cidade tem um significado bem pessoal para mim.

Neste sonho eu estava visitando a cidade com Zeza e Bebel quando acabei encontrando uma querida amiga aqui do Brasil que havia se mudado há pouco para lá. Fui visitar a sua casa e percebi que havia um alçapão dentro da cozinha que levava para um porão lúgubre e úmido, o qual não me atrevi a explorar. Cheguei a comentar com ela “O que seria do cinema americano sem esses aposentos carregados de suspense e mistério, não?”. Na tampa do alçapão estava presa uma corda e, ao puxá-la, pude ver que acionava uma roldana que fez subir um balde escuro de um poço no canto da peça, de onde se retirava água. Fechei o alçapão e fui para os fundos da casa, onde havia um quintal com patos, cachorros e um córrego de água fria e translúcida.

Depois de conversar demoradamente com minha amiga e sua mãe eu lembrei que precisava me despedir para reencontrar Zeza. Todavia, meus pés estavam desnudos e eu não conseguia achar meus sapatos. Enquanto os procurava para voltar ao hotel, as pessoas, no afã de ajudar, traziam outros pares de sapatos, achando que poderiam ser os meus. Depois de experimentar vários, finalmente trouxeram o verdadeiro, mas então começou um novo drama: encontrar os cadarços corretos. No final, achei cadarços pretos para um pé, diferentes do outro, que eram marrons.

Havia brasileiros moradores de Nova York na casa e quando perguntei a eles se haveria um programa para me indicarem um deles me respondeu: “Veja, os bons programas, aqueles imperdíveis, você não teria como comprar hoje, pois estão esgotados há semanas. Além disso seriam tão caros que você não conseguiria pagar.”

Minha resposta foi resignada: “Bem, é melhor aceitar as coisas que minha condição permite do que desejar algo além do razoável. Se não tenho condições para pagar estes programas, melhor me divertir com as alegrias possíveis.”

Quando questionei minha amiga pela sua decisão súbita de se transferir para Nova York, ela me disse algo como “ahh, foram tantas coisas, tantos fatos, demoraria muito a explicar. Mas resolvemos em conjunto mudar para cá”.

Fim

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Sobre as histórias a contar

Há 20 anos exatamente estava atendendo no consultório quando fui surpreendido por uma imagem no computador da minha mesa. Imediatamente liguei meu rádio e aproveitei para escutar as descrições ao vivo. Um avião havia se chocado contra as torres gêmeas em Nova York, um lugar que eu havia conhecido duas décadas antes quando visitei a cidade. A descrição da rádio me fez ligar a TV do consultório na recepção, aproveitando uma falha na agenda. A sensação de todos era pânico e assombro.

Cheguei a ver ao vivo o choque do segundo avião. Imediatamente liguei para minha mulher. “O mundo vai acabar”, disse eu para Zeza Jones em tom de despedida, sem saber que era mesmo verdade. O mundo, como o conhecíamos, acabava naquele dia. Nunca mais eu vi os Estados Unidos como eu estivera acostumado a ver e – confesso – até admirar. Imediatamente, ainda enquanto ouvíamos o eco da queda retumbante das torres, surge o “Patriotic Act”, a perda dos direitos civis nos EUA, o recrudescimento da islamofobia, a invasão do Iraque, a “Guerra ao Terror”, as convulsões no Oriente Médio, as invasões brutais a vários países (Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, etc) e o panóptico americano sobre suas zonas de domínio, que em nível local levou à própria Lava Jato, ao juiz cooptado em Curitiba, aos golpes jurídico-midiáticos e finalmente nos levando à “facada” e à Bolsonaro.

Sim, em minha perspectiva o fascismo bolsonarista é ainda um reflexo do fatídico dia 11 de setembro de 2001, que no futuro será visto como a festa macabra a celebrar o fim de um Império. Desde então esse gigante de poder planetário apodrece lentamente à nossa frente mas, como todo sistema de opressão, sua decadência será marcada pela violência e pela agressão às conquistas da civilização.

Minha solidariedade aos mortos dessa tragédia no correr dos anos foi dando lugar à indignação com um país que passou a matar um World Trade Center a cada dia no Oriente Médio. Só no Iraque foram 100 mil. No Afeganistão foram mais de 400 mil mortos, mas para estes homens e mulheres pobres e de pele escura – mortos por defender sua própria terra – não há nenhuma superprodução de Hollywood para contar suas histórias, seu sofrimento, sua dor, seus filhos perdidos, o heroísmo de seus combatentes e suas esperanças soterradas pelas bombas americanas.

Os bombeiros americanos são tratados – justamente – como heróis. Histórias e lendas são contadas sobre sua bravura e coragem para salvar o maior número possível de vitimas do ataque. Todavia, nenhuma justiça é feita aos heróis e heroínas anônimos que ainda hoje protegem seus filhos dos ataques imperialistas. Da Palestina às cavernas nas montanhas do Afeganistão milhares de histórias poderiam ser contadas sobre a brutalidade e os massacres levados à cabo pelas forças invasoras, mas também sobre os anônimos homens e mulheres que defenderam suas famílias e suas comunidades.

Um mundo onde impere a justiça e o equilíbrio por certo haverá de trazer à tona essas narrativas de dor, coragem, determinação e esperança.

PS: Não, não é o World Trade Center nesta foto. É Gaza, onde todas as semanas há um novo massacre, matando palestinos de forma brutal e sistemática. Lá as torres gêmeas são o imagens do cotidiano. E por trás da barbárie continuada estão os mesmos Estados Unidos e seu apoio aos terroristas de Isr*el.

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À espera de Emma

Diante do cenário luminescente de matizes multicoloridos do céu ele se despiu do último cigarro, fazendo a brasa vívida brilhar contra a paisagem avermelhada dos bancos do bar. Da primeira baforada surgiu a frase entrecortada pela fumaça.

– Se há algo que não podemos controlar, Benny, é o ouvido alheio. Nada nos garante que o coração de quem ouve poderá compreender o que falamos, muito menos o que se esconde no vão das palavras. Como saber se a frase solta não vai encontrar um oceano de contextos na mente do outro? É verdade irmão, o ressentimento é uma capa que ao mesmo tempo em que nos protege sorrateiramente nos corrói a alma.

Sentado à sua frente Benjamin colocou uma colher a mais de açúcar no café fazendo o tilintar da colher entoar um dueto com os carros que passavam na rua. Seu olhar estava fixado na porta do bar na esperança de que Ethel viesse finalmente encontrá-los. A ansiedade pelo encontro enchia o bar acanhado de silêncios que, misturados com o aroma de café passado, traziam a todos a dor pesada de muitas nostalgias. Benjamin descolou o olhar da porta e sorveu o primeiro gole de café. Enquanto absorvia o amargor adocicado da bebida fitou Mark ainda com a xícara tocando os lábios.

– Se ela entendeu dessa forma não há nada que você possa fazer, disse. Não adianta se martirizar. Se ela se magoou com aquelas breves palavras não cabe a você se culpar. Você sabe como são as mulheres…

Mark sorriu pela primeira vez.

– Não, irmão. Nunca saberei.

Faça uma imagem com esse texto O tilintar dos sinos da porta de entrada anunciaram a chegada de Emma. Benny sabia que seu rosto na primeira imagem denunciaria seu propósito e o que ocorreria nas próximas horas. Vestia-se sobriamente e carregava uma sombrinha nas mãos. Seu olhar procurava a dupla que a aguardava até que finalmente atingiram em cheio os pupilas contraídas de Benjamin.

– É ela Benny?, disse Mark sem ousar virar o corpo.

– Temo que sim. Esteja preparado e boa sorte, brother.

Barry Wiedeman Harris, “The Portrait of the Devil”, Ed. Canvas, pág 135

Barry W. Harris foi professor de literatura medieval na Universidade do Novo México. Escreveu vários livros relacionados aos conflitos sociais derivados da imigração. Como homem de esquerda, foi membro do Partido Socialista da América e, quando do seu desmembramento em 1973, manteve-se filiado ao Comitê Organizador Socialista Democrático. Seus livros e crônicas abordam de maneira ácida o racismo e o preconceito de classe dos “WASPs” (White Anglo-Saxon Protestant) em contraposição aos sonhos e esperanças das comunidades latinas que vivem nos estados limítrofes da fronteira mexicana. Casou-se com Julieta Morejano, de ascendência Guatemalteca, e teve dois filhos, Pedro e Enrique. Morreu em 1998, vítima de um câncer de tireoide.

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