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Cavalo de Troia

Diante do efeito dominó nas casas legislativas do país em acatar a ideia das “cesarianas a pedido”, creio que as instituições de proteção à mulher – em especial aquelas que defendem a humanização do nascimento – precisam olhar para o fenômeno com muito cuidado, toda a delicadeza e a devida responsabilidade que ele demanda.

Apesar da frustração inicial e pela perspectiva de vermos aprofundar o intervencionismo obstétrico em nosso país, creio que nossa ação – da ReHuNa e outras instituições afins – deve ser antropofágica. Quero dizer: comer a realidade que nos foi imposta, digerir a nova condição, ruminar suas circunstâncias e contextos e finalmente incorporar essa nova fase, onde a (ilusória) autonomia das mulheres, determinada pela pressão dos profissionais e instituições, será tomada como guia.

Sabemos do “Cavalo de Troia” que está por trás dessa falsa liberdade de escolha. Simone Diniz explicava há muitos anos sobre a estratégia de “oferecer partos violentos para vender cesarianas“. Pior ainda, agora vemos a própria legislação travestir a opção pela cesariana – que nada mais é que uma “escolha pela dignidade” em contextos de violência obstétrica – como um avanço nos direitos humanos e uma vitória para as reivindicações históricas das mulheres.

Temos plena consciência de que estamos diante de um embuste e um retrocesso, mas é difícil fazer esta informação chegar na ponta da atenção para o conhecimento das gestantes e suas famílias.

Todavia, não há como retroceder. Qualquer movimento para obstaculizar esta medida será levada ao público como retrocesso e como insistência na tutela sobre os corpos femininos. Para a imensa maioria das gestantes, embebidas na cultura do “imperativo tecnológico”, a cesariana representa o futuro, a ciência, o progresso e o fim de suas “dores excruciantes”. Bem sabemos o quanto isso está longe da verdade, mas também temos noção do quanto educar mulheres sobre os benefícios do parto fisiológico é tarefa que dura gerações.

O que é necessário agora é absorver o golpe, aceitar o aumento de cesarianas como um resultado inevitável, cuidar dos feridos e dos mutilados (entre pacientes, médicos e parteiras) e continuar nossa campanha incessante e firme por uma pedagogia verdadeiramente libertária para as mulheres, desde a mais tenra idade.

Para as mulheres que se deixaram seduzir pelo canto mavioso da sereia tecnocrática só podemos dizer:

“Se você deseja uma cesariana para fugir da dor, ou porque está consumida por medos, esta é uma escolha sua. Todavia, se deseja saber o quanto custará esta decisão, e os riscos envolvidos nela, pode nos procurar, pois estaremos sempre aqui para ajudar”.

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Etapas


Desmistificar o parto e garanti-lo às mulheres permite que ele seja vivido em sua plenitude, com suas características subjetivas e suas possibilidades transformativas.

Outro elemento essencial diz respeito a livrarmos a atenção ao parto de todo o ranço patriarcal e toda a violência que ainda o caracteriza. Dia haverá em que o nascer em paz e liberdade será a regra e a indignidade de atos agressivos contra a mulher será apenas uma página triste na história dos direitos humanos. Para que isso ocorra faz-se necessário questionar toda violência, visível ou invisível, assim como todas as ações de misoginia – ideológica, institucional ou estrutural.

Esta é uma luta que vale a pena lutar. Precisamos ultrapassar a etapa de ter liberdade para fazer escolhas e entrar na era de ter conhecimento e informação para fazermos boas escolhas.

Chiamaka Mugambi, “Letters to Nairobi” (Barua kwenda Nairobi), Ed. Kalunga, pág 135

Chiamaka Mugambi, nasceu em Nairobi no Quênia em 1953, no início da Guerra Civil no país, também conhecida como a “Rebelião Mau Mau”, a Emergência Queniana ou a Revolta Mau Mau. Esta foi uma revolta contra o governo colonial britânico no Quênia, que durou de 1920 a 1963, entre o Exército Terra e Liberdade do Quênia (Kenya Land and Freedom Army – KLFA – também conhecidos como “Mau Mau”) e as autoridades britânicas. Por esta razão Chiamaka – filha de um funcionário britânico e uma queniana – mudou-se para a Inglaterra, onde passou sua infância e realizou seus estudos, formando-se em enfermagem no ano de1978. A partir dessa data começou novamente a estreitar laços com suas origens na África, visitando o país por várias vezes para estudar as práticas de assistência ao parto produzidas pelas “mkunga”, parteiras tradicionais do seu país de origem. A partir desse retorno às suas origens, Chiamaka começou a questionar as práticas ocidentais e a hiper medicalização do parto, mostrando como a extremada artificialização do evento produz uma desconexão entre as mulheres e suas funções fisiológicas mais profundas e constitutivas. Escreveu um manual de assistência ao parto baseado nessa experiência para ser distribuído em swahili e inglês, chamado “Mãos na Terra” (Mikono Duniani), que se tornou um sucesso entre as estudantes de parteria do Quênia. Posteriormente escreveu “Cartas para Nairobi” (Barua kwenda Nairobi) onde descreve em primeira pessoa suas aventuras na redescoberta do parto “as it really is”.

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Como saí do Armário

Hand of a child opening a cupboard door

É claro que eu contei primeiro para a minha mãe. Todos nós sentimos mais confiança nela, não? Ela é nossa reserva de amor, e confiamos que seu julgamento será baseado no afeto que tem por nós. Um dia, com um misto de coragem e um senso de urgência, eu falei assim prá ela:

– Sabe mãe, eu não sou como os outros meninos. Sempre soube que era, digamos, “diferente”. Desde o tempo da faculdade que tenho esses sentimentos estranhos. De inicio eu não me aceitava, ficava tentando me enganar. Até fiz coisas que me violentavam. Hoje sinto vergonha de coisas que fiz só por medo de não ser aceito. Não queria que os outros meninos me achassem estranho, bizarro e fizessem troça de mim. Todo mundo quer ser aceito, mãe. Na verdade a gente faz qualquer coisa nesse sentido; até faz coisas que agridem seus princípios.

– Sua mãe vai lhe apoiar sempre, filho…

– Sei disso, mãe, por isso tenho certeza que posso me abrir. Mãe, eu preciso lhe contar…

– Diga meu filho…

O momento era de angústia, e se podia sentir na própria pele. Um segredo por tempo guardado, mas que precisava ser revelado. Minha esperança é que minha mãe pudesse escutá-lo com ouvidos amorosos, e que seu julgamento não fosse duro e cruel como tantos que já havia presenciado.

– Mãe, preciso te dizer, antes que você fique sabendo por outros. Eu, eu, eu… eu não gosto tanto de cesariana quanto gosto de parto normal. Veja bem, não é que eu não goste de operar, mas é diferente. É uma sensação difícil de explicar. Operar não me completa tanto quanto ver uma mulher parindo pelas suas próprias forças. É uma coisa assim, sublime. É como se a cada parto eu pudesse ver um arco-íris na minha frente, brilhante, colorido e resplandecente. Espero que me entenda. Agora não tenho mais medo de lhe contar…

Minha mãe sorriu se escutasse uma história antiga.

– Meu filho, tolinho. Eu sempre soube e agora que você me contou eu o amo mais ainda. Vem aqui dar um abraço na sua velha mãe…

Foi assim. Levou tempo para contar, mas depois de dizer a ela eu me senti muito mais leve. Limpo e digno.

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