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— Quanto sairia a mesma configuração de CPU, o mesmo processador, mas com um monitor de 15 polegadas?
O rapaz soltou a placa de vídeo que levava nas mãos e segurou a calculadora. Doentes por computador, como eu e o meu colega Rivail, acabam conhecendo todas as bibocas que vendem equipamentos, placas, cabos, HDs, etc. O vício nos obriga a procurar múltiplos “fornecedores”, porque às vezes estamos atrás de um detalhe que apenas os mais aficionados têm em estoque. É dura a vida do viciado. Sempre atrás de um driver perdido, babando por uma placa 3D, sofrendo por falta de RAM. Acho que já tive até síndrome de abstinência durante as minhas últimas férias na praia. Nessa época, eu costumava ter sonhos com Pentium e me via correndo pelos campos segurando um notebook prateado nas mãos e sendo perseguido por um Bill Gates furioso que me xingava por usar um Windows pirata. Esses pesadelos às vezes terminavam com um banner: “Este sonho tem o patrocínio da Intel”.
Enquanto o rapaz fazia (ou fingia fazer) as contas, meu celular vibrou na cintura. Rivail continuava a observar a placa-mãe, e eu me afastei para responder ao chamado. Era do hospital. Minha paciente estava lá me aguardando, e parecia estar com bastante vontade de fazer força. Seu nome era Maria Rita, e me aguardava junto com a doula Cristina na sala de emergência do hospital.
Puxa. Incrível. Exatamente no dia “D”. Que coincidência! Mas essa não seria a primeira, e nem a última coincidência do caso, que havia começado havia alguns meses. Rita chegou no meu consultório com a indefectível montanha de exames. Ultrassons, hemogramas, exames de urina, etc. Trouxe junto com ela, colado em sua face, um semblante de preocupação. Colocou os exames em ordem sobre a mesa e começou a desfiar seu calvário de tormentos:
— Eu vim aqui para ver o que posso fazer da minha gravidez. Estou com 27 semanas. É minha primeira gestação, mas há três anos fiz uma conização porque tinha um carcinoma no colo uterino. Isso nunca me causou problema, e a minha doutora me disse que eu estava curada. Mas, como o senhor já sabe, eu estou com contrações e muito nervosa. Tenho medo de perder meu bebê.
O senhor já sabe?, pensei eu. Sei mesmo? Fiz uma sinapse de emergência com meus neurônios de reserva. Ok, agora estava me lembrando. Maria Rita. Havia me ligado várias vezes durante a semana, por ser amiga da psicóloga Flávia, e estar acompanhando seu curso para gestantes. Disse-me ao telefone que não estava entendendo as recomendações de sua médica e, além disso, estava desconfiada da quantidade de medicações que estava utilizando. Queria uma segunda opinião. Respondi que teria imenso prazer em ajudá-la, mas que não ficava bem eu ficar minando a relação que ela tinha com a sua doutora. Coisas da ética médica. Ficar dando palpites por telefone do tratamento que um colega está fazendo parece papo de botequim. Pedi que marcasse uma consulta para que a gente pudesse calmamente conversar.
Alguns dias depois, lá estava ela. Contraía o cenho, como se assim fazendo pudesse também contrair o resto de colo uterino que possuía. Estava nervosamente segurando seus papéis, com um olhar de súplica nos olhos. Ela estava amedrontada, e percebi que sua médica também estivera. Entre os papéis de Maria Rita estava uma receita de corticosteroide, medicamento usado para acelerar a maturação pulmonar dos bebês nos casos em que se suspeite que possa ocorrer um parto prematuro. Apesar disso, no momento ela estava sem nenhuma das contrações que a atormentaram há alguns dias. O exame clínico me mostrou um colo uterino apagado (chato, plano), porém fechado. Mesmo que ela tivesse tido muitas contrações nas últimas semanas, estas não foram capazes de dilatar esse colo.
— Tenho medo — disse ela.
— Sei disso — respondi. — Mas tenho uma proposta para fazer.
— Qual?
— Suspenda todas as medicações e tome apenas medicamentos homeopáticos. Não use nenhuma droga. Faça repouso e uma dieta que evite alimentos “fortes”. Acima de tudo, tenha fé em si mesma. Acredite que você pode. Tome uma ducha de autoconfiança. Que acha? Ratifiquei minha posição de aguardar sem usar drogas, porque no momento ela estava sem nenhuma contração, mas investir pesadamente se fosse necessário. Ela saiu da minha sala aparentemente mais confiante.
É complicado ser um médico que se pretende humanista. “Humanização do nascimento é a garantia do protagonismo à mulher”, já me dizia Maximilian desde a época da residência médica. Mas estarão essas mulheres preparadas para o protagonismo? Querem de verdade tomar as rédeas do próprio destino? E se não quiserem? Devo agir como um pai todo-poderoso que impede que seus filhos saiam de sua sombra protetora, alijando-os da árdua tarefa de serem responsáveis pelos seus atos? Ou devo empurrá-los para suas responsabilidades, tal qual a leoa com seus filhotes, para que procurem o crescimento pelas suas próprias forças, aprendendo com os tombos que a vida inexoravelmente lhes oferecerá? Nenhuma dessas perguntas tem resposta fácil. Todas produziriam polêmica, discussão e tantas interpretações quanto forem as cabeças a julgar. Mas o médico tem que decidir, baseado muitas vezes no sentir, no intuir, na sua estrela e nas percepções outras que nos ajudam a seguir.
Achei que Maria Rita merecia essa oportunidade de andar com suas próprias pernas, dar seus próprios passos. Senti nela, e no seu marido Jean, uma força e uma confiança admiráveis. Imaginei que a força que manteria sua filha por mais tempo na segurança do mundo uterino seria a força dessa certeza. Apostei. Poderia perder, mas achei que valia a pena tentar. Na consulta seguinte, eu lhes disse que queria fazer um acordo com eles e com a nenê: que aguardassem até o dia 30 de março, quando estariam completas 36 semanas, oito meses, e portanto o risco de síndrome de angústia respiratória seria mínimo. Eles se olharam como se não entendendo o porquê do “acordo”.
— Depende de vocês. Essa é a sua parte. Falem com ela. Expliquem porque é importante esperar até este dia, e que vai ser muito melhor ficar aí dentro, no calorzinho da mamãe, do que sair antes. Digam-lhe para aguardar com paciência, porque assim a mamãe, o papai e principalmente o doutor vão ficar bem felizes.
Ambos riram das minhas palavras, mas deixei bem claro que estava falando sério. Olhei para o calendário em cima do computador da loja: 30 de março! “Eles cumpriram a promessa! Exatamente no dia combinado. Gente de palavra!” Despedi-me do amigo Rivail e lhe falei que o dever me chamava, mas que depois conversaríamos sobre o seu novo computador. Saí da loja apressado, olhando para o relógio e preocupado com o tempo que levaria para chegar até o hospital. Quando fui colocar o telefone na cintura, senti uma sensação muito estranha, tão estranha que me deixou perturbado. Um aviso piscava na minha cabeça, diáfano, insistente, sem parar. Tão estranho e inusitado quanto forte.
Ligue para Berenice – Ligue para Berenice – Ligue para Berenice.
Que diabos seria isso? Por que esses pensamentos? Por que essa sensação de premência? Por que deveria ligar para a minha amiga Berenice?
Sem perder tempo, me dirigi ao carro. Não tinha muito tempo porque Cristina havia me dito que ela estava fazendo força. Será mesmo? Tão rápido? Tentei insistentemente ligar para Berenice. Nada em casa. Celular não estava na área ou desligado. Cáspite, o que será que a Berenice quer? Estaria precisando de algo? Alguma coisa com a Vitória, sua filha de um ano? Que mensagem telepática seria essa? Continuei tentando ligar, enquanto rumava em direção ao hospital. Fiquei imaginando a desculpa que daria para o policial, se fosse pego. “Desculpe seu guarda. Recebi uma mensagem mediúnica e estou tentando fazer contato”. Não ia colar. Cheguei ao hospital e encontrei Cristina, Maria Rita e a enfermeira de plantão.
— Ricardo — disse a enfermeira. — Pressão boa, batimentos ótimos, bolsa rota e líquido amniótico francamente meconial, e a dil…
— Meconial? — disse eu, preocupado com o significado do mecônio, as fezes fetais, no líquido da bolsa. Puxa, que droga. — Como está a dilatação?
— Era o que eu ia explicar agora, seu apressado. Dilatação de nove centímetros, baixo e… pélvico.
— Putz — disse eu. Prematuro de 36 semanas e pélvico! A posição pélvica explicava a presença de mecônio, que nessas circunstâncias não tem a gravidade que possui nas apresentações cefálicas. Era só o que faltava. Maria Rita não escutou nada dessa conversa, mas percebeu meu semblante tenso quando fui lhe falar.
— Rita, disse eu. — Seu bebê está bem, sua pressão ótima. Entretanto, ela se encontra sentadinha. Bebês sentados com prematuridade apresentam melhores resultados se são atendidos por cesariana, pois os riscos são menores. Acho que o mais indicado seria operar. Mas antes disso vou fazer um exame.
Luvas colocadas, paciente posicionada. Meu Deus… Dilatação completa e baixo. Estava quase no “visual”. Olhei para os lados, procurando por Nossa Senhora, ou algum orixá, mas encontrei apenas o olhar fixo do marido.
— Não dá mais tempo, virá por baixo mesmo. Não dará tempo de chamar o anestesista. Chamem o pediatra com urgência. Lembro do rosto do Jean, sorrindo nervosamente para a mulher e dizendo:
– Calma, Rita. Eu estou calmo; o doutor está calmo. Todos estão calmos. Tudo vai dar certo. Se ela quis vir de “bundinha”, tudo bem. Fique tranquila.
Saí da sala de exames e liguei para o Cláudio, pediatra. Pedi que viesse o mais rápido possível. Andei de um lado para o outro, tentando deixar tudo pronto. Corri até o vestiário para botar uma roupa apropriada e, ao desabotoar o cinto, vi mais uma vez o celular. Lembrei da ligação da Berenice, e antes de me dirigir ao telefone do Centro Obstétrico, fiquei paralisado. Não conseguia me mover. Minha garganta secou e meus olhos ficaram mareados. Uma lágrima quis correr pelo meu rosto, e o coração pulou mais forte. Tinha acabado de entender a mensagem.
* * *
Berenice foi minha amiga de infância. Primeira infância, eu diria. Falo para os amigos dela até hoje que brincamos de roda, de mãos dadas, junto às calçadas do Menino Deus, bairro que Caetano cantou e onde vivemos nossa meninice. Depois da adolescência, ficamos por muitos anos separados e apenas sabíamos da vida de um e de outro por amigos em comum. Em uma dessas coincidências da vida, sua mãe, dona Linda, veio consultar com minha colega de consultório, e, ao me reconhecer, me encheu de beijos, abraços e lembranças. Retribuí os abraços e mandei um beijo especial pra Berenice, de quem eu tinha muita saudade. Não cheguei a contar para dona Linda, mas Berenice foi uma das minhas primeiras paixões platônicas, lá pelos nove ou dez anos de idade. Nada mais justo que eu mandasse um beijo especial pra ela.
Depois desse encontro, Berenice me ligou. A mesma voz, o mesmo jeitinho, a mesma meiguice. Estava solteira e ficou apavorada de saber que meus filhos já eram adolescentes. Estávamos ambos quase com 40 anos. Marcamos de nos encontrar e o fizemos. Entre uma e outra cerveja, tomada nos bares de Ipanema, demos infinitas gargalhadas lembrando-nos de velhos conhecidos e de histórias engraçadas. O tempo passa e vez por outra Berenice me ligava, perguntando dos meus filhos, da vida e das pequenas e fundamentais coisas desimportantes do dia a dia. Meses mais tarde, Berenice me liga.
— Adivinha… Acabo de chegar do laboratório. Estou grávida. Preciso de ajuda. O que eu faço? Olha. Eu tenho 39 anos. Nunca engravidei antes. Sou “primigesta idosa”, como vocês médicos maldosamente nos tratam. Tenho um médico há muitos e muitos anos, mas gostaria que você me desse a sua opinião. Que devo fazer?
— Nem precisa me dizer… venha aqui falar comigo.
— Mas Ricardo. Você é meu amigo. Sei lá… Tenho vergonha….
— Azar o seu — brinquei eu. — Venha aqui e vamos conversar.
Conversamos longamente na primeira consulta. Estava apreensiva com a gravidez, mas sabia que era provavelmente a sua última chance. Queria que seu filho nascesse de parto normal, mas tanta gente dizia o contrário! Que fazer?
— Calma, boneca, calma. Vamos levar as coisas um dia de cada vez. Seja o que for necessário realizar em relação à sua gravidez e ao seu parto, nós discutiremos e você decidirá, ok?
Ela concordou e passou a fazer o pré-natal comigo.
Quando ela estava com 36 semanas, percebi que seu nenê não estava bem posicionado. Mesmo tendo certeza da posição, pedi uma ultrassonografia, que apenas confirmou o que eu dissera.
— Ela está sentada, Berenice, mas ainda acho que temos um tempo para ela virar.
Ela começou a usar medicamentos homeopáticos específicos para bebês mal posicionados, mas o tempo foi passando sem que se observasse nenhuma modificação. Chegou às 42 semanas, e me disse entre lágrimas.
— Ric, minha mãe teve seus três filhos de partos fáceis e tranquilos. Se essa guria não virar, terei mesmo que fazer uma cesariana? Por que ela sentou? Por que não entro em trabalho de parto?
Que poderia eu dizer? Que decisão terrível! Uma paciente de 39 anos, primigesta, 42 semanas, com apresentação pélvica e minha amiga de infância. O que eu deveria fazer? Respeitar seu desejo? Operar sem questionar, e acabar com a possibilidade dessa mulher/amiga vivenciar a glória de um parto normal? Colocar riscos e benefícios na mesa e dividir responsabilidades? Fiquei com a última alternativa. Expliquei o que significava tudo aquilo. Os riscos de uma cesariana e os riscos de um parto pélvico. As vantagens de ambos.
— Agora a bola está com você. O que você disser eu faço. Estou contigo e não abro.
— Você estará comigo o tempo todo? — perguntou ela. — Vai estar lá para segurar a minha mão? Minha mãe pode ficar comigo?
Respondi afirmativamente a todas essas perguntas. Isso a fez decidir-se pelo parto normal.
— Mas e as contrações? Por que não as tenho? Já estou com 42 semanas, e não aguento mais a pressão emocional.
— Amanhã é o dia. Você vai ter contrações esta noite — brinquei eu. — Confie. Tudo vai dar certo.
Dito e feito. As contrações vigorosas vieram no início da noite, e no raiar do dia seguinte eu estava indo para encontrá-la no hospital. Berenice estava confiante, segurando a mão de dona Linda. Caminhava de um lado para outro, e sua dilatação foi progredindo suavemente. Poucas horas depois, lá estava a bundinha da Vitória, branquinha como a da mãe. Duas ou três forças foram necessárias e lá veio seu corpinho, dobrado como um envelope de carta. A pelve, depois o abdome e os braços. Por último a cabeça, que se libera com a manobra de Bracht. Um dois e… não foi dessa vez. Mais uma tentativa e… Lá estava ela, linda, chorona e de braços abertos. Viu as primeiras imagens na vida de ponta-cabeça, mas reconheceu o sorriso da mãe e as lágrimas da avó. Conseguimos! Vitória! … Por isso o nome. Berenice confiou na sua intuição, e eu confiei nela. Elas (Linda, Berenice e Vitória) foram as grandes vencedoras.
* * *
Meus músculos agora voltavam a se mexer. As lembranças do parto de Berenice, naquele mesmo hospital apenas um ano atrás, passaram por mim como um relâmpago. Esta era a mensagem; tinha que ser! Berenice queria me dizer para ter confiança. Vitória também estivera sentadinha, e tudo ocorreu bem. Por que não ocorreria agora? Minha ligação com a intuição sempre foi de uma distância respeitosa. Aceito o bypass das conclusões diretas, mas ainda prefiro o caminho seguro da racionalidade cartesiana. A leitura de um artigo de Robbie Davis-Floyd, “Intuition as Authoritative Knowledge”, me abriu os olhos, ao mostrar como as parteiras lidam com a intuição como uma ferramenta poderosa. Por isso mesmo, aos poucos começava a me render às evidências que se colocavam à minha frente. Berenice e Vitória estavam a me enviar uma mensagem. O mesmo fato se repetiria. Confie. Leia sua intuição.
Expand your Mind, diria Morpheus a Neo, em Matrix.
Volto para a sala e encontro Maria Rita em posição. As contrações haviam diminuído de intensidade, provavelmente pelo estresse típico ocasionado pelo hospital, além das circunstâncias do momento. Deu tempo, e até sobrou, para aguardar o pediatra. Teoricamente até teria sido possível chamar o anestesista, mas quando pensei fazer isso Maria Rita teve uma contração forte e o bebê desceu quase até o períneo. Melhor aguardar. Mais alguns minutos e a pequena nádega apareceu, afastando os lábios vaginais. Mais uma força e já estava ela nas minhas mãos. Nenhuma resistência. Nenhum esforço extra. Fácil, rápido e bonito. O casal se abraçara chorando. Eu, de minha parte, agradeci as mensagens que recebera. Foram decisivas para o que ocorreu. Agradeci também pela data, porque Júlia, a nenê que nascera, cumpriu rigorosamente o contrato estabelecido nas primeiras consultas de pré-natal. Percebi, como na música dos Titãs, que as mensagens — ideias — estão no chão… Você se abaixa e encontra a solução…
Aprendi a confiar mais no que está escrito entre as linhas do consciente e do racional. Se eu ainda tenho dificuldade em enxergar, pelo menos que não feche os olhos.