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Culpas

Por favor, cuidem dele e o levem ao médico.”

No dia 21 de julho de 2024, um bebê com 5 a 10 dias de nascido, de uma gestação a termo – segundo estimativa de profissionais de saúde – foi deixado porsua mãe em no banheiro de uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em São Bernardo do Campo, São Paulo. Junto da criança foi deixado um bilhete, solicitando que o cuidassem bem e o levassem ao médico.

A culpa essencial e primordial para fatos absurdos como o desta mulher, que abandonou seu filho em um banheiro público, é da sociedade de castas, do capitalismo, da pobreza projetada e estimulada, da injustiça social e da distribuição obscena de riquezas. A miséria é uma construção social perversa desse modelo que nos divide pelo capital, filha direta da sociedade de classes. Entretanto, isso não absolve quem abandona um filho.

Reconhecer de onde vem esse mal não significa ignorar tudo o que vem a seguir. Se assim fosse seríamos obrigados a inocentar todos os assaltantes pobres, os ladrões e os abusadores, jogando a culpa na sociedade e sua estrutura perversa onde estão envolvidos. Não haveria sociedade possível utilizando este tipo de justiça. Não haveria ordem se justificássemos todos os males pessoais pela estrutura que nos controla; algum nível de responsabilização subjetiva é necessária.

Portanto, essa mulher também tem sua parcela de culpa, e se querem saber o quanto, basta pensar como se julga um homem que abandona os filhos. Para esses não existe contexto e nem frases ao estilo “menos julgamento e mais empatia”. Para estes só a dureza da lei. Para os homens que abandonam os filhos não existe contexto, apenas escolhas pessoais baseadas no egoísmo. Por que tratamos esse fato de modo tão diverso?

A empatia não pode ser oferecida apenas para alguns. O nome de um corpo de leis que é compreensivo e bondoso com uns e duro e inexorável com outros é “supremacismo”, pai do racismo e do sexismo. Trata os iguais como desiguais, e quando vemos um rico e branco que cometeu um crime ser tratado diferente de um negro pobre que cometeu o mesmo delito percebemos como este julgamento é errado.

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Abandono

Talvez a cena que mais me chocou ao ver “Freud além da Alma”, filme de John Huston de 1962 com Montgomery Cliff e roteiro de Jean Paul Sartre, foi a cena em que Breuer, que funcionava para Freud como uma figura paterna, lhe diz que jamais arriscaria sua reputação para defender as ideias sobre as origens da histeria que ele havia formulado, dizendo não acreditar nas tolices por ele escritas. Naquele momento, em que suas ideias eram atacadas de forma vil pelos médicos da Ordem Médica de Viena, o abandono de uma figura tão importante para sua vida teve uma repercussão determinante e decisiva. Talvez tão importante quanto a morte do seu pai, o abandono de Breuer trouxe sombras à relação que ele manteria dali em diante com a própria Medicina.

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Desamor

Eu creio que todos nós acreditamos que o amor que oferecemos é um bem muito precioso. E é mesmo; mas não é um ativo sobre o qual se possa exigir reciprocidade. Uma mulher abandonada vai dizer “e o amor, a dedicação, os filhos, os cuidados da casa, os sonhos compartilhados, a minha fidelidade? Vou ficar sem nada?” Cobram por essa carga enorme de afeto que foi por elas entregue, mas por certo esperando o retorno de quem um dia amaram.

Os homens da mesma forma vão falar do dinheiro, do tempo investido, do cuidado, do amor, da atenção e tudo que dedicaram à mulher a quem amaram – ou ainda amam.

Amores homoafetivos também não tem razão para serem diferentes. Quem é abandonado cobra a parte que lhe faltou na economia do amor. Essa é uma reação humana à mais antiga das dores – a dor crua e dilacerante do desamor.

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A alegria alheia

Ontem mesmo escrevi sobre o sonho que tive com o meu pai e hoje estava (re)pensando alguns dos seus significados. Estranho agora entender através de uma perspectiva diferente. A morte de alguém nos deixa um vazio, e essa lacuna é ainda mais dolorida quando perdemos mãe e pai em sequência. Esse vazio nos causa tristeza, desamparo e saudade, mas agora me dei conta de que estes são os nossos sentimentos em relação à partida, mas não necessariamente os sentimentos de quem foi embora.

Eu pensei nessa perspectiva porque há muitos anos meus filhos foram embora de casa para viver fora do país, deixando seus pais com a casa esvaziada. A sensação estranha que eu tinha era que, sempre que eu conversava com eles pela Internet (que ainda engatinhava) eu tinha a nítida sensação de que a minha tristeza não era compartilhada. Sim, eu era o “pai abandonado”, aquele que havia perdido uma parte de si, enquanto eles era os filhos “libertos”, jovens que estavam conquistando sua autonomia e curtindo as milhões de coisas boas que essa vida leve e solta é capaz de proporcionar. Assim, a minha vontade de que voltassem para casa – e assim aliviar minha saudade – se chocava com a felicidade que eu via em seus relatos diante de cada nova viagem, cada país visitado, cada conquista no trabalho e os lugares que haviam conhecido. Como poderia eu ser tão egoísta a ponto de pensar que eles deveriam abandonar essas coisas boas em nome do meu sentimento egoístico de tê-los por perto?

O sonho com meu pai trouxe de volta esta perspectiva. Se houver mesmo essa dimensão extrafísica, a sobrevivência de um princípio espiritual sobrepondo-se à morte, como pedir que meu pai se demorasse por aqui diante de tantas coisas novas para se alegrar do lado de lá? Eu imagino a alegria que o envolveu ao poder conversar com minha mãe recuperada, renovada depois de tantos anos imersa em um mundo só dela. Posso até ver, diante dos meus olhos, minha mãe voltando a conversar com ele do jeito meigo que sempre teve. Seria justo privá-lo disso? Tenho certeza que, reunidos e “restaurados” eles fariam as viagens que minha mãe sempre sonhou. Voltariam a Paris, visitariam museus, encontrariam tantos amigos que já se foram, fariam planos, curtiriam a vida. Seriam felizes de uma forma que não é possível compreender deste lado de cá.

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Adeus amor…

Durante muitos anos escutei os lamentos de dor das mulheres cujos parceiros ganhavam asas e partiam. Eram histórias carregadas de sentimento, de afetos cortados, de amores interrompidos, de partidas, de camas vazias, de perguntas sem resposta.

Uma dessas histórias me marcou pela tristeza da protagonista. Ela era tão grata ao ex-parceiro que jamais se permitiu odiá-lo, e também porque percebeu a dor compartilhada pela chegada do fim. Certa noite chegou em casa do trabalho e encontrou o marido sentado no sofá da sala, no escuro, com a cabeça entre as mãos e soluçando. Atônita, abraçou-o e perguntou o que havia ocorrido. Como ele não respondia, questionou se houve “algo no emprego”, “dinheiro”, “sua mãe”, “família” e ele só movia a cabeça negando.

Subitamente, ela percebeu que só lhe restava como alternativa aquilo que mais temia. “Sou eu, então?” disse ela, o que ele respondeu balançando a cabeça afirmativamente, gesto que se repetiu quando ela fez a pergunta derradeira e fatal:

– Então… você não me ama mais?

Em outras vezes a reação trazia a crueza das feridas abertas. Indignação, raiva, desprezo. Choro e ranger de dentes. E quanto mais odiavam, mais dolorido era o luto. Aprendi errando a não dizer nada nessas horas. Acabei descobrindo que a identificação com o “outro opressor” podia ser facilmente estabelecida.

“Vocês são sempre assim, todos iguais!!!”, diziam algumas, esperando uma “defesa da classe” que com o tempo percebi inútil e ineficaz. Eu apenas silenciava, oferecendo minha mudez como eco às suas lágrimas. Eu intuía que aquela quantidade imensa de projetos e planos fracassados, transformados em cinza de sonhos, precisava encontrar na palavra seu necessário escoadouro.

Muitas vezes quis abraçar e acalentar estas almas sofridas, mas sabia o quão arriscado estes movimentos são. No fim, creio que o melhor é permitir que a dor de esgote, que curse seu caminho por completo, que passe por todas as paragens e que siga até o fim da linha. Sem atalhos ou desvios.

O Merthiolate do tempo acabava servindo como remédio infalível. A ardência corrosiva do abandono aos poucos dava lugar à aceitação, e depois dela a reconstrução. Para muitas era possível entender e perdoar, abrindo espaço para um novo amor. Sabiam elas que odiar era “adorar pelo avesso”, impedindo o corte duro e necessário dos laços que outrora foram sua razão de viver.

Escrevi isso porque meus ouvidos encontraram “Atrás da Porta” hoje, onde Chico Buarque, na voz de Elis, conta todas estas milhões de histórias com a simplicidade genial dos poucos versos.

“Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar

Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua”

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