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Privacidade

Gal Costa era casada com Wilma, e com ela tinha um filho. Entretanto, negava-se a falar publicamente sobre o assunto. Apesar de ser algo de conhecimento popular, ela nunca “saiu do armário” publicamente, declarando-se abertamente homossexual. Algumas pessoas chamaram sua atitude de “auto preconceito”, típica de alguém que não se aceitava. Outros elogiaram o sigilo, exaltando a importância da inviolabilidade da vida privada.

Esse diagnóstico é arriscado. Não há como saber o que exatamente a fez manter privada sua orientação. Pode ter sido por vergonha, assim como pode ter sido motivada por pudor. Ahhh, o pudor, o mais belo (e raro) dos atributos em uma sociedade saturada de hiper exposição.

Talvez a escolha por manter fechado esse aspecto de sua vida seja a simples postura de valorizar sua arte e não permitir que sua sexualidade ocupasse mais as manchetes do que o seu cantar. Muitas mulheres voluptuosamente bonitas se sentem constrangidas ao notar que sua beleza ofusca seus outros talentos, escondidos atrás de uma formosura estonteante. Alguns atores e atrizes ficam até feios de propósito com o objetivo de demonstrar virtudes para além da beleza, como o fizeram magistralmente Tom Cruise em “Trovão Tropical”, Charlize Theron em “Monsters”, Jared Leto em “Capítulo 27” e Christian Bale em “O Maquinista”. Talvez Gal desejasse que sua música fosse a razão única para ser admirada.

A tese que mais me seduz é de que ela pode ter tentado tão somente proteger seu amor, que seria um alvo fácil da imprensa de escândalos. Manter incógnito seu afeto pode ter o objetivo singelo de garantir que sua parceira não seria perseguida, constrangida e invadida pelas hordas de gente interessada em puro voyeurismo de celebridades.

Não há como saber o que realmente leva as pessoas a esconder uma parte tão significativa de suas vidas. Além disso, não há como agradar um público sedento por identificações. O julgamento destas atitudes vai depender sempre de elementos afetivos. Se você não gosta da pessoa vai dizer que ela foi covarde e que a exposição de sua vida amorosa ajudaria outras pessoas a não sentirem vergonha de amarem igualmente desta forma “especial”. Já se você a admira, vai preferir acreditar que todos temos o direito sagrado à privacidade, e que o exercício deste direito por parte dela demonstra o valor que dá à sua arte, impedindo que seja eclipsada pela imprensa que sobrevive de fofocas.

Como sou um sujeito reservado, entendo perfeitamente o silêncio de Gal Costa. Responderia da mesma forma a qualquer intromissão que julgasse indevida. “Não estou vendendo exposições da minha privacidade. Ofereço minha arte e minha emoção. Caso não a queiram, não me peçam um escândalo em troca”, seriam minhas palavras. E acho que foi exatamente o que Gal tentou dizer….

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Visibilidade Trans

Em uma conversa sobre a visibilidade trans uma menina fez a seguinte observação:

“O que mata é a situação da prostituição, ser negro, ser pobre, ou seja, o de sempre. Homens brancos com grana podem transicionar pro que quiserem e vão ficar de boa”.

Deixei claro para ela que “de boa” era um exagero inaceitável. Dizer que outras condições de precariedade social, como a pobreza e a cor da pele, são elementos que agravam a marginalização dos sujeitos não nos autoriza a dizer que as transições de pessoas mais privilegiadas vão ocorrer com tranquilidade.

Eu nunca vi alguém trocar sua identidade sexual dando risada ou com leveza no coração. Isso é uma fantasia, mas pode acobertar uma brutal crueldade. Você pode passar por isso com mais ou menos sofrimento, mas nunca “de boa”, tranquilamente, fazendo festa. E digo mais, o que torna a transição um pouco mais tranquila para o transexual não será a cor da pele ou o dinheiro do sujeito, mas o suporte da família e do seu círculo de afetos. Ali mesmo, na mão amiga e compassiva é vai residir toda a diferença entre o sofrimento e a aceitação.

Ninguém sai do armário sob uma chuva de purpurina; as pessoas saem “chutadas”, mas esse chute é o sujeito que dá em si mesmo, premido pela angústia de viver uma vida dupla. Na questão da identidade de gênero a questão é ainda muito mais grave, pois não se trata apenas da orientação sexual (que pode ser absolutamente privada) mas tem a ver com a persona pública desse indivíduo, e a pressão social sobre ele será muito mais forte, cruel e até mordaz.

É óbvio que a cor da pele e a pobreza colocam elementos de agravamento sobre este cenário, mas acredito ser profundamente injusto com o sofrimento das pessoas brancas e de classe média dizer que sua passagem foi “fácil” ou “tranquila”. Não é, e basta conversar 15 minutos com alguém que passou por este processo para ver o quanto ele pode ser doloroso e desafiante.

Se a visibilidade trans pode nos oferecer alguma lição que seja esta: não participe de competições sobre quem é a maior vítima, separando o transexual branco, do preto, do classe média, do milionário e do pobre. Todos enfrentarão uma sociedade preconceituosa e cruel. Nenhum deles estará livre disso, mesmo que alguns tenham preconceitos que se somam e se intensificam. Todavia, o acolhimento deverá ser para todos, inobstante o grau objetivo de sofrimento que nós, erradamente, arbitramos.

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