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O Bem e o Mal

Em toda a minha infância o tema da segunda guerra mundial foi onipresente. Na verdade, entre o começo da guerra na Europa (com a “blitzkrieg” de Adolf Hitler na Polônia) e o meu nascimento existe um espaço tão pequeno quanto o dia de hoje e a criação do Facebook. Havia um claro sentimento de que a guerra era um assunto recente, ainda presente no cotidiano de cada um de nós. Sim, eu sou um “boomer” e minha vida de criança foi marcada pela grande guerra. O meu vizinho do apartamento de baixo se chamava “seu Scherer”, um descendente de alemães que havia lutado na Força Expedicionária Brasileira e que sentava em uma cadeira na calçada sem camisa e adorava explicar aos vizinhos como adquiriu nos campos da Itália a vistosa cicatriz que ostentava na barriga. Havia conversas, histórias, rádio novelas, gibis, livros e na nascente teledifusão surgiram os grande filmes épicos sobre o conflito na Europa, África e Ásia

Naquela época surgiram inúmeras produções de Hollywood exaltando o heroísmo dos soldados americanos. A ideia hegemônica era de que, graças à moral americana, aos seus bons princípios, à sua bondade e à sua incomparável coragem, o mundo havia sido salvo dos nazistas. Hoje sabemos da falsidade dessa perspectiva: a vitória das forças soviéticas iniciada na batalha de Stalingrado garantiu a derrota dos nazistas da Europa, mas ao custo de 7.5 milhões de soldados mortos na guerra, e milhões de judeus russos mortos pelas forças do Führer. Os americanos perderam por volta de 500 mil soldados. De qualquer forma, a máquina de propaganda americana, em especial pelo cinema e pela TV que surgia no Brasil, colocaram os americanos como os “donos” da vitória, os grandes protagonistas, os heróis da liberdade contra a ameaça nazista. Na minha infância havia um programa de TV chamado “Combate“, estrelado por Vic Morrow, mostrando a realidade da guerra na perspectiva de um grupamento de soldados americanos em solo alemão, mas eu não podia assistir porque era muito “violento”. Ao lado disso havia “Guerra, Sombra e Água Fresca“, com Bob Crane, uma comédia que tratava os americanos como líderes de um grupo diversificado de prisioneiros de guerra (que agiam como espiões), e tratava os alemães como tolos e estúpidos. Esse era muito engraçado e eu podia ver, mas é interessante ver como se estabeleciam os clichês dos soldados europeus. Hoje, a Europa se comporta como aqueles soldados, obedecendo as ordem do líder americano. Também é curioso ver como ambos protagonistas dessas séries morreram de forma súbita e violenta.

Só muito mais tarde eu tive a oportunidade de ler sobre a história que precedeu a segunda guerra mundial e os contextos geopolíticos nos quais ela ocorreu. Durante anos essa guerra era ensinada para as pessoas comuns como uma luta do bem contra o mal, ou seja, um embate moral. Essa perspectiva simplificava o debate: como você poderia escutar a outra parte, se eles representam o “mal”, e nós somos o “bem”? Quando fui ler sobre a paixão de Hitler pelo sistema “Jim Crow” dos Estados Unidos, e o quanto ele desejava que a Alemanha adotasse esse mesmo tipo de segregação, as coisas ficaram um pouco mais complicadas de entender. Afinal, quem eram os racistas nessa guerra? Quando li as ações de Winston Churchill na Índia – em especial sua conduta na Grande Fome de Bengala – e suas manifestações explícitas do mais asqueroso racismo, ficou difícil estabelecer uma barreira moral entre os alemães e seus inimigos na guerra. Afinal, era mesmo uma luta entre a luz e a sombra? Ou havia um choque meramente econômico e geopolítico entre as nações imperialistas sendo as questões de ordem moral usadas somente para ludibriar as massas, criando uma falsa imagem do “bem contra o mal”?

Hoje nós testemunhamos o apoio irrestrito dos Estados Unidos – nosso antigo paradigma de honra e coragem – ao genocídio palestino em Gaza. Mais do que apenas apoiadores do holocausto que lá ocorre – com mais de 186 mil mortes até agora, 10% da população – eles oferecem aos sionistas todo o suporte de armas, de logística e de armamentos, sem falar do respaldo político aos governantes do país, a mesma nação que deseja “apagar do mapa” a população palestina, tratada por Yoav Galant, ministro da defesa de Israel, como “animais humanos”. Em verdade, os grandes apoiadores europeus de Israel nessa guerra são França, Alemanha, Itália e Reino Unidos, países que abdicaram de sua autonomia e funcionam como satélites do poder imperialista americano. Mais do que nunca, as análises morais caem por terra. O mesmo país “democrático” que atacava o “Mal”, materializado no nazismo, agora apoia o primeiro genocídio televisionado do planeta, garantindo a continuação da guerra e dando ajuda à parte agressora. Ou seja, os nazistas de hoje estão do lado do Imperialismo. Talvez o grande erro do Führer tenha sido não seduzir os americanos nos anos 30 do século passado para lutarem do seu lado. Tivessem feito isso e talvez hoje estivéssemos falando alemão.

Isso nos mostra que a chaga do nazismo, com sua brutalidade racista, excludente e supremacista nunca foi exterminada e se mantém em outras latitudes, outros interesses e falando outros idiomas. Na liderança está o sionismo, implantado em um país caracteristicamente supremacista, uma colônia europeia em solo secularmente árabe, levando a cabo uma etnocracia (assim chamado por autoridades como Alexander Kedar, Shlomo Sand, Oren Yiftachel, Asaad Ghanem, Haim Yakobi, Nur Masalha e Hannah Naveh) assassina e terrorista, aplicando um apartheid brutal e desumano, separando as pessoas por muros obscenos mas que recebe do Império as bênçãos e o auxílio necessário para manter uma guerra perdida. Sim, a resistência não poderá ser vencida pois todos sabemos que os seus combatentes se multiplicam a cada massacre e assim se torna indestrutível e o sonho de uma Palestina livre para os palestinos de todas as crenças é imortal.

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Mentiras

Afinal, o que é uma mentira?

O conhecido aforismo de Friedrich Nietzsche, em um fragmento de 1887, onde afirma que “não existem fatos, apenas interpretações”, deve ser entendido como a submissão do real ao simbólico, a ideia de que a verdade não existe como um ente absoluto e positivo e, acima de tudo, como um alerta crítico de que a verdade não é definitiva, muito menos imutável, e que o que consideramos verdade hoje merece ser criticado e sofrer o devido contraditório. Muitas vezes estas verdades sólidas se desmancham no ar, necessitando para isso apenas a passagem do tempo. Afinal, o que é uma mentira? Se houvesse uma Verdade Absoluta – e portanto mentiras definitivas – quem decide sua essência e como ela se configura? Quem são os vestais, acima do bem e do mal, que podem objetivamente decidir o que é verdadeiro e o que não é?

É disso que se trata agora, quando tantos afirmam serem favoráveis à censura para barrar as mentiras disseminadas pelas redes sociais. Quanto mais você retira essa decisão do povo e a coloca sob o escrutínio das instituições do Estado burguês – um sistema de poder criado para calar as ambições populares – mais a esquerda será penalizada, mesmo que circunstancialmente a extrema direita possa estar sofrendo seu ataque.

A censura sempre vai favorecer os poderosos, e negar isso significa não compreender a origem e a estrutura da própria democracia liberal. Estimular a censura (mesmo quando maquiada de democracia e até quando bem intencionada) é uma estratégia conservadora, que fatalmente acaba se voltando contra as aspirações do povo. A lei anti terror, a lei da ficha limpa, a lei contra fake News…. todas elas foram aparentemente bem intencionadas e chegaram até ser usadas para punir membros da direita, mas todas – mais cedo ou mais tarde – acabaram sendo usadas para atacar as forças políticas populares e de esquerda. Lula, por exemplo, foi atacado, punido e impedido de concorrer às eleições de 2018 pela lei da ficha limpa. Poderíamos pensar que, talvez, desde o início ela foi pensada para, eventualmente, ser usada contra a esquerda em uma situação limite – como a volta de um líder popular ao governo do Brasil.

Não podemos ser vítimas dessa farsa… mais uma vez.

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Esquerda compra…

Esses grupos que apostam no sectarismo sempre acabam produzindo o fortalecimento de sentimentos de exclusão. O “Esquerda compra de Esquerda” começou com a ideia de união de gente de esquerda para o consumo de serviços, mas muito rapidamente se tornou um grupo com os mesmos vícios dos grupos marcadamente sectários. Tornou-se um grupo de viés identitário e com uma visão moralista da sociedade, onde a esquerda repete os mesmos preconceitos que vemos nos grupos bolsonaristas.

No fim sobra uma ação de marketing que não ajuda a consolidação de uma visão holística da sociedade. Apregoa uma divisão entre “o bem e o mal”, não toca no ponto nevrálgico da luta de classes e cria uma separação artificial entre “nós e eles”, imaginando haver um muro ético a nos separar. Não passa de pura ilusão.

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Religiões e conflitos

As religiões unificam perspectivas de mundo e de produzem forte fator de coesão e identidade. São modelos de compreensão da realidade sobre aspectos onde a ciência não tem acesso, como o sentido da vida e os significados transcendentais. Acima de tudo, uma religião não é algo que produz ideias e conceitos, mas onde colocamos nossa visão de mundo e nossas perspectivas. Religião é onde colocamos algo de nós, e não de onde retiramos. Culpar as religiões pelas mazelas do mundo – como há muito fazem os new-atheists – é uma tarefa simples, mas para isso é preciso ignorar o sentido último das religiões negando o fato de que de qualquer religião se retira o que se quer, basta procurar, interpretar e divulgar fora do contexto histórico. .

Durante anos testemunhei a tentativa de criar uma visão demeritória das religiões, mas aplicando um viés distorcido da real essência delas. No atual conflito entre os colonizadores sionistas e o povo palestino no oriente médio ainda é comum ver analistas tratando os bombardeios como uma disputa entre “judeus x muçulmanos”, como se a questão não fosse o colonialismo brutal, os massacres, o apartheid e a limpeza étnica, mas sim um choque de crenças religiosas. Usando este mesmo critério dissimulador as Cruzadas perdem todo o sentido comercial e objetivo, pela conquista de um ponto geopolítico essencial para o comércio primitivo no Mediterrâneo, para se tornarem apenas incursões militares movidas pela crenças distintas. Aliás, o mesmo truque foi usado para chamar a guerra de libertação da Irlanda como “católicos x protestantes”, apagando os séculos de colonialismo britânico na ilha.

Colocar a culpa nas religiões como elementos divisionistas na história das sociedades é um erro, mas que ainda faz muito sucesso, inclusive entre intelectuais. A religião não é o bem e muito menos o mal. Uma religião não é mais do que um conjunto de símbolos e metáforas para expressar o inexpressável – assim como o mito o é para aquilo para o qual não há verbo. As religiões são construções puramente humanas que se expressam como um idioma, uma língua a conectar através do mesmo poço a água que corre por debaixo da terra. Os diversos poços criados para saciar nossa sede por respostas são as infinitas religiões, mas a água da fé – aqui entendida como a busca por respostas – é a mesma.

É possível então argumentar – contrapondo-se à onda dos novos ateus – que as religiões são o espelho das aspirações, desejos e valores humanos, e não a fonte de onde surgem. As religiões, em verdade, são criadas exatamente para dar conta dessa necessidade, e desta maneira nós não seguimos as religiões; são elas que nos seguem. Para entender melhor o que está no âmago das religiões existem inúmeros estudiosos – como Reza Aslan – que procuram oferecer às religiões o lugar que elas merecem.

Não existe dúvida que católicos e os protestantes não guerrearam por causa de religião na Irlanda e nem mesmo na Guerra dos Cem anos, mas por questões políticas, dinheiro, comércio, influências regionais, etc., pela mesma razão que os judeus e muçulmanos lutam até hoje por terra na Palestina, e não por discordâncias em suas escrituras. Em verdade católicos e protestantes da Irlanda lutaram durante muitos anos pela independência da Irlanda tendo de um lado os nacionalistas católicos e do outro os ingleses protestantes invasores, da mesma forma que as guerras pela Palestina são travadas entre colonos europeus e a população nativa. As religiões são falsamente colocadas como origem dos conflitos, mas elas são falsamente colocadas nesta posição apenas para deslocar o debate das verdadeiras questões.

Para as pessoas que carecem de uma compreensão mais profunda das causas dos conflitos é muito fácil moralizar as guerras, e para isso usamos artifícios como chamar de “infiéis”, “corruptos”, “fanáticos” ou “terroristas” todos os nossos adversários, desreconhecendo suas razões e desumanizando seus combatentes. Para entender melhor veja como as elites financeiras no mundo inteiro – e agora de forma bem marcante no Brasil – colocam a corrupção como seu cavalo de batalha, mas os governos que elas administram são tão ou mais corruptos do que os governos que combatiam, e para isso os adjetivavam de forma derrogatória todos os adversários, chamando-os de “corruptos“. Então por quê? Ora, porque os liberais são fixados na questão moral (como a religião), pois que ela desvia a atenção das pessoas e produz identificação com um dos lados, mas afasta as razões verdadeiras do radar de cada um de nós. No caso da Palestina o colonialismo brutal, o genocídio, o apartheid, os crimes de guerra, etc. Mas todo aquele que se contrapõe à barbárie sionista agora pode ser chamado de “apoiador de terroristas“.

Veja mais sobre o tema aqui, na entrevista com Karen Armstrong.

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Alteridade

Meus netos dividem o mundo entre o “bem”e o “mal”. Hoje em dia o mais velho pergunta de uma forma um pouco diferente: “esse cara é chato?”, que significa basicamente se ele representa as forças do Mal. O que ele pede quando começa o filme é que digamos a ele “em que lado do espectro eu o coloco?“. Para eles os personagens são benéficos ou maléficos. Para aqueles que representam o bem, só a felicidade poderá ser o prêmio a receber. Para os “chatos”, estes são merecedores dos piores castigos. Tipo o Gastón cair do penhasco na disputa por Belle ou como a “morte” trágica de Ernesto de la Cruz em “Coco”. No merci.

Mas eles tem 7 e 4 anos, e não conseguem vislumbrar matizes. Para eles a essência do sujeito é vil ou luminosa. O mais velho agora começa a entender que as pessoas são complexas; as vezes são más mas tem coisas boas dentro de si. Isso é desafiador para a cabecinha dele, mas faz parte do aprendizado da vida afastar-se das certezas e mergulhar corajosamente nas dúvidas.

Crescemos com essa perspectiva, pois libertar-se dessa visão de mundo é muito complicado. “Como ele pode defender o oposto do que defendo e mesmo assim encontrar nele qualidades morais?”. “Como posso enxergar virtudes em alguém tão diferente de mim quanto é possível entre dois seres?

O mais fácil é enclausurar-se no maniqueísmo e desreconhecer as semelhanças que nos unem a todos os outros seres humanos, mesmo que as circunstâncias e os contextos nos coloquem em posições políticas e sociais antípodas. O horror que nos faz odiar os diferentes é ver que nossas ações são quase iguais àquelas que tanto criticamos nos outros.

Meu neto mais velho diz: “e esse aí vovô, é chato ou é do bem?” e eu só de sacanagem respondo: “São que nem a gente, um pouco bons e um pouco maus”. Ainda acho que é de cedo que se planta a semente da alteridade

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