Há alguns dias foram mostradas as imagens de mais uma agressão contra a mulher. No caso uma advogada espancada covardemente por um jovem de 24 anos, filho de um politico influente de Goiás. O caso já corre em juízo e poucas dúvidas há de que ele deve ser condenado pelas agressões. Entretanto, sempre me impressiona o grito de algumas pessoas exigindo a prisão do infrator. “Como ainda não foi preso?”, perguntam espantadas. “Como podem deixar solto esse sujeito?”.
Prender? Como assim? Sem
trânsito em julgado? Com qual justificativa? Que sentimento é esse que
nos leva a exaltar a prisão de todo mundo? Qual o sentido de encarcerar
diante de qualquer crime? O que realmente nos move para exigir a
detenção diante de um delito? Que justiça é essa cuja ideologia – e
aparentemente a única função que nos interessa – é encarcerar cidadãos
diante de acusações, até mesmo antes de os envolvidos serem ouvidos?
Há poucos meses foi pedida a prisão de um doente mental – que perdeu
metade do cérebro num acidente anos atrás – por se masturbar em um
coletivo. Que sentimento bizarro de vingança é esse de tal amplitude que
nos leva a gozar (perdão…) com a desgraça de um descapacitado
psiquiátrico sendo enjaulado? Isso de alguma forma diminuiria o
constrangimento de suas vítimas?
Para mim a questão continua sendo a nossa negativa em olhar para o agressor. Queremos mais justiciamentos do que a prevenção das tragédias. É mais uma faceta da lógica punitivista, tão popular quanto inútil.
Não é suficiente condená-lo e execrá-lo publicamente.
Os homens (e até às mulheres) abusadores precisam ser entendidos,
compreendidos e estudados. O agressor é parte ativa e um sintoma da
revolução social insidiosa e silenciosa que acompanha a perda dos papéis
masculinos clássicos. Temos agora diante de nós a necessidade de
reacomodação da masculinidade.
Os homens sentem-se ameaçados e perdidos e a violência se apresenta para alguns como a única possibilidade. Para resolver a epidemia precisamos entrar na mente do criminoso e entender o que o motiva.
O texto abaixo, do juiz Luís Carlos Valois, lança um pouco de luz sobre as trevas punitivistas que se abatem sobre nós.
JUSTIÇA
(Texto publicado em Carta Capital)
Você, sim você, que está lendo estas palavras no computador, no
celular, neste momento, pense em uma hipótese comigo. Se você
encontrasse um policial, um deputado, ou uma autoridade qualquer, e essa
autoridade, sem motivo algum, por uma paranoia momentânea, uma crise de
autoritarismo, porque talvez não tivesse ido com a sua cara, acusasse
você de qualquer coisa, estupro, o roubo da semana passada, porte de
drogas – de uma droga que a própria autoridade iria providenciar – e
algemasse você, levasse você preso para ser exposto no jornal das oito,
imagine isso, imagine o que aconteceria.
Imaginou, pensou na
hipótese? Agora continuemos, o que você acha que aconteceria com você?
Nada, continuaria preso, porque todo mundo, inclusive você, quando vê
uma pessoa algemada na televisão, no jornal, nas redes sociais, não
espera processo, não espera pronunciamento da justiça, e aponta logo o
dedo: bandido, deve ficar preso.
Do jeito que a coisa anda, com
todo mundo aplaudindo quando uma pessoa é presa, elogiando a justiça
quando uma pessoa é encarcerada, mas xingando a mesma justiça quando uma
pessoa é solta, em pouco tempo não vai mais sobrar ninguém para
aplaudir, estaremos todos presos.
Essa necessidade de ver pessoas
presas nasce sim do sentimento de impunidade, do sofrimento de qualquer
um que já teve o celular roubado, que paga impostos altíssimos sem ver
nenhum benefício, que vê o playboy passar em uma Mercedes sem nunca ter
trabalhado, é um sentimento bem abstrato e amplo, um espectro que paira
sobre toda a sociedade.
Uma sociedade sofrida que precisa ver
pessoas sofrendo para amenizar o próprio sofrimento, independentemente
de quem sofra. Não importa se a pessoa presa não foi a que furtou o meu
celular, se alguém está algemado na televisão, se alguém está sofrendo
porque cometeu um crime, que bom, alguém está pagando, alguém está
sofrendo mais do que eu, um alívio. Nessa sociedade de troca, sempre
quando alguém perde, a sensação dos outros é de ganho, uma imolação,
como toda a imolação, para diminuir a dor geral.
Não é de se
admirar o prestígio que goza a polícia nos dias de hoje, porque é ela
quem normalmente prende. Todos querem ser polícia para prender também,
Ministério Público e Judiciário prendem para aparecer bem para a opinião
pública e assim ninguém falar de seus altos salários, auxílios, carros
oficiais, etc. A prisão de qualquer pessoa causa um êxtase, é a catarse
que possibilita tudo continuar como sempre foi.
O interessante é
que o prestígio da polícia, como quase todo mal, só serve para os
outros. Temos uma sociedade que não gosta de ir à delegacia, tem horror
de ser intimada, implora para não ter que prestar testemunho e muitas
vezes sequer faz um boletim de ocorrência quando é vítima de um crime,
em suma, uma sociedade que não acredita na polícia para ela mesma.
Mas quando é o outro, uma outra pessoa, um desconhecido, que está na
delegacia, preso, acusado de um crime, a polícia é o órgão mais capaz e
imune a erros do mundo. A contradição é a imagem perfeita de uma
sociedade individualista, egoísta, que sofre com essa dor tão dispersa,
mas goza quando essa dor é individualizada em um desconhecido qualquer.
Prender é o verbo. Soltar a ofensa. E nessa fixação, morre a Justiça,
que é diálogo, que é sempre a possibilidade, a prioridade mesmo, da
liberdade. Doente uma sociedade que fica feliz quando ocorre uma prisão,
que não passa da demonstração do seu próprio fracasso como sociedade
humana.
Volto a me dirigir a você. Então, não importa se você é
de direita ou de esquerda, prender e soltar já se misturou com o
sentimento moral de todos nós, foi preso, é bandido. E chamar alguém de
bandido é o sinal, a autorização para se tirar qualquer dignidade,
qualquer aspecto de cidadania, daquela pessoa presa.
O limite da
cidadania está nas correntes e naquelas pequenas argolas com fechaduras
que se chamam algemas, esvaziando a política, submetida à polícia, e,
quando você for preso, por qualquer motivo, não vai adiantar gritar por
Justiça, pois a que temos, a justiça atual, já foi feita naquele exato
momento das algemas, que terão algemado também a sua voz, a sua
dignidade. Você não será mais você.
Luís Carlos Valois é Juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo – Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.