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Vidas comuns

Nos meus sonhos eu frequentemente encontro desafetos que passaram na minha vida. Estão lá, em situações banais e corriqueiras, em lugares onde os encontrei durante a vida: salas de conferências, cafés, restaurantes e até no assento próximo ao meu em um avião. Vejo-os de longe, agindo como sempre agiram, conversando com amigos em comum. Apesar do ressentimento que esse encontro onírico comprova, eu jamais brigo ou discuto com eles nestas ocasiões.

Na verdade eu sinto vergonha ao perceber que, quando se analisam os fatos à distância e com alguma isenção, não há real razão para brigar indefinidamente com alguém, por piores que tenham sido os desacertos do passado. Este tipo de rancor apenas demonstra a incapacidade de enxergar o mundo pelos olhos alheios. No sonho minha reação é evitar o contato, e interpreto essa ação como uma forma de não me defrontar com a dura realidade de suas vidas comuns, contraditórias, desimportantes, miseravelmente humanas e tão iguais à minha. 

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O Menino

Sim, eu tenho pena da desgraça destes personagens para quem um fosso enorme se abre sob os pés, de onde se podem ver as labaredas do Hades. Não me sinto bem associado à enorme energia destrutiva que se forma como resposta à condenação de seus atos. Talvez seja uma reminiscência de outras tantas fogueiras que presenciei, onde sempre imperam os sentimentos mais primitivos.

Esclareço apenas que sofrer por condescendência e empatia não significa aceitar ou concordar, muito menos absolver. Todavia, quando vejo o peso de tanto ressentimento acumulado recaindo sobre estas cabeças eu me associo à tragédia destes que caem. Digo também que olhar desta forma não é uma escolha racional, é um impulso. Também não significa que não devam pagar por seus delitos.

Existe uma circunstância que me é inevitável nestas passagens: eu sempre penso que poderia ser um filho meu. Tenho filhos da idade destes pobres personagens que agora se encaminham ao calvário. Mas já vi mães chorando no pronto-socorro a morte de seu filho bandido. Elas diziam “Ele sempre foi um bom menino. Foram as companhias e a maldita da droga”. Como não entender que, para uma mãe, este filho – por mais degenerado que seja – será sempre seu guri, que

“Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar”

Eu prefiro não cultuar o ódio por essas figuras, todas elas. Quando vejo se disseminar o gozo da vingança sinto um gosto de fel, que sempre me assusta e angustia.

Eu já fui alvo de ataques desse tipo, em especial na internet, por ter opiniões que ofendiam algumas pessoas. Vi gente fazendo discursos enormes carregados de ódio e que sequer me conheciam. Percebi que nestes momentos eu era colocado em um lugar e ocupava um posto. Não exatamente o que eu era, mas o que queriam que eu fosse. Nessa topografia eu podia ser atacado sem dó ou piedade. Eu era a “coisa” a ser destruída, e para isso não havia problema algum em me arrancar a humanidade.

A última vez que expressei meu sentimento com esses linchamentos fui vítima – que surpresa – de um pequeno linchamento por parte de uma antiga companheira. Defender que estas pessoas em desgraça sejam tratadas com alguma humanidade soa ofensivo para quem já sentiu algumas das dores que eles disseminam. Mas, para mim, passada a raiva inicial – quando me esforço por nada dizer – me assombra a imagem de um menino, sua face surpresa diante do mundo, suas dúvidas, seus projetos, suas paixões e seus sonhos. Ao lado dele um homem de túnica branca e barba sobre a pele escura, o dramaturgo cartaginês Publius Terentius Afer, o africano. Ele me olha e balbucia palavras que acompanho de memória. “Homo sum: humani nihil a me alienum puto”.

“Sou humano e nada do que é humano me é estranho”. Aquele menino poderia ser eu, se o meu caminho tivesse o mesmo rumo que o dele.

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Ainda sobre o perdão

É preciso estar atento ao uso errado e ideológico do ato de perdoar. O perdão só será reacionário se forçar a confusão conceitual oportunista entre “perdão” e “absolvição”, que são processos de mobilização afetiva completamente diferentes.

Quem diz “eu lhe perdoo” está dizendo “eu entendo suas motivações”, mas não está em hipótese alguma querendo dizer “eu absolvo seus erros”. Perdoar é enxergar-se no sujeito que erra, assim humanizando-o. Perdoar é um ato pessoal e independe do outro, tão solitário que pode ser privado e silencioso. É uma forma de oferecer paz ao seu sofrimento, mas não se propõe a cristalizar erros e injustiças.

Roberto Schiffino, “Venti cupi del sud” (Ventos sombrios do sul), ed. Távora, pág 135

Roberto Schiffino nasceu em Savona, Itália em 1905, filho de uma rica família de comerciantes de Gênova. Estudou na Universidade de Milano tendo se formado em artes em 1930. Serviu no exército italiano durante a guerra e depois do seu fim com a deposição de Mussolini ingressou na Escola de Filosofia desta mesma Universidade. Escreveu muitos artigos sobre arte e filosofia, e mais dois livros além de “Venti cupi del sud”: “Dolore, seduzione e martirio a Michelangelo” de 1957 e “Niente dal niente” de 1965 sobre o sintoma depressivo como condutor das narrativas literárias. Morreu em agosto de 1985 em Roma. Foi casado com a arquiteta Hentiquetta D´Alloro e teve duas filhas, Sophia e Isabella.

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Exercícios Natalinos

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Ok, então está combinado. Feliz Natal, abraços, tudo de bom, lembranças pra família.

Talvez. Esse Natal eu fiquei pensando em exercícios necessários. Pensei em duas coisas. Na primeira, lembrei do meu pai me perguntando a respeito do falsificacionismo. Dizia ele: “Pense nas suas convicções mais sérias e profundas, nas coisas em que você acredita com mais fervor. Pense, por exemplo, no poder da mulher de gestar e parir com dignidade, ou na sobrevivência da alma após a falência do invólucro carnal. Pense nessas “verdades” profundamente. Agora, depois de regozijar-se com o conforto que tais certezas oferecem, imagine que elas são em verdade falsas e que há como comprovar, basta que você escute os argumentos que eu lhe oferecerei em contrário. Responda com sinceridade: você os escutaria?

Será que eu os receberia como um contraponto válido ao meu modo especial de ver tais fenômenos ou fecharia meus ouvidos às coisas que não desejo escutar? Ficaria concentrado e confortado em minhas certezas ou aceitaria a relatividade das verdades que acalento? Teria a coragem de encarar a possibilidade de estar errado, ou me iludiria eternamente com a confiança em fatos que não suportam uma análise mais profunda?

A necessidade de questionar minhas certezas sempre me perseguiu, desde que escutei Raul Seixas cantando “Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo“. Se aquilo que acredito não pode ser questionado é por que não passa de um dogma, e os dogmas cristalizam o pensamento e congelam a criatividade. O livre pensar não aceita a petrificação dos conceitos, pois a dinâmica do conhecimento não permite paradas. Mesmo causando dor e muito medo, questionar seus próprios valores e crenças é tão essencial quanto crescer ou respirar.

Se você acredita demais em algo, que tal questionar suas crenças mais intensas? Quem sabe não seja mais honesto relativizá-las e encará-las como o que verdadeiramente são: partes de um mosaico infinito, pedaços passageiros de um caleidoscópio que muda a cada movimento minúsculo do conhecimento, fragmentos de algo indizível e desconhecido chamado “verdade”.

A segunda coisa que pensei me serve de ideia para o segundo exercício. Então é isso aí, Feliz Natal para você e sua família, felicidades e boa sorte, um ano cheio de realizações e que o menino Jesus possa iluminar sua vida, e bla, blá, blá… Tudo bem, não há nada de mal em desejar o melhor para os que nos amam e nos querem bem. Mas e os outros? O que fazer com aqueles que nos magoaram e feriram? O que desejar a eles nesse período? Nada? Desejar o “mal”? Ignorar? Maldizer?

Ok, este é o exercício. Pense nas pessoas que lhe fizeram mal, que falaram mal de você, que lhe agrediram, que ignoraram, que caluniaram ou perseguiram, que se ocuparam de denegrir a sua imagem perante os outros, que mentiram para tirar vantagens e com isso te prejudicaram. Feche os olhos e pense nessas pessoas.

De novo. Olhe no rosto dele(s). Olhe profundamente nos seus olhos. Imagine cada detalhe de sua face.

Pronto…

Agora imagine que ele é seu filho ou sua filha. Que por mais que tenha feito coisas erradas você jamais deixará de perdoar, pois que suas almas foram conectadas até antes mesmo dela nascer. Olhe para seu inimigo como se ele fosse da sua carne, tão próximo que você pode até sentir o que ele sente.

Pensou? Percebeu que, assim tornados próximos, os inimigos se humanizam? Desta maneira fica mais fácil entender a sua mágoa e o que os fez atacar e agredir. Quem sabe entender e perdoar seus desafetos seja o maior presente de Natal possível de ser oferecido.

Podemos tentar, ao menos…

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