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Dos Olhos para Dentro

Muito vi no consultório, em especial atendendo pacientes carentes na Liga Homeopática, mulheres que me descreviam situações de maus tratos, grosseria, abuso financeiro e até agressões físicas no ambiente doméstico. Diante de histórias de colorido trágico a tentação era sempre se posicionar ao lado da suposta (porque até uma construção fantasmática seria possível) vítima e orientá-la a romper esse laço. Quem não se deixaria tocar pela injustiça transformada em violência e abuso? E por certo que avancei o sinal algumas vezes embarcando junto com elas em sua narrativa de dor, angústia, mágoa e ressentimento.

Entretanto, com o tempo percebi que o máximo a fazer é oferecer ouvidos compassivos, uma atenção respeitosa e encaminhá-las para uma instância de proteção, quando necessário. Tentar orientar, aconselhar, interpretar e desbaratar os laços contraditórios e caóticos que amarram o desejo é uma tarefa que não me cabia. Nessas horas eu olhava para a face sofrida dessas mulheres e pensava no infinito que se encerrava de suas retinas para dentro, o mundo de cores, dores, alegrias, aflições, gozos e tragédias que todas carregam. Qualquer conselho seria um desrespeito com sua história, sua subjetividade e sua unicidade.

Cada um sabe onde seu sapato aperta, cada um conhece seu desejo, ou percebe para onde ele aponta. Ou, com o diria Caetano Veloso…

“Eu não sou cachorro não
A gente não sabe o lugar certo
onde colocar o desejo
Todo beijo, todo medo,
todo corpo em movimento
está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto, todo pranto,
todo manto está cheio de inferno e céu
O que fazer com o Deus nos deu
O que foi que nos aconteceu
Quando a gente volta o rosto
para o céu e diz
olhos nos olhos da imensidão
Eu não sou cachorro não….”

(Pecado original) 

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Médicos

Eu acho que, inobstante o avanço da ciência e da tecnologia, não há como os médicos tornarem-se obsoletos e trocados por equipamentos, por mais sofisticados que eles se tornem. Por outro lado, estes médicos que consideramos “top de linha” – que em verdade são bons ou excelentes técnicos – poderão ser substituídos por robôs ou terão suas ações realizada por engenheiros, sejam eles mecânicos ou geneticistas.

Além disso, imaginem a transformação radical que vai ocorrer na prática médica quando políticos e sanitaristas resolverem os problemas produzidos na saúde pública pela pobreza, a fome, a competitividade doentia, as guerras, a exploração do trabalho, os acidentes evitáveis, o ódio de classe, o racismo e a xenofobia. O que será da medicina quando o capitalismo for superado e não houver mais ódio e desprezo de classe? Quantas vezes atendi pacientes cujo principal diagnóstico era “síndrome da estrutura social perversa”

Como eu costumo dizer, bastaria que a Medicina fosse praticada com plena observância das evidências científicas para que sua prática se tornasse totalmente irreconhecível daquela que se aplica hoje. Imagine isso combinado com um mundo de paz, com a superação da sociedade de classes. A medicina se tornaria um exercício de pura conexão pela palavra. Por esta razão, o médico que produz uma ponte afetiva e profunda com seu paciente jamais será substituído por máquinas, pois a ligação que ele propõe é de alma para alma.

Isso me lembra a forma como os Navajos classificam seu curadores. Longe de romantizar as populações nativas, eu acho apenas que a experiência da medicina num modelo pré-capitalista sempre tem algo a nos ensinar.

Para estes nativos existem 3 níveis de curadores, numa carreira que prolonga por uma vida inteira. O primeiro nível comanda rituais e utiliza algumas ervas curativas. O segundo nível se especializa no uso das múltiplas ervas e substâncias para as diversas doenças catalogadas por sua cultura. Já o último nível, aquele que se alcança depois de ter passado uma vida inteira na função de curador, se ocupa tão somente em oferecer… conselhos.

Assim, a função do curador segue na direção da sutileza, partindo das artes mais densas dos corpos – pessoal e social – e chegando na palavra, a quintessência da cura. Sim, é possível substituir as ações mecânicas dos médicos, mas sempre haverá a necessidade de conectar-se com o suposto saber de alguém que instrumentaliza sua fraternidade no sentido da compaixão e da cura.

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Volúpia da escrita

As vezes escrevo coisas duras porque me deixo levar pela volúpia da escrita. Enquanto bato nas letras escuto, no silêncio que separa as palavras, aquela voz conhecida que me diz: “Não é o momento“. Paro e olho para a tela, mas volto a maltratar o teclado e resisto. Em desespero ela volta a dizer “Estar certo não é o suficiente, pois a verdade não tem valor por si; ela precisa promover o bem“.

Reluto, mas sou de súbito tomado por um sentimento de dever, assaltado pelo medo de me calar quando deveria estar puxando as palavras de ordem. “Vai se acovardar?“, me pergunto. Consigo novo alento e termino a derradeira frase. No momento que minha mão se aproxima da tecla “enter” sinto um frio a percorrer a espinha, a sensação de culpa antecipada pela possibilidade de produzir dor e angústia com a ponta afiada de uma verdade. Leio de novo o pequeno parágrafo. Tento conversar com as ideias que eu mesmo coloquei à minha frente. Sou soterrado pela dúvida. A voz novamente me fala “Você consegue“, diz ela. “Sei que é capaz“.

Respiro fundo e apago tudo. Procuro fazer de uma vez só, para não cair na tentação de guardar um trecho na memória e voltar a escrever mais tarde.

Pronto, apagado. Um karma a menos para resgatar.

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Aniversário

Ric 56

10 razões para se deprimir quando chegar aos 56 anos:

1 – Quando finalmente chega a moda do “coque” para homens já não é mais possível aderir.
2 – Agora que tenho umas economias para comprar uma calça Saruel descubro que o Neymar Jr já abandonou o estilo.
3 – Ninguém me chama de “moço” para pedir uma informação.
4 – Eu me sinto muito cafona quando uso a expressão “cafona”.
5 – Sou do tempo em que se enfrentava a polícia por ser CONTRA a intervenção militar.
6 – Quando uma moça sorri para mim imediatamente verifico se o fecho da calça está aberto.
7 – Meu papo com os colegas de turma é sobre artrite e aposentadoria.
8 – As pessoas ficam espantadas quando conto que meus pais estão vivos e saudáveis.
9 – Tenho que escutar da minha mulher e da minha filha que “essa roupa não é para a tua idade”
10 – Não há dia que eu não lembre que sou da próxima geração que vai… e eu sempre recordo a música que meu pai ouvia:


“Se a morte vier
Hoje te buscar
Como estás, como estás
Com teu Deus”…

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