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Karen

Eu bem sei como funciona o “entitlement”, um fenômeno produzido na última década como um “efeito colateral” do movimento feminista. Este tipo de comportamento surge em mulheres de classe média, normalmente brancas, que se acham no direito de fiscalizar e regular o comportamento alheio. O empoderamento inédito das mulheres nas últimas décadas fez despertar uma pequena minoria que acredita que sua condição de mulher lhes garante total impunidade. Existem muito menos homens nessa condição porque os meninos, desde cedo, apreendem que, se você engrossar, pode levar um tabefe e as coisas saírem do controle. Já as Karens acham que são intocáveis, podem fazer o que bem entendem, podem inclusive bater nas pessoas como vemos todos os dias.

Deixo claro que as mulheres não são Karens,; esse comportamento não fala da essência da mulher, assim como ser violento não é da essência do homem. Na minha experiência as mulheres são até muito mais ponderadas, na média, do que os homens quando estão diante de conflitos – a maternidade e as disputas entre os filhos ensinam isso. As Karens são uma franja minúscula – mas escandalosa – de pessoas embriagadas por uma percepção ilusória de superioridade moral. Elas se assentam sobre o poder mítico do “corpo intocável” e um supremacismo feminino para abusar de uma pretensa autoridade.

O antídoto ao se deparar com uma Karen é pegar a energia negativa delas e a transformar em afeto. Minha mulher, Zeza, sabe muito bem como agir assim e por isso reconheço nela uma inteligência da qual careço. Acho isso admirável e tem a ver com a “comunicação não-violenta”. Quem sabe um dia aprendo.

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Cancelado

A primeira vez que testemunhei esse fenômeno foi há uns 10 anos ao resolver comprar um produto pela Internet quando estava nos Estados Unidos. Recebi o produto pelo correio alguns poucos dias depois da compra e ele veio com um papel onde se lia algo como: “Se o produto tiver qualquer avaria avise-nos antes de fazer sua avaliação no site. Faremos o possível para resolver a questão e estaremos à disposição para ouvir sua reclamação. Não nos avalie negativamente antes de nos dar a chance de resolver seu problema”.

Percebi, pela primeira vez, o quanto valorizavam minha opinião, minha avaliação do produto e o que achei do atendimento. Eles preferiam mandar um produto novo – sem custos!! – do que lidar com uma avaliação negativa na seção de “comentários” da página. Ficou óbvio que uma avaliação muito negativa deveria afastar centenas de potenciais compradores. Imagine olhar os comentários antes de decidir comprar e ler: “Não compre. Quebrou em uma semana e não devolveram meu dinheiro”. Não há dúvida que manter o comprador satisfeito é a política mais segura. Para alguém que passou a vida inteira sem nenhuma alternativa depois de fazer uma compra, esse empoderamento súbito da minha perspectiva como comprador pareceu um milagre, o que foi possível com a popularização das compras on line. Pois naquele singelo bilhete eu estava, em verdade, vendo as primeiras manifestações de um fenômeno tão significativo quanto novo: o surgimento do sujeito solitário que expressa sua opinião sobre produtos publicamente, mas agora com inédita relevância.

Não há dúvida que o medo do comerciante gerou uma necessidade de melhorar os produtos e os serviços. Já fiz reclamações em compras da Amazon por envio errado de produtos cujo conserto por parte dos vendedores custou mais do que o próprio produto que comprei. Ficou evidente que uma avaliação mordaz e negativa poderia causar muito estrago. E não se trata de criticar a força que a ponta consumidora acabou ganhando, longe disso. Porém, outro fato se associou a este “novo poder” garantido ao comprador: não apenas os produtos passaram a ser avaliados, mas também as pessoas. A partir de então, as figuras públicas passaram a ser vistas e tratadas como produtos que consumimos nas redes sociais. Caso elas não cumprissem nossas expectativas, poderíamos usar da nova ferramenta social chamada “cancelamento“. A partir deste novo modelo de interação social, passamos a cancelar gente “à rodo”, pelas mais diferentes razões, mas em especial pelas escolhas políticas, as posturas morais, o comportamento, as manifestações públicas, etc. “Fez o L?”, cancelado. “Votou no Bozo?” cancelado. “Separou da mulher?”, você não vale mais nada. “Talaricou?”, você está fora. “Foi acusado de algo horrendo, como abuso sexual?” então você será destruído impiedosamente, sem direito a perdão, mesmo que no futuro se prove que era tudo mentira.

Nesse novo modelo, o trabalho das pessoas, sejam elas jogadores de futebol, cantores, pensadores, jornalistas, médicos, etc. passou a ser secundário à persona pública do sujeito. O que você faz é menos relevante do que o que parece ser. Hoje inclusive existem “gerentes de imagem”, funcionários que controlam tudo o que o sujeito pode dizer, de que lado deve se postar, se deve apoiar este ou aquele candidato, o que deve dizer sobre a Palestina, a Ucrânia, o aborto, as mulheres, o machismo, os gays, os negros, as trans, o sexo, etc. Isso determinou que hoje em dia nenhuma opinião é real e verdadeira; todas são, determinadas por aqueles que controlam a imagem do “influencer” e são moduladas pelo interesse dos fãs – que em última análise controlam como seus ídolos devem ser.

Hoje o cancelamento é uma adaga que balança sobre nossas cabeças. A mera suspeita de um malfeito não confirmado causou o cancelamento de PC Siqueira, sua depressão e posterior morte. A menina, sobre quem se criou uma série de mentiras sobre o namoro com um comediante, também não suportou a pressão das redes. Outros fizeram piadas que ofenderam identidades (ou identitários) e foram imediatamente cancelados. Calados, amordaçados, enviados para a “Zona Fantasma”, desapareceram ou foram destruídos, mandados para onde são jogados aqueles cuja opinião não podemos tolerar. Ninguém está livre de ser julgado e condenado pelo tribunal da redes, basta ter uma opinião contra-hegemônica.

Sequer estou me referindo à ação autoritária da justiça, que deseja “regular” as redes sociais para evitar “abusos”. Sobre isso o caso Monark (youtuber cancelado por dizer que era a favor da criação de qualquer partido, até mesmo o nazista) é didático ao nos mostra como o conceito de “abuso” pode ser absolutamente subjetivo e também servir oportunisticamente aos interesses dos poderosos. A censura nos ameaça tanto de maneira formal quanto na informalidade das redes. Não…. aqui falo apenas aqui do sujeito que, na condição de relativo anonimato e segurando um celular nas mãos, decreta a destruição de um outro baseado em antipatia, discordância ou mera implicância. Esse sujeito, empoderado como consumidor, é capaz de gerar pequenas – e até grandes – tragédias.

Como diria o filósofo contemporâneo Roger Jones “…as redes sociais nos jogaram ao mesmo tempo na modernidade e na idade média. Basta abrir o “x”, ex-Twitter, e veremos que todo dia há uma nova vítima jogada à fogueira; é assim que funciona. É o mercado da punição, algo que está enriquecendo muita gente, porque funciona como um negócio. Anotem: semana que vem surgirá um novo “monstro” para ser empalado publicamente, porque esse é o combustível, a força que nos impele a ligar o celular e gozar com o novo linchamento. As redes sociais vivem de pecados alheios; esse é o grande barato e o grande lucro desse negócio”.

E você? Já cancelou alguém hoje?

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O Cipó

Eu já vi esse filme, e acho que podemos estar errando de novo. O supremo empoderamento da voz das pacientes e o descrédito da versão dos médicos pode eventualmente se voltar contra os próprios profissionais humanizados. A mão que afaga é a mesma que apedreja. Criar demônios, desumanizando-os, não é certo nem justo. Criamos personagens sem matiz, a vítima e o carrasco, o bom e o mau, e isso raramente conta toda a história.

Hoje o foco das acusações é um intervencionista que muitos dizem ser arrogante, alguém que debochava da humanização e do parto no modelo de parteria. Espero que ele receba um julgamento justo por seus erros. Todavia, essa mesma energia vingativa que muitos lançam para ele pode voltar, como cipó de aroeira no lombo daqueles que agora apontam dedos. Já vi esse fenômeno, e sei como ocorre.

Eu recomendo cuidado com essas narrativas. No fundo não existe nenhuma diferença essencial entre médicos e pacientes; todos são gente, com suas falhas, erros, virtudes e acertos. Um certo cuidado com a história que se forma seria uma boa atitude.

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Invasões Bárbaras

As manifestações de médicos atacando os avanços do protagonismo feminino – em especial planos de parto – são parte do velho modelo anacrônico, carcomido, ultrapassado e embolorado da obstetrícia misógina brasileira. Tais profissionais usam a retórica oportunista de se vitimizar, colocando-se como perseguidos e injustiçados por uma horda de mulheres enfurecidas e cheias de “sangue nos olhos”. Posso garantir que mulheres que fazem planos de parto não são movidas por ódio, mas são as pontas de lança da idéia de “gestação participativa”

As acusações contra as mulheres que se informam e reivindicam são pura balela. Quem já passou 5 minutos dentro de um centro obstétrico de hospital privado sabe como acontecem as pressões e os constrangimentos a elas impostos. Estes sequer se iniciam ali; em verdade são o corolário de um processo que começa no primeiro comentário sobre a “bacia pequena”, a pouca (ou muita) idade, os riscos de sofrer todo o processo e não “ter passagem”, a segurança da medicina “moderna” (tecnológica), a crueldade dos partos “animais” e os riscos de ocorrer algo muito grave num parto pela vagina. Sem falar no “estrago” que uma criança é capaz de fazer ao “parquinho de diversões” do marido.

O discurso da obstetrícia nacional ainda é uma expressão de poder que, em cada detalhe – do excesso de exames à forma depreciativa como se descreve o processo de parir – traduz a visão diminutiva que ela (a obstetricia) cultiva sobre a mulher e sua fisiologia. É o que chamo de “misoginia estrutural”

A fala desses sujeitos apenas reproduz o que se escuta na Escola Médica e nos corredores e cafezinhos do hospital. Os médicos são descritos por si mesmos como vítimas de pacientes obcecadas e transtornadas, sem que possam entender de onde vem tanta ingratidão. Não raro culpam a Internet e as “ativistas loucas”.

Ingratas….

Sim, porque para eles cada mulher que vai parir não deve ao seu obstetra menos de que a mais absoluta gratidão por salvá-la de uma natureza má e cruel, que ofereceu como veículo de sua alma nada mais do que uma “máquina defeituosa e ineficiente”.

É contra essa imagem deturpada do corpo das mulheres e o questionamento radical de quem verdadeiramente o controla que se faz um Plano de Parto. É para que os médicos saibam que seu conhecimento tem valor e merece respeito, mas que não está acima da soberania que todos nós temos sobre nossos corpos e almas.

A história lembrará desse tempo como a invasão bárbara sobre o território dos corpos femininos. Lembraremos dessas falas reacionárias como os estertores do domínio espúrio sobre a sexualidade das mulheres. A partir daí um novo tempo surgirá, onde as parcerias serão feitas de forma mais livre e justa, garantindo o respeito pela autonomia, que se manterá pairando impávida sobre todas as palavras e gestos.

E que assim seja.

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Porta

Porta

A porta só se abre pelo lado de dentro, e esse é o grande ensinamento que a gente precisa aprender: nossas ideias devem ser expostas, jamais impostas. O crescimento pessoal é uma tarefa solitária e custosa, e as pressões externas apenas podem produzir fingimentos, dissimulações e falsidades, que levam o sujeito a uma vivência neurótica e irreal. As religiões “espetaculosas” são pródigas em produzir estes fenômenos, que variam da “cura gay” até excessos de veneração. A reforma íntima, lenta e pedregosa, é o único caminho confiável de transformação. Da mesma forma a democracia, com seus problemas e sua natural morosidade, é a única maneira de produzir mudanças sociais sólidas e consistentes, e as ditaduras serão sempre um engodo sedutor.

O empoderamento no parto não é necessariamente a consequência de um parto humanizado, mas a capacidade de apreender os ensinamentos que qualquer nascimento pode oferecer. Muitas pessoas acordam para a necessidade de mudar o panorama da assistência ao parto depois de assistências violentas, cruéis e humilhantes. Isso também é empoderar-se. Sheila Kitzinger costumava dizer que um parto era válido (na perspectiva feminina) quando a mulher podia olhar para trás e ver um caminho de crescimento e consciência, e essa é uma verdade que pode sobressair de qualquer nascimento.

Infelizmente mesmo os partos mais bonitos e transcendentes não conseguem produzir estas modificações, pois não são os elementos externos que comandam esta evolução, e sim a capacidade do sujeito de captar e processar as mensagens a ele enviadas. Ali nossa tarefa termina: oferecer as condições para que as imagens, sons, conceitos e palavras possam produzir a sua ação dentro do sujeito. Mas nesta tarefa, só ele poderá agir. A nós cabe apenas a função de catalisadores…

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