Arquivo da tag: entitlement

Karen

Eu bem sei como funciona o “entitlement”, um fenômeno produzido na última década como um “efeito colateral” do movimento feminista. Este tipo de comportamento surge em mulheres de classe média, normalmente brancas, que se acham no direito de fiscalizar e regular o comportamento alheio. O empoderamento inédito das mulheres nas últimas décadas fez despertar uma pequena minoria que acredita que sua condição de mulher lhes garante total impunidade. Existem muito menos homens nessa condição porque os meninos, desde cedo, apreendem que, se você engrossar, pode levar um tabefe e as coisas saírem do controle. Já as Karens acham que são intocáveis, podem fazer o que bem entendem, podem inclusive bater nas pessoas como vemos todos os dias.

Deixo claro que as mulheres não são Karens,; esse comportamento não fala da essência da mulher, assim como ser violento não é da essência do homem. Na minha experiência as mulheres são até muito mais ponderadas, na média, do que os homens quando estão diante de conflitos – a maternidade e as disputas entre os filhos ensinam isso. As Karens são uma franja minúscula – mas escandalosa – de pessoas embriagadas por uma percepção ilusória de superioridade moral. Elas se assentam sobre o poder mítico do “corpo intocável” e um supremacismo feminino para abusar de uma pretensa autoridade.

O antídoto ao se deparar com uma Karen é pegar a energia negativa delas e a transformar em afeto. Minha mulher, Zeza, sabe muito bem como agir assim e por isso reconheço nela uma inteligência da qual careço. Acho isso admirável e tem a ver com a “comunicação não-violenta”. Quem sabe um dia aprendo.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos, Violência

Entropia

Recebi da minha amiga Germana Piripkura o print acima e acredito que vale a pena uma análise…

Bem, “discordar de quase tudo” pode ser entendido como uma virtude; as ciências que mais evoluem são aquelas dotadas de forte entropia e choques violentos entre os paradigmas em disputa. No caso da obstetrícia, eu vejo exatamente o oposto. Os obstetras operam (em nível inconsciente, por certo – esta não é uma análise moral) numa espécie de religião onde a discordância é vista como uma ação de extrema gravidade. Basta ver como as práticas obstétrica no mundo ocidental não variam. Pegue uma foto de parto na Suécia e num hospital em Cuzco e a imagem será praticamente idêntica; existe um consenso “forçado” baseado na coesão do grupo. Mas se entendemos o parto como parte da vida sexual de uma mulher, como podemos imaginar que a sexualidade das mulheres desse planeta seja tão padronizada? Por que não há “tantos partos quanto existem mulheres no mundo”?

Ora, porque o parto foi delas…. expropriado.

Em verdade, a obstetrícia é guiada por dogmas que são tratados como pontos intocáveis. São eles:

* Parto é um ato médico
* Parto é um procedimento hospitalar
* Parto é mais bem executado por médicos
* Parto é um ato duplamente arriscado (mãe e bebê) cujos riscos diminuem quando controlados pela medicina em ambiente altamente tecnológico.

Nenhuma das afirmações acima possui evidências científicas que garantam sua validade e universalidade. Não obstante, é repetida à exaustão pela comunidade obstétrica com inegável aceitação. Qualquer médico que discordar desses pontos será visto como um herege, uma ameaça, um infiltrado; se for da área da enfermagem, um invejoso. Toda a aceitação e preponderância social dos obstetras repousa sobre a narrativa de que sua ação é essencial para resgatar as vidas sob seu cuidado do risco produzido por uma natureza incompetente e madrasta.

Lembrei da frase de um professor de obstetrícia da corrente “liberal-reformista” quando falava aos seus alunos da residência: “As pacientes caminham sobre um cabo de aço entre dois edifícios há 30 metros de altura, e vocês são a rede”, uma frase que mostra a onipotência e o “entitlement” inabaláveis destes profissionais, pois que sequer as evidencias científicas são suficientes para demovê-los de suas crenças.

Sobre as “fontes discordantes”, penso que o que ela quis dizer é que os profissionais não concordaram com ela quando se referiu à atenção ao parto de risco habitual, mas engana-se quem imagina que existem debates intensos na academia sobre estes temas. Há um silêncio tácito sobre estas questões, porque tocar nos pontos nevrálgicos da estrutura da obstetrícia contemporânea significa colocar toda sua edificação ideológica em perigo. Poucos tem a coragem de enfrentar os monstros e colocar-se na posição de párias.

Eu bem que gostaria que houvesse realmente esse “tremor” na academia, com debates acirrados e veementes sobre o modelo de atenção ao nascimento, mas a percepção hegemônica sem dúvida ainda – e por muito tempo – se assenta sobre os pilares citados acima. A fração mais conservadora acredita nos malefícios do parto e nos seus riscos inquestionáveis, enquanto a vertente liberal revisionista crê que uma atenção médica baseada em evidências diminuiria as intervenções e, por conseguinte, a morbimortalidade associada a elas, tanto físicas quanto emocionais.

Minha vertente, por certo, é a revolucionária, com o abandono da ilusão reformista (que insiste na opção médica) e a adoção de um modelo humanístico de parteria baseado na atenção do parto eutócico por parteiras profissionais. Aliás, o modelo de melhores resultados no planeta, mesmo quando a avaliação leva em consideração países ricos e pobres.

Claro que, assim como em outras batalhas, morrerei sem ver este modelo instituído. Mas, de que vale a cidade não for pelas boas causas?

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Punições

Pessoalmente, não vejo punição maior do que a que já foi feita, e não vejo valor algum em punir esse sujeito para além disso. O mesmo eu disse para o jovem médico que fez piadinhas indecentes para uma garota no Egito. Ambos sucumbiram à mesma cilada na qual tantos tropeçam: um brutal sentido de “entitlement” (qual a melhor tradução?), a ideia de que sua posição “superior” lhes permitiria fazer qualquer coisa, dizer qualquer bobagem, no limite do desrespeito e da humilhação. Afinal, quem ousaria enfrentá-los? Quem apontaria o dedo para um ídolo, um exemplo de sucesso e excelência? Quem se atreveria?

Infelizmente eles não percebem que as luzes da ribalta, de tão intensas, produzem uma sombra muito escura. Nesta sombra se acumulam sentimentos pesados que estes personagens carregam por onde vão, a segui-los impiedosamente, na espreita do momento em que a luz se apagará, quanto então a escuridão tomara conta de todo o espaço. Augusto dos Anjos já nos dizia:

“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.”

Mal sabiam eles que a admiração e a adulação cobram um alto preço. Nenhum amor é oferecido sem contrapartida. Uma vez que se desfazem as capas da idolatria resta apenas o buraco de um afeto sem resposta, e a cobrança será inevitavelmente dura. Espero sinceramente que eles tenham recebido o golpe e feito um bom uso dele. Muitas vezes tais impactos produzem apenas dor, indignação, sofrimento, tristeza e depressão. Porém, em outras oportunidades elas podem deflagrar o parto de um novo sujeito, que só pôde nascer através da dolorosa contração de uma queda narcísica. Espero que a árdua lição os faça transformar, e que seu trabalho siga em um novo patamar.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto