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Parto e Revolução

Humanização do nascimento, enquanto ciência, não pode tolerar certas falácias. Muito já foi dito sobre o parto e suas implicações psicológicas, afetivas, morais, espirituais, fisiológicas e sociais; agora cabe a nós agora mudá-lo, transformá-lo. As revoluções no campo do conhecimento humano se sucedem, atropelam umas às outras. O que antes era o novo, hoje já é o antigo, e resta-nos incorporar a metamorfose de ideias e projetos a nos oferecer o ânimo da mutação. O parto, como o conhecemos, é fruto de uma revolução tecnológica que, iniciando-se com a anestesia na memorável apresentação de uso do éter em 1846 com o cirurgião Warren e o anestesista Thomas Morton, culminou algumas décadas mais tarde com a realização da cesariana em Julia Covallina, pelo cirurgião Edoardo Porro em Pávia, na Itália, já nos estertores do século XIX. Esta cirurgia, criada com o intuito de salvar vidas condenadas pelos efeitos dramáticos do raquitismo no trajeto pélvico, conduziu-nos à suprema interferência no milenar mecanismo do parto, garantindo-nos, com razoável segurança, a entrada no claustro escuro onde dormita o amnionauta. Depois de quase um século os anticoncepcionais desvincularam o sexo da gestação e permitiram que as mulheres deixassem de ser prisioneiras da gestação; seria possível retirar do sexo todos os prazeres sem o temor de uma gestação indesejada. Tamanha a euforia com estas conquistas que por um tempo imaginamos que o domínio completo sobre os mistérios do nascer havia sido estabelecido. Entretanto, tamanha interferência nos ciclos que governam a reprodução e a vida não poderia ocorrer sem que, de alguma forma, houvesse uma ruptura com os delicados liames que nos conectam com a natureza.

As cesarianas, assim como as analgesias de parto tornaram-se mais do que simples e corriqueiras; sua aplicação no mundo ocidental tem aspectos de epidemia, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a taxa de cesarianas atingiu o índice inédito de 59.7%, um número assustador se imaginarmos que a OMS estabeleceu como 15% o percentual máximo que pode oferecer vantagens. Multiplicamos por 4 este valor, e por certo que existem consequências nefastas por esta medida. Bem o sabemos o quanto as cesarianas, ao tornar previsível um evento dominado pela imprevisibilidade, beneficiam os médicos e as instituições, e aqui está uma boa razão para os abusos que testemunhamos. Além disso, as cesarianas multiplicam os riscos, tanto para as mães quanto para os bebês. As analgesias de parto também são extremamente prevalentes nas salas de parto, diminuindo a propriocepção materna e dificultando as mudanças posturais ativas da mãe na adaptação do seu bebê ao canal de parto. Hoje em dia apenas 5% das mulheres brasileiras tem um parto sem intervenções médicas potencialmente perigosas para a mãe e seu bebê. Além disso, existem repercussões de caráter emocional, psicológico e social das cesarianas, que afetam o desenvolvimento do apego da recém mãe com seu bebê. O caminho das intervenções e o parto na perspectiva médica mostravam suas falhas e seus senões.

Por esta razão, a partir do final dos anos 70 do século passado surgiu um movimento de usuárias e profissionais da saúde com o objetivo de “humanizar o nascimento”, na medida que a postura meramente objetual das pacientes – como é a característica daqueles que se submetem à ação médica – não é aceitável para uma mulher saudável que está diante de um evento natural do seu corpo, sobre o qual não cabe nenhuma intervenção sem justificativa. Passou-se a admitir – de novo – que parto faz parte da vida sexual de uma mulher, que deve ser governado por estes pressupostos, e que o nascimento de uma criança é algo que ela faz…. e não algo que fazem por ela. Iniciou-se, então, um movimento de caráter internacional de questionamento sobre as múltiplas e exageradas intervenções sobre as mulheres no momento do parto, assim como no pré-natal e nas semanas que se seguem ao nascimento. A ideia central que impregnou esta geração de pensadores sobre o nascimento foi a “desmedicalização” do nascimento, o respeito à fisiologia, o uso consciencioso e restrito das intervenções, o entendimento do parto como um processo interdisciplinar e, acima de tudo, a garantia do protagonismo à mulher e à família, recuperando a centralidade feminina e familiar do nascimento humano.

Muito já se avançou no debate sobre a necessária retomada de um percurso de atenção ao parto que respeite a mulher e sua fisiologia. Muitas publicações, estudos, análises, pesquisas e literatura acadêmica contribuiu para esta lenta mudança. Todavia, ainda há um caminho longo a percorrer, porque as modificações na assistência ao parto não carecem de retoques ou de revisões de protocolos; é necessário o que se faça uma revolução, na medida em que estas transformações estão relacionadas ao poder sobre os corpos, mantido sob a guarda dos profissionais da medicina. Como diria Gramsci, se fosse parteiro: “o parto na lógica da intervenção já morreu, mas o parto na perspectiva do sujeito tarda a nascer. Neste lapso temporal ainda testemunhamos a barbárie da violência contra as gestantes”. Humanização do nascimento não é uma ideologia que se encerra no mundo das ideias, mas uma filosofia da prática cotidiana. A prática sem arcabouço teórico é perigosa e caótica; porém a teoria sem a prática é vazia e inútil, servindo apenas para devaneios filosóficos e especulativos.

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Um Morto Muito Louco

Muitos ainda se perguntam: o que une as personalidades de Bolsonaro, Milei, Boris Johnson e Trump? Qual o traço que os transforma em íntimos e semelhantes? O que os fez surgir no mesmo lapso curto de tempo, quase contemporâneos? Como é possível entender este fenômeno de forma unificada, tentando traçar uma linha de coerência e causalidade em suas aparições no cenário político internacional?

Creio que a resposta, como sempre, está em Marx. As crises do capitalismo e a falha deste sistema em equilibrar um modelo econômico e político fadado às crises cíclicas, produz este tipo de aparições bizarras: o surgimento de salvadores da pátria, sujeitos enviados para resgatar nossa grandeza perdida, trazer de volta nossa perspectiva de futuro, políticos que desprezam a política, atores sociais “sem ideologia” mas que a transpiram por todos os poros. Eles são sinalizadores macabros da transformação, o desespero de um modelo falido em manter-se vivo. Gramsci já havia deixado claro que é exatamente nesse espaço entre a morte do velho e o nascimento do novo que surgem os demônios e toda a monstruosidade guardada vem à tona.

Ou seja: estas figuras já estavam previstas pela própria natureza íntima do capitalismo. Inclua Netanyahu nessa lista de psicopatas surgidos em meio a crises brutais (como Adolf surgiu) e percebam como o Estado Racista Colonial de Israel já morreu e está apodrecendo à vista desarmada. Entretanto, enquanto não floresce a revolução que levará à igualdade é inevitável o aparecimento deste tipo de monstros, e com eles os seus delírios. Todos esses personagens são filhos de seu tempo e de suas circunstâncias, elementos que surgem do desespero em manter vivo um corpo que já se decompõe.

Aos poucos se fortalece a consciência de que a mudança não ocorrerá usando as mesmas estratégias de sempre imaginando com isso encontrar resultados diferentes. Um novo “acordo de Oslo” não dará fim ao conflito na Palestina e muito menos ainda a deposição do líder monstruoso de Israel. A solução está muito distante das tentativas até agora utilizadas, todas falhas memoráveis que apenas agravaram a situação. Da mesma forma, a troca de Biden por Trump será apenas o câmbio de uma fantasia, pois no imperialismo quem o controla as grandes corporações farmacêuticas e de informação também detém o aparente poder político. Quanto à direita fascista da América Latina ela continuará existindo reciclando seus nomes, passando de crise em crise, trocando o salvador da ocasião, até que o próprio capitalismo seja substituído por um sistema menos violento em sua natureza segregacionista de classes.

Nenhum desses nomes representa o mal em si; todos eles são personagens que desempenham o papel de manter as aparências do capitalismo defunto, como na comédia “Um Morto muito Louco”, de 1989, onde uma dupla de camaradas carrega o amigo morto fingindo que ainda está vivo. Assim fazemos nós, transportando o corpo inanimado de um projeto de sociedade que já não é mais capaz de oferecer ao mundo a equidade, a liberdade, a estabilidade e o respeito ao meio ambiente que todos necessitamos.

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