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Memórias do Homem de Vidro – 11

Fátima e o Protagonismo Devolvido

Fátima veio à consulta carregando uma sacola de exames e trazia estampado no rosto um olhar de resignação. Grávida de 37 semanas, procurou-me porque sua obstetra estava de férias, e a substituta que esta havia indicado não lhe agradou. Vinha, portanto, à procura de um terceiro médico naquela gestação, o que tornava a consulta um pouco diferente das demais. Quando entrou no consultório, eu me impressionei com o seu ventre. Era real­mente muito grande, mesmo para uma mulher alta e corpulenta. Veio com a fa­mosa pilha de ecografias, é óbvio, sendo que a última prenunciava um feto com 4,5 quilos. Diante disso, tanto sua médica quanto a substituta foram taxativas: “É cesariana, porque não vai passar”. Para complicar a situação, essa paciente tinha uma cesariana prévia, com um bebê 8 meses por pré-eclampsia e que, mesmo sendo prematuro, pesou 4,3 quilos. Tinha uma leve alteração da glicemia no último exame realizado há uma semana. Macrossomia, cesárea prévia, diabete gestacional leve. Precisa mais? Ela me disse que queria deixar marcada a cirurgia, “já que precisava ser cesariana”.

Foi então que eu perguntei a ela:

— O que você gostaria que fosse?

*   *   *

“A lógica dos encontros médicos necessita de uma reversão”, dizia Maximilian. Durante anos da minha prática diária de consultório, sofri com a postura de algu­mas de minhas clientes diante do desafio do encontro médico-paciente. Por muito tempo, o padrão era este: elas se aproximavam, me avaliavam com os olhos e perguntavam: “Como é sua conduta quando atende um parto?”. A partir dessa pergunta, eu explicava os pontos importantes da humanização do nascimento, como a posição verticalizada, a presença de um acompanhante de livre escolha, a utilização restrita e judiciosa de intervenções, a valorização do parto vaginal, etc. Entretanto, a pergunta, e minha subsequente resposta, a partir de uma determi­nada época, passaram a me deixar insatisfeito e inquieto. Alguma coisa parecia fora de lugar, produzindo uma espécie de irritação, um incômodo, uma inconformi­dade.

Acho que foi durante uma entrevista para a televisão que eu tive a clareza, pela primeira vez, sobre a questão do protagonismo na assistência ao parto. A produ­tora de uma emissora local me telefonou, convidando para uma entrevista sobre “parto de cócoras”. No dia combinado, lá fui eu engravatado para a TV. A entre­vistadora, uma conhecida e simpática jornalista, me cumprimentou e disse que as perguntas seriam sobre esse tipo especial de partos, e que a matéria tinha sido escolhida por ser 19 de abril, Dia do Índio. Sorri da ideia, aparentemente precon­ceituosa, de que “parto de cócoras é coisa de índio”, quando na verdade a imensa maioria das sociedades primitivas adotou instintivamente essa postura para parir, inclusive os índios brasileiros. Longe de ser uma particularidade indígena, é uma característica de quase todos os grupamentos humanos. Abriu o programa me apresentando e fazendo a chamada de uma “nova velha técnica de trazer os be­bês ao mundo”. Pediu os comerciais e, quando o programa retornou, voltou-se para mim e perguntou:

— Então, doutor, como é essa história de fazer partos de cócoras? Desde quando o senhor faz partos assim?

Quando eu estava me preparando para responder, acendeu uma luz. Acho que talvez tenha tido mais luminosidade que os spots do estúdio, mas apenas eu per­cebi. Hoje em dia eu creio que isso poderia ser definido como insight. É provável que sim.Uma confluência de emoções, sentimentos, pensamentos, antigas análises, lem­branças, tudo entrando em sincronia e produzindo uma espécie de erupção. Fiquei por alguns instantes olhando para a bela apresentadora, até que respondi:

— Eu não faço partos de cócoras — respondi eu. — Minhas pacientes é que ficam nessa posição, quando lhes convém. Na verdade, eu não deveria fazer nada, eu só…

A entrevistadora me olhou com indisfarçável contrariedade. Achou que eu estava criticando a sua pergunta ou querendo ser engraçadinho. Não era isso. Eu não estava achando graça nenhuma; estava, na verdade, em meio a um redemoinho de pensamentos e dúvidas sobre o que realmente eu fazia, ou o que deveria fazer.

— O senhor utiliza uma técnica que é o parto de cócoras, certo? Pois essa téc­nica, usada pelos índios, agora está sendo redescoberta, é isso? — A expressão da jornalista era de franca impaciência.

A ideia prevalente era a de que, ao contrário de uma técnica de partos horizontais, eu estava utilizando outra técnica sobre as minhas pacientes. Uma técnica alter­nativa. Um método de fazer partos. Novo e velho. As palavras de Maximilian apareceram à minha frente e atingiram em cheio o plexo solar. Senti o soco potente de uma verdade há tempos escondida, e que agora podia se manifestar. Por alguns instantes, fiquei olhando a jornalista sem saber o que dizer. “Humanização do nascimento, meu caro Ric, é a devolução do protagonismo à mulher. O resto é apenas sofisticação de tutela.” As palavras fa­ziam eco na minha cabeça, e eu não conseguia falar. Não queria parecer evasivo, mas naquele instante eu não poderia responder o que ela estava a me perguntar, porque a pergunta já não fazia mais sentido. Percebi naquele fragmento de ins­tante a razão da extrema irritação de Leboyer quando lhe questionavam sobre o “método Leboyer”. Ele odiava essa forma de encarar seu trabalho, e sempre res­pondia com clara impaciência a essa pergunta, dizendo que nunca quis criar mé­todo algum. Naquele momento, eu estava me dando conta de que, se você criar uma “técnica de partos de cócoras” estará em verdade mantendo o cerne da questão intocado, mas nutrindo-se da ilusão de que algo diferente está sendo feito.

Ou você entrega o poder de parir às mulheres, ou apenas estará sofisticando seu controle sobre elas, sua dignidade, sua autonomia e sua feminilidade. Fazer “par­tos de cócoras”, como a jornalista me perguntava, me aliava à grande massa da obstetrícia contemporânea que julga as mulheres incompetentes e incapazes de escolher a postura que mais lhes agrada. Determinar para elas uma posição de parir mais fisiológica e racional, como o são as posições verticalizadas, pode pa­recer interessante do ponto de vista dos resultados observados, mas continua sendo uma imposição ditatorial sobre um fenômeno natural e feminino. Estava tornando meu jugo sobre as pacientes menos agressivo e mais suave, mas conti­nuava sem lhes oferecer o protagonismo. Eu estava, enfim, “sofisticando a tutela”.

Naquele instante, percebi que a maior batalha ainda estava por ser travada. Era preciso entregar de volta às mulheres o controle dos nascimentos, e ao mesmo tempo encontrar uma função digna para um obstetra, que não passasse pela ex­propriação do nascer em nome de uma tutela anacrônica. Por outro lado, eu intuía que não seria fácil essa mudança no cenário do nascimento, dominado pela visão tecnocrática há três séculos e meio. Peça a um homem que recuse qualquer acréscimo na sua vida e terá sucesso, mesmo que com dor e privação, mas retire alguns de seus antigos privilégios e você terá luta. Olhei para a bela entrevistadora mais uma vez, e depois de um suspiro respondi:

— Uma mulher pode encontrar por si mesma a posição que mais lhe parece ade­quada para ter seu filho. Minha função é apenas ajudá-la a encontrar essa pos­tura, criando as condições psicológicas e ambientais para isso. A posição de cóco­ras é uma das mais escolhidas pelas gestantes, porque permite uma ampla aber­tura das conjugatas, que são as distâncias entre os ossos da pelve. Além disso, a posição vertical, ao contrário da posição horizontal, não comprime os vasos ma­ternos do abdômen, nem interrompe o retorno venoso criado por essa compres­são. A força da gravidade e a facilidade de fazer prensa abdominal são excelentes fatores coadjuvantes. Mas nada disso pode ser imposto a essa grávida. Ela deve estar no comando, escolhendo por si o melhor caminho.

Respirei fundo mais uma vez, e, depois de um sorriso de alívio, terminei:

Sem garqantia de protagonismo, não existe humanização do nascimento. Sem que as pacientes possam livremente escolher a posição para parir, seu acompa­nhante, o local, suas roupas, suas tradições e suas inúmeras vontades, apenas estaremos reproduzindo uma história de abusos e interferências desnecessárias, que não tem mais cabimento em um mundo que se propõe democrático e igualitá­rio.

Não recordo de mais nada do que disse na entrevista, mas a bela jornalista parece não ter gostado de minhas respostas. A partir daquele dia, eu não mais falei sobre “partos de cócoras”, porque a questão da autonomia feminina passou a ser o foco de minha atenção. Em algum lugar, Max sorria e brindava, levando ao alto um espumante copo de cerveja.

*   *   *

Voltei a olhar para Fátima, que parecia um pouco aturdida com a minha pergunta. Ela certamente não esperava pela minha reação. Joguei a “batata-quente” de volta, e ela sentiu o calor nas mãos. Depois de alguns instantes me olhando atur­dida, respondeu:

— Ora, doutor, eu preferiria parto normal, que a gente pode ir para casa mais rá­pido. Tenho uma filha de nove anos que precisa da minha ajuda. Sei que uma ce­sariana é uma cirurgia, e que a recuperação é muito mais lenta.

As pesquisas realizadas no Brasil pelo Dr. Joe Potter e pela professora de antro­pologia da Universidade do Texas, Kristine Hopkins, assim como uma recente­mente publicada pela FIOCRUZ, apontam para uma realidade muitas vezes dissi­mulada: mulheres preferem majoritariamente realizar partos normais. Elas sabem das vantagens de um nascimento natural, tanto para elas quanto para os bebês. A perversidade das cesarianas desmedidas não pode mais ser contabilizada como uma culpa dessas mulheres, porque a inversão do desejo de um parto vaginal ocorre quando elas adentram os centros obstétricos. Fátima tinha conhecimento da qualidade superior do parto normal, mas só agora estava podendo expressar.

— Fátima, o destino do seu parto depende mais de você do que de qualquer outro fator externo — disse eu. — Se você deseja ter seu filho de parto normal, esse é um direito seu, que ninguém pode lhe retirar. O que mais conta nessas situações é o desejo, a vontade e a confiança que você deposita em si mesma. Acho que seu caso inspira cuidado e atenção redobrados, mas penso também que temos uma esperança, e é agarrado nela que eu acho que devemos nos manter. Ela sorriu e respondeu:

— Mas doutor, eu quero ter meu filho de parto normal. Mas meus médicos disse­ram que era impossível por causa da cesariana anterior, da diabete, do tamanho do bebê, e…

— Posso entender a preocupação dos seus médicos Fátima, pois, como eu mesmo disse, seu caso tem muitas complicações. Porém, nenhuma delas é cla­ramente impeditiva para um nascimento normal e com menos riscos. Nada, nem ninguém, é mais forte que a sua força de vontade e seu desejo. Se você deseja ter seu filho de parto normal, temos a obrigação de tentar, mesmo sabendo que será um desafio difícil.

Ela sorriu e combinou de voltar com o marido. Consultou novamente alguns dias depois, logo que começou a apresentar algu­mas contrações. Ao exame de toque, ela tinha um bebê muito alto na pelve e a dilatação de uma polpa digital. As contrações uterinas eram ainda esporádicas e fracas. Pedi que me ligasse se viessem a ocorrer com maior intensidade.

No mesmo dia, ela me ligou dizendo que estava com contrações mais fortes e pedi-lhe que retornasse ao meu consultório para uma nova avaliação. O cenário havia se modificado. Agora já se havia instalado a fase ativa do trabalho de parto, e ela tinha de três a quatro dedos de dilatação. Apesar disso, o bebê continuava alto. Pensei comigo: Será que desce? Será que não está apenas dilatando pra depois trancar no estreito médio? Esses meus pensamentos se exteriorizaram com um sorriso benevolente. Pura encenação, confesso. Mas era para uma causa nobre: insuflar confiança nas suas capacidades; apostar na sua força e competên­cia para ter seu filho. Eu estava apostando minhas fichas nela, “pagando para ver”.

Pedi que retornasse para casa e aguardasse mais algumas horas antes de ir para o centro obstétrico. Os hospitais sempre produzem um efeito complicador sobre o desenrolar do trabalho de parto e, portanto, quanto mais longe as pacientes de baixo risco puderem ficar dele durante o período inicial de pródromos, melhor. Um centro obstétrico, por melhor que seja, sempre produz nas mulheres um estado ansiogênico de percepção do meio circundante. Na nossa história adaptativa como espécie, o local de nascimento sempre teve como signo fundamental a se­gurança. Para todos os mamíferos superiores, e mesmo para os primatas, preva­lece a atitude de procurar abrigo seguro quando as contrações se iniciam. A multi­plicidade de ameaças e a natural fragilidade com que uma grávida se encontra fazem com que esse local seja escolhido para oferecer o máximo de proteção, tanto à mãe quanto à cria. Além disso, a presença de um suporte técnico e afetivo foi uma marca de nossa ancestralidade, talvez se iniciando com os primeiros exemplares do gênero homo há dois milhões de anos. Aí se inseria a função da parteira, tão antiga que se perde nas brumas do tempo.

A ida de Fátima para casa, longe do estresse propiciado pela hospitalização, tinha esta função: aguardar a dilatação no seu domínio. O hospital, por ser “um local estranho, onde estranhas pessoas operam estranhas máquinas”, no dizer de Marsden Wagner, cria um cenário de temor e apreensão, que facilmente coloca a gestante no temido, mas pouco compreendido, círculo vicioso de medo-tensão-dor. Manter a paciente em casa tem essa grande vantagem: conservá-la em um lugar da sua confiança e, portanto, de segurança. Algumas horas mais tarde, ela me ligou (na verdade o marido, dizendo que Fátima estava “quase desmaiando”) e eu solicitei que se dirigissem ao hospital. Por morar em uma cidade vizinha, além do tamanho fetal presumido e da cesariana prévia, nem se cogitou em realizar um parto domiciliar. Fátima não se conformaria a ne­nhum protocolo estabelecido e, portanto, essa possibilidade jamais foi aventada nas conversas prévias. Chegando ao hospital, às 14 horas, fiz uma avaliação da situação e percebi que ela já se encontrava com seis centímetros de dilatação, mas com uma apresentação ainda muito alta.

— Vamos caminhar, mulher — disse eu com uma risada. — Precisamos fazer este bebê descer. E, para isso, nada como um bom passeio.

Nos velhos tempos da residência, eu aprendi, com Maximilian, a importância da deambulação das parturientes. Ele tinha a mania de tirá-las para dançar, e não sei se pelo riso que isso provocava, ou pela dança mesmo, o resultado era um incre­mento da contratilidade uterina. Muitos anos depois, escutando as palavras da parteira americana Ina May Gaskin, pude confirmar a ideia de que o riso tem uma poderosa capacidade terapêutica durante o parto. “Faça a paciente rir, dar garga­lhadas, e você terá resultados incríveis”, dizia-me ela. As posições verticalizadas auxiliam na descida da apresentação fetal pela ação da gravidade sobre o feto, porém mais importante talvez seja a mobilidade incrementada do quadril, que fa­vorece a adequação da apresentação ao estreito canal que o bebê terá que atra­vessar. A bipedalidade, e depois o aumento craniano, determinaram que esse feto tivesse que realizar um caminho tortuoso dentro da pelve, para poder ultrapassar as barreiras ósseas do percurso. A entrada do canal é mais larga no sentido lá­tero-lateral, enquanto a saída é mais larga no sentido ântero-posterior. Com isso, nosso pequeno herói precisa cumprir um sinuoso trajeto dentro da pelve e postar-se com a nuca encostada no osso púbico da mãe, ao contrário dos grandes ma­cacos pongídeos, nos quais esse movimento não ocorre e seus partos são em geral mais rápidos e fáceis.

A deambulação e a mobilização constantes são de extremo auxílio para essa situ­ação. Mais uma razão para que as mulheres de baixo risco não sejam monitoriza­das eletronicamente durante o trabalho de parto, porque assim, atadas ao monitor, têm sua mobilidade extremamente prejudicada. Zeza me acompanhava no hospital, e lá se foram as duas caminhando pelos cor­redores do centro obstétrico. Às quatro horas da tarde, Fátima já estava com oito centímetros de dilatação, au­mentando para nove centímetros duas horas mais tarde. A dilatação já estava concluída às oito e meia da noite, mas o bebê continuava alto. O que fazer? Seria um bebê grande demais? Seria uma impossibilidade clara e incontornável? Ou uma tentativa inútil e frustrante? Como ter certeza? Valeria a pena tentar, correndo o risco de não conseguir e ter que apelar para uma cesari­ana?

O físico Niels Bohr já dizia que “certezas são fruto de nossa presunção, e nada tem a ver com ciência”. Aristóteles, por sua vez, falava aos seus discípulos que, “quanto maior a capacidade e o saber de um homem, maiores as suas dúvidas. As certezas foram dadas pelo criador aos medíocres, como um prêmio de consola­ção”. Minha angústia por não ter certezas sobre o melhor a fazer era, pelo menos, premiada com excelente companhia. Entretanto, as falsas certezas são caracte­rísticas do modelo médico contemporâneo, em que a encenação e o discurso au­toritário são mais constantes do que a conversa franca e o embasamento das condutas na solidez das evidências científicas. Depois de um tempo saí da sala para tomar um café. Minha saída fora mais pelo desafogo das tensões do que pela cafeína. Pouco depois, Zeza me chamou ao quarto novamente e disse que Fátima precisava conversar comigo, pois tinha algo muito importante para dizer. Adentrei a sala e a encontrei acomodada de costas para a porta. Ela parecia can­sada e abatida. Sentada na beira da cama, apoiava as mãos sobre os joelhos, como se fosse uma asmática. Levantou a cabeça e me falou, com um ar contrari­ado:

— Doutor, não estou gostando nada disso. Eu devia ter escolhido aquela outra médica. Ela já teria me livrado desse suplício. Por que esperar tanto? O senhor não me diz a que horas vai nascer, e eu continuo aqui com minhas dores. Por que isso tudo? Por que não inventaram uma forma mais humana para se ter filhos?

Uma forma mais “humana” de ter filhos? O que pode haver de mais visceralmente humano do que ter filhos de forma natural?,pensei, enquanto encarava Fátima e tentava entender suas dúvidas.

Desde muito cedo, ainda na faculdade de medicina, eu me preocupei com a questão do “sentido oculto das palavras”. Muitas vezes, conversei com Nadine e Max a respeito de algo que eu chamava de “patologia da palavra” e que Max cos­tumava chamar de verbose, que é a potencialidade mórbida do que é dito, fre­quentemente usada pelos profissionais de saúde. Antes das atitudes inadequadas, das condutas equivocadas ou dos procedimentos errôneos, muitas das falhas no sistema médico iniciam-se com o uso errôneo de palavras, expressões e gestos. Durante um congresso no México, tive a oportunidade de falar sobre a palavra dita e seus significados com Debra Pascali-Bonaro, que é uma das mais importantes doulas americanas. Nessa ocasião, ela me falou algo muito interessante a respeito de safeword, ou seja, os códigos de comunicação entre a equipe de assistência e a grávida em trabalho de parto. Essa animada conversa me remeteu a uma outra, que tive com Max alguns anos antes.

*   *   *

Uma vez Maximilian me trouxe um artigo escrito pela psicóloga Eliana Calligaris a respeito de um congresso de sadomasoquismo que ela tomou conhecimento nos Estados Unidos. Claro que Max achava a maior graça o pessoal da “Leather Community” se organizar em congressos. Ficava fazendo piadinha o tempo todo, imaginando os cartazes pregados nas portas: “Antes de entrar no auditório, pen­dure seu chicote aqui”. Ou então o cara que ia fazer uma palestra sobre maso­quismo e não conseguia segurar o microfone por causa das algemas. O que ele achou interessante no artigo escrito pela Eliana, foi o conceito de “palavra-chave”. Sua intenção era me chamar à aten­ção para um detalhe no artigo que falava sobre a forma específica de lidar com as demandas durante um processo de alteração consciencial. Entregou-me o artigo com um misto de surpresa e entusiasmo, e me disse que aquilo um dia poderia ser utilizado em trabalho de parto.

— Max, só você mesmo para discutir similaridades entre sadomasoquismo e parto. O que tem a ver uma coisa com a outra? — dizia eu.

Max dava uma risadinha e dizia:

— As coisas estão entrelaçadas no universo. Só existe verdade em um aspecto da vida se pudermos formar analogias em escalas superiores. Leia o artigo e depois comentamos.

Comecei a imaginar o que Max queria dizer, tentando estabelecer as analogias possíveis entre esses mundos aparentemente tão díspares. A leitura do artigo foi uma estimulante surpresa. Facilmente pude perceber o que Max estava me propondo. O ponto de contato entre as práticas sexuais e o traba­lho de parto estava no “princípio do prazer”, que havia muitos anos eu lera no livro A Good Birth, a Safe Birth, de Roberta Scaer e Diana Korte, e que depois foi dis­secado no livro de Michel Odent, A Cientificação do Amor. A chave está em que, nas duas situações, na excitação do jogo sadomasoquista e no “tesão” do trabalho de parto, os envolvidos estão em estados alterados de consciência. Era essa a ligação que Max me apontava. As práticas na “comunidade do couro” são simbolicamente sexuais e reportam o indivíduo à dubiedade de um mundo sexual primitivo, em que a submissão e o comportamento autoritário fazem os papéis principais em um envolvimento de de­sejo. A questão toda, para a articulista, era onde terminava o ilimitado mundo fan­tasioso dos participantes e onde se iniciava o mundo da realidade carnal. Nesse fino liame se estabeleciam os riscos. Max continuava a me descrever cenas engraçadas do encontro, e eu tentava ter­minar o artigo para compreender as possíveis interfaces que ele apontara.

— Se era para me incomodar, para que me emprestou o artigo? Dá licença de eu me concentrar?

Finalmente chego na parte do artigo em que Eliana fala da palestra de um “mes­tre” sádico em que ele explica as vantagens do safeword, que poderia ser tradu­zida por “senha”. Pois ele se dizia extremamente preocupado com casos aconte­cidos havia alguns anos em que, durante práticas sadomasoquistas, ocorreram violências, traumatismos com certa gravidade e, com uma frequência inaceitável, alguns casos de morte. A história, segundo o mestre, era sempre contada da mesma forma. A prática se­xual entre a dupla (às vezes eram mais pessoas) fazia com que estas entrassem em um tipo de transe sexual (acrescido ou não de drogas e álcool), em que o que menos importa é o intercurso sexual. Seria levar as “preliminares” às suas últimas consequências. No meio desse transe, você faz uma prática qualquer, por exem­plo, dar tapas, bater no rosto, dar com chicotes ou sufocar com as mãos. Faz parte do ritual que o masoquista reclame, que chore, que grite, que diga “não”. Entretanto, o perigo residia em que a mesma palavra usada no jogo seria a pala­vra a ser utilizada no retorno ao mundo real, criando-se uma confusão na intersec­ção dos planos (fantasia – realidade). Esta palavra de três letras — NÃO — (com as suas óbvias variações “não quero”, “pare”, “chega”, etc.) perdeu a validade nos jogos sadomasoquistas, por ser demasiadamente abusada como peça do discurso de quem “sofre” a brincadeira.

Diante dos perigos de se avaliar as reais necessidades de alguém envolvido em uma alteração de consciência, faz-se necessário estabelecer regras para o per­feito entendimento do que se quer. O que o palestrante pretendia era a criação e a adoção de palavras que substituíssem de forma inquestionável as manifestações que pudessem significar algo além do pronunciado. Aqui, então, se encaixa a analogia de Max. Que valor possui, no contexto do tra­balho de parto, a frase Eu quero uma cesariana agora!?

Em muitas vezes em que ela é dita, existe uma alteração do estado de consciên­cia e, portanto, as palavras não possuem o seu verdadeiro valor. Essa compreen­são do valor relativo das expressões é fundamental para não cairmos na armadi­lha de fazer uma cesariana no primeiro pedido, que nada mais é do que uma soli­citação de atenção com suas dores, uma necessidade de carinho, esperança e reasseguramento. Assim sendo, essa expressão, e esse pedido, precisam ser entendidos de forma abrangente. Os participantes da “Comunidade do Couro” encontram na negativa, o “não” repe­tido e chorado, um estímulo para as suas brincadeiras, porque a graça está em oprimir e obrigar o parceiro a um estado de escravidão.

Mas como saber se a coisa é séria? Aí se encaixa o conceito de senha. O “Mes­tre” falava da importância das senhas previamente estabelecidas nas brincadeiras. Dizia que, sem ela, o sadomasoquismo se tornaria uma prática perigosa e que atentaria contra a vida das pessoas. Mortes poderiam ter sido impedidas se os participantes entendessem a importância de respeitar os limites de cada um dos envolvidos, e fazer com que a comunicação fosse plenamente entendida. Com isso, muitas dores e tristezas poderiam ser evitadas. Debra me falava que o pedido de cesariana deveria ser muito conversado durante o pré-natal. E ela acenava com a possibilidade de se criar uma “senha” para a ce­sariana, que seria a palavra ou gesto que cumpriria a função de explicar que todos os esforços foram feitos, que todas as tentativas foram realizadas, mas que o li­mite das suas capacidades foi extrapolado, e que não haveria mais espaço para tentativas. É um momento extremamente tenso, mas que deve ser respeitado e previamente estabelecido em suas regras. Concordei com minha amiga, porque percebi nessa postura a compreensão do momento especial que é o trabalho de parto, resguardando para a paciente a ga­rantia do protagonismo. Eu digo que sempre obedecerei às determinações da minha paciente, mas não de uma forma cega e automática, desreconhecendo a mudança do significado das palavras nos estados alterados de consciência. Entretanto, temos que estar aber­tos para o fato de que uma mulher, lá pelas tantas, venha a dizer:

— Abacaxi! Quero uma cesariana!

“Abacaxi” era, hipoteticamente, a senha previamente combinada. Ela só seria dita no caso de uma mulher não suportar mesmo e, depois de muito pensar, decidiu-se por uma cesariana. Mesmo sabendo da possibilidade de uma analgesia, ou aguardar mais um pouco, ou mesmo relaxar e ir para o chuveiro, ela preferiu de­sistir da proposta do parto natural e ir para a cirurgia. Eu escutei isso de uma paciente, fazia uns dez anos. Ela olhou nos olhos, com uma face brava, quase colérica, e disse:

— Chega. Não quero mais saber dessa história de parto natural. Nem de parto de cócoras, nem parto normal. Nada. Quero uma cesariana agora, !

Eu percebi que ela havia desistido mesmo. Estava apenas com seis centímetros, e o bebê era grande. Não me deixou nenhum espaço para tentar demovê-la da ideia. Fiz a cesariana na mesma hora. Mesmo assim, ela ficou brava comigo, di­zendo que eu não deveria tê-la deixado entrar em trabalho de parto, porque as dores eram horríveis, e que é algo insuportável e todas as outras coisas que paci­entes magoadas dizem. Ela teve uma chance de ter um filho de parto normal, e empoderadamente decidiu-se pelo que achava melhor. Foi protagonista de sua escolha, escolhendo a via que achava melhor diante de seus valores. É necessário ter a sabedoria para entender os sentidos últimos escondidos nas palavras. É fundamental valorizar a participação e o protagonismo pleno do nas­cimento humano. As palavras de “senha” podem cumprir o papel de avisar ao mé­dico (ou à equipe) que a cliente cruzou o limite do jogo; está desistindo de uma proposta e uma possibilidade. E isso deve ser sempre respeitado.

*   *   *

Olhei mais uma vez para Fátima e pude perceber que ela tinha medo. Mesmo tendo chegado tão longe, ela ainda sentia temor diante do seu parto. Depois de respirar fundo e ficar em silêncio, resolvi fazer um novo toque. Dilatação completa, bolsa íntegra, a cabeça do bebê estava mais baixa na pelve do que no exame anterior. Ainda estava alto, mas já havia descido. Foi então que eu dei mi­nha cartada final.

— Ok, minha flor. Você é quem sabe. Se você diz que não pode aguentar mais, eu acreditarei no que você diz. Se você quer terminar esse “suplício”, como você mesmo chama, então vamos lá.

Ela não tinha muita dor. Conheço “cara de mulher com dores”. Ela tinha medo, angústia, apreensão. E cansaço.

— Se realmente você chegou ao fim de suas forças, sou obrigado a acreditar em você, e não me restará outra opção a não ser acabar com tudo isso e operá-la. Para isso, basta chamar o anestesista e o auxiliar cirúrgico. Entretanto, eu impo­nho apenas uma pequena condição: só farei essa cirurgia se você olhar no fundo dos meus olhos e me disser que não suporta mais, que está no seu limite, que não pode mais esperar, e que vai querer uma cesariana, mesmo estando com a dilata­ção completa. Essa decisão vai ser sua, e seja qual for eu vou obedecer. Se eu fizer essa cesariana, será com tristeza, mas eu acreditarei em você e obedecerei à sua decisão. Eu estava solicitando a senha, a palavra que me confirmaria a sua desistência. Estava preparado para escutá-la, porque me mantinha fiel à ideia do protagonismo devolvido às mulheres. Peguei pesado, fui firme. Será? Disse a exata verdade dos fatos, mesmo com uma ênfase propositalmente dramática, mas estava realmente preparado para aceitar sua decisão. Minha postura era clara: “Você vai decidir. Você é responsável pelo seu parto. Você tem o poder nas mãos. Use-o”. Ela me encarou com olhos de súplica. Tentou balbuciar algo tipo “mas quanto tempo ain..”, mas eu lhe cortei:

— O tempo vai depender de você. Podem ser alguns minutos ou algumas horas ainda. Nada posso prometer, a não ser ficar ao seu lado aguardando e avaliando você e seu bebê. Nesse exato instante, ambos estão ótimos.

Ela estava com dilatação completa, e, mesmo que ainda não tivesse apresentado puxos, poderíamos considerá-la como estando dentro do segundo estágio do tra­balho de parto, que é quando o período de dilatação já se completou. Mas quanto tempo poderíamos aguardar até o nascimento do seu filho? Essa questão torna-se crucial nos casos em que a descida da apresentação fetal é mais lenta do que o normal, mesmo após ter se completado a dilatação do colo uterino. Em verdade sobre essa questão, a biblioteca Cochrane de medicina ba­seada em evidências é taxativa: “Se houver progressão do trabalho de parto, e ambos (mãe e bebê) estiverem bem, não há justificativa para se estabelecer um limite máximo para o segundo estágio do trabalho de parto”. Além disso, a relação entre períodos expulsivos mais lentos e morbidade fetal não existe. Os trabalhos bem acompanhados no mundo inteiro deixam bem claro aos profissionais que tra­balham com o nascimento humano que não existe vantagem alguma em interrom­per o desencadear de um processo de nascimento mais vagaroso pelo medo de uma alteração perigosa. Entre as técnicas e habilidades a serem utilizadas nessa situação, a mais efetiva e, no entanto, a mais difícil de ser encontrada, é a… paci­ência. Fátima ficou alguns segundos pensativa e cerrou fortemente os olhos quando a nova contração se deu. Passada mais essa “onda”, olhou novamente para mim e disse, depois de liberar mais um suspiro:

— O que eu preciso fazer, doutor?

Ufa… Por uns instantes, temi por ela, mas ela foi mais forte do que eu pensava.

Aí é que entrou a magia das mulheres. Eu lhe disse:

— Você está com a dilatação completa. Está sem nada “na frente” do seu bebê. Pode até fazer força se quiser ou sentir uma forte vontade. Pegue na mão da Zeza e saia caminhando com ela até o chuveiro. Fiquem lá vocês duas. Deixe que a água quente da ducha a acalme e relaxe.

Ela concordou e lá se foram as duas. Saí da sala e anotei em um papel o nome e o telefone do anestesista e da minha auxiliar. Pensei comigo: não vou usar esses números, ela vai conseguir. Seria um otimismo exagerado, ou apenas uma tenta­tiva de convencer a mim mesmo da possibilidade? Passaram-se uns 20 minutos, quando vi a entrada de Zeza na sala dos médicos esfregando as mãos. Olhei pra ela sem entender.

— Coroou — disse ela. — Já está ali! Eu vi, eu vi!

Não acreditei. Estava muito alto quando a examinei há alguns minutos. Poderia ela ter progredido tão rápido assim? Fui até o chuveiro e entrei quase debaixo da ducha. Incrível. Lá estava ele! Estava saindo mesmo! Pedi a Fátima que saísse do pequeno box e subisse na cama para parto de cóco­ras. É uma mesa da JICA que o hospital recentemente havia adquirido. Mais alguns minutos e lá vinha vindo ele. Devagar e lentamente. Assustei-me com o tamanho da cabeça. Era muito grande. Mas o desprendimento era suave, tran­quilo. O períneo suportou muito bem. Vinha vindo, vinha vindo. Ela olhou para mim, como que a perguntar o que fazer, e eu lhe disse:

— Sei que você está com uma contração. Deixe-o nascer. Não tenha medo. Você vai conseguir. Relaxe; tenha confiança.

Uma última força e a cabeça nasceu. Grande, redonda, sem nenhuma bossa. Tive que fazer uma manobra suave, porém firme, para o desprendimento dos ombros. O “resto” do bebê veio logo depois. Quando ele nasceu, eu não acreditei… Era enorme! Um gigante. Muito maior do que a previsão. Chorou logo depois. Era vermelho e redondo. Eu brinquei com ela: “Parece um chinês!” A pediatra não estava na sala porque havia sido chamada, minutos antes, para uma emergência, mas sua auxiliar ficou por perto para qualquer imprevisto. Nada aconteceu, apenas risos e alegria.

O mais surpreendente verificamos depois. O bebê pesou nada menos do que 5,355 quilos. Um trabalho de parto rápido e sem nenhuma laceração perineal. Eu falei para as enfermeiras presentes que, contando, ninguém acreditaria. Essa pa­ciente deveria estar em uma sala de recuperação pós-anestésica, cheia de soros e medicamentos, dopada e sonolenta e, no entanto, estava amamentando seu bebê gorducho, sem nenhum ponto, sem nenhuma droga e sem nenhum pro­blema. Apenas felicidade. A equipe de enfermagem foi maravilhosa, o que reforça a minha convicção de que bons hospitais não são feitos de máquinas sofisticadas ou instalações suntuosas; são feitos de gente, a matéria-prima mais complicada, rara e valiosa. As enfermei­ras e auxiliares permaneceram o tempo inteiro nos prestando auxílio sem interferir, e quando vinham ter conosco sempre traziam uma palavra de encorajamento e confiança.

A presença da Zeza foi fundamental; um capítulo à parte nessa história. Sua can­dura e paciência foram o toque mágico que despertou as capacidades que Fátima trazia consigo. Sem ela, não teríamos tido sucesso. A feminilidade com que esse nascimento ficou impregnado é que possibilitou que sua capacidade de parir vi­esse à tona. E ficou para mim uma grande lição: acreditar sempre, porque as mu­lheres merecem esse crédito. Ao ver Fátima agarrada ao seu filho, lembrei que todas as mulheres do mundo estavam de parabéns. Uma vitória como essa é uma conquista de cada uma das mulheres do mundo. Uma vitória contra o descrédito e a desconfiança.

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Memórias do Homem de Vidro – 07

Simulacrum

Passados alguns anos da saída da residência médica, minha inquietude com a obstetrícia atingia limites preocupantes. Já naquela época eu trabalhava em hospitais de periferia como plantonista do centro obstétrico. Nesses locais, eu po­dia vivenciar o tipo de obstetrícia que se oferecia à grande massa da população brasileira, pois a clientela atendida era basicamente formada por trabalhadores de baixa renda oriundos do cinturão de pobreza que circunda as grandes cidades. Ali, à margem dos grandes centros, os procedimentos rotineiros não diferiam muito daqueles que aprendi no transcorrer da residência médica. As condutas eram to­madas sem um critério sólido de embasamento científico, e atitudes aparente­mente banais, como abolir a tricotomia (corte dos pelos pubianos), eram vistas pelos colegas e pela enfermagem com desconfiança e, muitas vezes, com explí­cita aversão. Eu, entretanto, já estava por demais contaminado com uma forma diferenciada de entender o parto, e essa compreensão se manifestava inexora­velmente na minha prática cotidiana, tornando-se um incontornável gerador de tensão.

Meu ingresso na profissão foi cercado de desafios e conflitos inevitáveis. Algumas auxiliares de enfermagem desses hospitais eram antipáticas aos meus procedi­mentos médicos, e dentre elas algumas eram manifestamente contrárias. Diziam que não achavam correto “deixar uma mulher para ter filhos como uma galinha botando ovo”. Não aceitavam a quebra que eu produzia em um modelo de partos que elas repetiam irrefletidamente havia mais de 20 anos. Para elas, as explica­ções científicas sobre a postura de cócoras, por exemplo, eram completamente inúteis, e me diziam que, “se fosse certo nascer assim, o senhor não seria o único a fazer”. Na verdade, elas acreditavam que eu assistia partos de cócoras só “para ser diferente e chamar atenção”. Nessa época, eu já era alvo do escárnio de al­guns colegas, mas as próprias funcionárias, mulheres que tratavam de mulheres, eram tão ou mais cáusticas. Não foram poucas as que me informaram que não gostavam de trabalhar comigo, porque eu era “cheio de manias”. Minha presença era considerada uma ameaça. Minha pior “mania” era pedir que tomassem cuidado com tudo que fosse dito na frente das grávidas em trabalho de parto, porque sua fragilidade, causada pelo estado alterado de consciência, as tornava facilmente susceptíveis. A entrada de um centro obstétrico, além de ser um local de extrema violência institucional, é também um local onde se encontra muita “patologia da palavra”, que, em se tra­tando do nascimento, pode ser entendida como “a morbidade causada pelo uso inadequado de expressões, atos ou gestos que podem fazer a paciente adentrar o ciclo vicioso do medo-tensão-dor”. Maximilian, meu colega e “guru”, batizou esse processo de verbose.

Lembro-me de uma história em que a desatenção e o uso irresponsável de uma expressão colocou um grupo inteiro de pessoas em pânico. Nesse mesmo hospital de periferia, há mais de 10 anos, uma paciente adentrou o centro obstétrico com uma ultrassonografia demonstrando um abortamento fetal precoce, de menos de 10 semanas. Vinha encaminhada diretamente da clínica de ecografias, e parecia estar já conformada com a perda da gravidez. Apresentava sangramento vaginal moderado e o colo uterino estava aberto. Conversei um pouco com ela, expliquei como seria feita a raspagem uterina e pedi que o marido ficasse por perto para estar ao seu lado quando acordasse da anestesia. Ela concordou, mas pediu que eu falasse com ele, porque se encontrava nervoso e preocupado. Determinei, en­tão, que uma das auxiliares de enfermagem solicitasse a presença do marido para falar comigo.

A funcionária prontamente dirigiu-se à porta de entrada do centro obstétrico e de lá disse em voz alta, dirigindo-se para a pequena aglomeração de familiares que aguardava informações:

— Por favor, o marido da paciente que perdeu o bebê, queira entrar para falar com o médico.

Detalhe: naquele momento, estavam internadas cinco ou seis pacientes em tra­balho de parto. Para cada grávida, existem em média 2,5 acompanhantes, o que significava quase 15 pessoas aguardando, espremidas e ansiosas na pequena sala. Quando a funcionária disse essa frase, todos se ergueram em sobressalto para saber quem era a infeliz paciente que havia perdido um bebê. Afinal, poderia ser qualquer uma das gestantes internadas. Criou-se um alvoroço que só foi con­tornado quando eu expliquei a cada um a confusão, e reforcei que as suas espo­sas/filhas/irmãs, assim como seus bebês, estavam muito bem.

Apesar de a admissão nos centros obstétricos ser marcada por condutas equivo­cadas, como a narrada acima, era no interior deles que ocorriam as mais questio­náveis e insensatas atitudes. Continuava sem entender porque, apesar de termos veículos ágeis e de fácil acesso, como a Biblioteca Cochrane, os livros do Ministé­rio da Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde, poucos médicos se inte­ressavam em discutir medicina baseada em evidências. Sentia-me isolado, por­que, diante dos meus questionamentos, meus colegas frequentemente se justifi­cavam dizendo que suas condutas estavam calcadas em “anos de experiência”, ou que “foram ensinados dessa forma pelo doutor Fulano, que era um grande mestre”. Não era fácil encontrar posturas críticas e criativas; a grande maioria re­petia atitudes e jargões padronizados. Diante desse cenário de conformismo com o modelo vigente, minha prática como obstetra que assistia “partos de cócoras” era vista como “modismo”, algo estranho e sem importância, que apenas algumas mulheres eivadas de fervor místico consideravam digno de consideração. Eu era tratado como “sonhador”, ou alguém que enxergava a medicina de forma român­tica e ingênua.

Meu sofrimento era incrementado pela ausência de explicações convincentes para as idiossincrasias da prática obstétrica. A despeito de ter percebido os maus re­sultados produzidos pela distância que mantínhamos das evidências científicas, eu ainda não tinha as respostas para uma pergunta que me torturava: por que, apesar das provas contundentes de que já dispomos, nós, médicos, continuamos a agir de forma mitológica e repetitiva, reproduzindo terapêuticas comprovada­mente inúteis e/ou perigosas para as nossas clientes? O que nos movia? Por que a distância entre nosso saber e nosso gesto? Por que nossas condutas eram tão afastadas do cientificamente comprovado como útil e seguro?

Naquela época, esse hospital tinha índices de cesarianas superiores a 45%, e questionar a validade de, por exemplo, episiotomias de rotina (entre outras con­dutas corriqueiras e igualmente equivocadas) era considerado quase um sacrilé­gio. Essas perguntas, relativas às práticas comprovadamente ineficazes ou inade­quadas, eram frequentemente respondidas pelos colegas com afirmações do tipo: “É o efeito inercial; agimos assim porque mudar é sempre complicado e difícil. Fomos treinados em um determinado tipo de proceder e nos mantemos nele por hábito”. Em uma frase que acabou famosa através de uma tese da Dra Simone Diniz, uma ginecologista explicava a razão pela qual aplicava episiotomias nas suas pacientes, apesar de saber de sua inutilidade: “Eu até tento não fazer, mas minha mão parece que vai sozinha!”. Também chamavam essa conduta repetitiva e automática de “hábito vicioso”, que poderia ser definido como a “dificuldade em mudar um procedimento previamente conhecido que nos oferece a segurança de um resultado previsível”.

Nada disso me satisfazia. Eu costumava responder a essas afirmações com uma pergunta capciosa: “Se você ganhasse um milhão de dólares na loteria, continua­ria indo para o trabalho de ônibus porque teria dificuldade em romper um hábito de 25 anos?” Nunca escutei nenhuma resposta afirmativa a essa pergunta; ninguém manteria um costume como esse sem ter uma boa justificativa. A tese de “repeti­ção inercial” ou “hábito” parecia querer esconder motivações inconscientes, que provavelmente seriam complexas ou constrangedoras demais para serem explici­tadas.

Mas que motivações inconscientes seriam estas? Tratar-se-ia, por acaso, de sa­dismo por parte dos médicos? Utilizariam eles cesarianas em excesso, enemas, tricotomias, episiotomias etc., muito além do que seria medicamente admissível, apenas para que suas pacientes sofressem intervenções injustificadas? Seriam os médicos tolos, ignorantes e cegos às realidades disseminadas modernamente sobre a validade desses procedimentos? Não pareciam ser estas as respostas. Rebater as críticas a uma prática médica cientificamente equivocada com argumentos de ordem moral me parecia uma tá­tica escapista, muito utilizada para explicar outros fenômenos sociais. Assim era com a criminalidade, tratada como uma mácula social criada pela ausência de va­lores éticos, dessa forma mascarando as questões econômicas e culturais envol­vidas na distribuição da riqueza. Não me permitiria acreditar nessa interpretação tacanha da realidade, que mais escondia do que revelava respostas. Deveria exis­tir algo mais profundo, recôndito e de difícil acesso que pudesse responder a es­sas questões.

Se as explicações eram escassas, os fatos, por sua vez, eram inquestionáveis: bastava uma passada superficial pelas estatísticas para perceber a brutal distân­cia entre realidade e evidências científicas. Na minha cidade, existiam hospitais privados em que o índice de cesarianas era maior do que 80%. Essa realidade ainda vigora incrivelmente nos dias de hoje, e depois do trabalho de Joe Potter e Kristine Hopkins (mostrando que as cesarianas não são a preferência das ges­tantes, como foi historicamente apregoado) já não podemos culpar as mulheres pela opção insensata do nascimento pela via cirúrgica. Nossa mortalidade ma­terna, que estava nessa época em um patamar superior aos atuais 75 por 100 mil nascimentos, é fortemente ligada às hemorragias e infecções — muito mais fre­quentes nas cesarianas — e está entre as mais altas do mundo, pareada com os mais pobres países da África. Onde estaria, então, a resposta para esse divórcio entre ciência e prática médica?

As explicações para o intervencionismo no nascimento humano às vezes apre­sentavam características que oscilavam entre o absurdo e o bizarro. Em uma con­versa que tive alguns anos atrás com um colega obstetra durante o congresso de ginecologia e obstetrícia da Febrasgo no início deste milênio recolhi essa pérola, que tentava explicar o índice abusivo de cesarianas no nosso país. Dizia ele, com ares de inequívoca sapiência, que o problema do excesso das cesarianas no Bra­sil estava relacionado com a miscigenação entre negros e europeus, pois criava as condições para uma desproporção céfalo-pélvica. Sendo os negros menores e mais “estreitos”, acabavam por obstaculizar o nascimento de indivíduos com ge­nes europeus, maiores e mais largos. Olhei para o colega sem acreditar na serie­dade da sua tese racista e disse-lhe: “Mostre-me seus dados! Estarei pronto para acreditar nisso se o senhor me apresentar de onde saiu essa afirmação”. Ele, ob­viamente, nunca me enviou nenhuma informação sobre isso.

Comecei então a procurar em outras áreas do conhecimento as respostas que a medicina não me apresentava, principalmente na história, na psicanálise e na an­tropologia. Passado algum tempo, caiu-me nas mãos um dos artigos mais eston­teantes sobre a obstetrícia contemporânea que eu já havia colocado meus olhos: Obstetrical Training as a Rite of Passage, de Robbie Elizabeth Davis-Floyd. Rob­bie é uma antropóloga americana e ativista do nascimento, que escreveu vários livros e artigos sobre o parto humano através de uma visão antropológica. Encon­trei esse artigo “por acidente”, ao vasculhar as referências bibliográficas do livro Obstetric Myths and Research Realities, da educadora perinatal Henci Goer. Os capítulos finais desse precioso livro são todos dedicados ao modelo que Robbie descreveu sobre as motivações para os procedimentos repetitivos e ritualísticos da prática médica contemporânea.

Foi uma descoberta reveladora e violenta. Ali, pela primeira vez, encontrei o signi­ficado da ritualística médica, tecnocracia e rituais de passagem. A leitura desse artigo — e posteriormente de todos os livros publicados pela Dra. Robbie — fez com que o meu entendimento sobre a obstetrícia desse uma guinada fabulosa, levando de roldão toda a minha vida.

Coincidentemente, poucos meses depois da leitura deste artigo, chegou na minha cidade o filme “Matrix”. Seduzido pela expectativa de um filme de aventuras e fic­ção científica, acabei sendo surpreendido por uma instigante e estonteante metá­fora para a compreensão do mundo contemporâneo, que produziu um profundo choque no meu entendimento sobre a realidade circundante. A partir de então, fiquei tão impactado com essa coincidência que comecei a traduzir o mundo em que eu estava inserido através da metáfora poderosa dos irmãos Wachowski.

Quando saí do filme, em 1999, estava acompanhado dos meus fiéis escudeiros, Lucas e Bebel. Só me permito ir ao cinema assim escoltado, porque depois de qualquer sessão se forma um debate acalorado sobre o filme, regado a Coca Light e suco de laranja. Sempre assim, mesmo que o filme seja insuportavelmente ruim. Dessa vez, não foi diferente. Saí da sessão com a nítida sensação de que havia visto mais do que um filme. Havia assistido algo que tinha a ver com a minha vida, e uma maneira específica de enxergar o mundo. Ainda emocionado, encarei meu filho Lucas e, com o dedo apontando ameaçadoramente contra seu peito, disparei:

— Lucas, não permita que seus olhos o enganem. O mundo é feito de ilusões, e a maior delas é a de que elas são obra apenas de nossa imaginação. A ilusão é a face oculta da realidade. Olhe para o simbolismo abrangente contido nesse filme. Não permita que os efeitos especiais ofusquem sua compreensão da verdade, verdade esta que se esconde por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Existe algo de Matrix aqui, nesta cafeteria. Existe algo de Matrix na sociedade em que vivemos, assim como dentro de você. Os meandros do seu inconsciente escondem porções que seriam violentas até mesmo para a sua inte­gridade. Tem certeza de que é realmente Coca-Cola o que você está bebendo?

Lucas me encarava com atenção, e certamente levou a sério o que eu estava di­zendo. Olhou para o meu dedo em seu peito e sorriu. Seu sorriso me dizia que também acreditava em uma forma outra de ver a realidade, apesar da sedução apresentada pela experiência cotidiana dos sentidos. Bebel sacou na hora. Olhou para o suco de laranja e fez cara de nojo. Voltou-se para mim, com a face ainda contorcida, e disse:

— Vou devolver esse suco, “paps”; está cheio de “bits e bytes”!

A possibilidade de analogias infinitas e criativas com o mundo que nos rodeia me pareceu fascinante desde o princípio. Entendi que o mundo, assim como em Ma­trix, é sustentado por uma arquitetura invisível, criada por nós mesmos, para nos fixar ao core system da sociedade, e consolidar os valores fundamentais sobre os quais nossa vida social se assenta. Somos tão somente seres guiados por forças incorpóreas e poderosas sem que nos apercebamos disso. Agimos socialmente tal qual marionetes, sustentadas por finos arames invisíveis ao olho desarmado. Ime­diatamente, inseri a obstetrícia contemporânea nesse cenário, e sobre essa ideia tracei os inevitáveis paralelos com o trabalho de Robbie E. Davis-Floyd, que incri­velmente não assistira Matrix.

“O que quer a Matrix?”, perguntaria em “A Pílula Vermelha” o articulista Read Mer­cer Schuchardt. “Ela quer manter a nós, humanos, escravizados pelas nossas ilu­sões, a principal das quais é a de que tecnologia não nos escraviza, e sim nos liberta.”

Percebi a existência de uma ultraestrutura que governa o atendimento às mulhe­res gestantes e que pretende conformá-las com o mundo como foi construído, para que obedeçam ao sistema sem contestá-lo. A gestação, com sua natural fra­gilidade, é o momento ideal para determinar a posição específica da mulher na sociedade, assim como ensiná-la (doutriná-la) sobre a forma como seu filho deve ser inserido na mesma. Apesar da presença de absurdos incontestes, equívocos inaceitáveis e crenças insustentáveis, a fé no sistema, e nos seus condutores, deve persistir. Olivier Clerc, pensador francês contemporâneo, alinha de forma muito curiosa a forma da medicina atual lidar com a realidade e suas interpreta­ções, pareando-a com a religião e considerando-a a sucedânea desta no imaginá­rio social, no qual a “verdade” pode ser buscada através dos “clérigos modernos”, que parecem ter trocado a batina pelo jaleco. Diz-se de Santo Agostinho, padre dos padres, a frase “Credo quia absurdum” (creio por ser absurdo), e nisso colo­cava a força de sua fé. Parece que dos médicos solicita-se o mesmo tipo de vin­culação poderosa e pré-racional a um modelo religioso e mítico, porque essa liga­ção é fundamental para a manutenção do sistema.

No que tange à obstetrícia e ao nascimento humano, hoje em dia o sistema mito­lógico, etiocêntrico, iatrocêntrico e hospitalocêntrico da medicina ocidental nos pede que acreditemos que as mulheres são incompetentes para gerar e parir seus filhos, mesmo que nos demonstrem diuturnamente sua capacidade e talento. A epidemia de cesarianas e, modernamente, as terapias de reposição hormonal, a ideologia da ablação menstrual e a proliferação de clínicas de fertilização artificial são demonstrações claras de uma visão específica da sociedade sobre o feminino e a mulher. Essas manifestações e fenômenos sociais ganham sentido contempo­raneamente porque nos levam diretamente ao âmago do sistema de valores de nossa sociedade, que se ergue em nome do patriarcado e do capitalismo, através de um modelo cartesiano de percepção da realidade. No sistema patriarcal, não há lugar para mulheres poderosas e livres. Elas devem acreditar — como os ha­bitantes da Matrix — que o lugar onde estão (o sistema de valores que as consi­dera subcidadãs) é o melhor para elas. Esse modelo é o cimento básico que nos une. Temos medo de perder o controle sobre tudo o que construímos enquanto humanidade. Uma sociedade baseada na igualdade nos amedronta.

Em um mundo que dissemina a inferioridade básica das mulheres, é necessário que elas mesmas sejam convencidas dessa realidade, assim como é necessário que o pobre se convença de que sua pobreza é obra do destino ou de sua etnia, para que o mesmo não confronte o sistema distribuidor de riquezas. Toda a cons­trução da obstetrícia contemporânea se assenta sobre a crença básica da defecti­vidade essencial das mulheres porque, baseada nesse modelo, a medicina obsté­trica poderia construir as ferramentas e tecnologias adequadas para consertar esta “máquina”, agora entendida como equivocada e defeituosa, como bem nos revelou Robbie Davis-Floyd. Mas essa visão sobre o parto não se estabelece em um vácuo conceitual. Outros acontecimentos exclusivamente femininos como a menstruação — chamada por alguns de “sangria inútil” — e a menopausa são exemplos claros de eventos fisiológicos tratados pela ciência médica como patolo­gias. Minha pergunta aos colegas na época era: que evento fisiológico masculino merece um tratamento pela medicina contemporânea?

Recebia apenas sorrisos como respostas. A verdade é que o homem não neces­sita ser tratado em sua normalidade funcional, porque ele é o espelho de Deus. Ele traz consigo a perfeição Divina in essentia. O contrário acontece com a mu­lher. Culpada, entre outros crimes, pelo “pecado original”, foi punida pelo Senhor com a pena dos partos dolorosos e do sangramento mensal. Mulheres são a falha, o desajuste e o equívoco da criação. Henci Goer, educadora perinatal americana e ativista do CIMS – Coalizão para a Melhoria dos Serviços de Maternidade fala que a medicina trata como disfuncional tudo aquilo que foge ao padrão. O parto foge dos padrões da normalidade porque não ocorre nos homens.

Levando mais adiante nossa ideia, mais do que acreditar na sua defectividade, faz-se mister que as próprias mulheres disseminem essa crença. Iniciando esse processo, é fundamental que elas sejam doutrinadas desde o berço com a ideia de que uma mulher tem uma incompetência básica inata, que faz com que qual­quer uma de suas decisões tenha que passar, em última instância, pela ordem do masculino. O parto, momento apical da feminilidade, é o momento ideal para que essas crenças sejam reforçadas e disseminadas. Ali podemos encontrar todos os valores sociais profundos encenados de forma sutil, mas poderosa. A natural abertura sensorial determinada pelo evento nos propicia a possibilidade de instruir as mulheres e seus filhos nas posições específicas que desejamos que ocupem na estrutura social. Por essa razão, o estudo da simbologia representada no nas­cimento nos leva ao cerne dos valores mais profundos que estruturam nossa civili­zação.

Olhar para esse cenário de fora da Matrix é angustiante. Uma tortura. Em Matrix, diante da verdade revelada a Neo por Morpheus, este inicialmente negou. Depois vomitou. Desperto do sono tecnocrático, não queria acreditar no que via. Não su­portou a confrontação da imagem que nutria da humanidade com a dura realidade que seu libertador lhe apresentou. Teve náusea, fruto da impotência diante de um sistema muito maior do que ele próprio. Sentiu-se fraco e desesperançado.

As pessoas que se defrontam com essa nova forma de encarar a realidade na medicina (assim como em outras áreas do conhecimento) acabam sofrendo o mesmo processo pelo qual Neo (de “novo”, mas também um anagrama de “one”, o “um”, ou mesmo “éon”, energia emanada de um ser supremo) passou ao ser res­gatado da fantasia da Matrix. Dor, sofrimento, negação, angústia, tristeza, re­morso, vergonha. Descobrem também que é necessário passar por um ritual de despojamento das falsas certezas e do orgulho rastejante para, assim renovadas, serem verdadeiramente leais com sua própria existência. Lembram que nosso he­rói fica nu ao ser desplugado? Parece mesmo a nudez de São Francisco de Assis no filme Irmão Sol, Irmã Lua, quando este abre mão de seus valores — dinheiro, roupas, crenças — para adentrar uma vida de desapego aos valores mundanos.

Não existem orgulhosos no céu.

A leitura do artigo de Robbie, que se transformou em um maravilhoso capítulo do seu livro Birth as an American Rite of Passage, me deu a exata dimensão de mi­nha arrogância e da minha estupidez, mas ao mesmo tempo me deu a esperança de que apenas através do reconhecimento de nossas próprias fragilidades é que podemos nos fortalecer. “Toda a vitória se ergue dos escombros de uma derrota”, como sempre me dizia Max. Toda relação pessoal se instaura sobre um fracasso egoico. Toda esperança se cria quando reconhecemos nossas fraquezas. Neo percebeu sua vocação libertária ao se defrontar com sua infinita pequenez e insig­nificância, mas para isso foi necessário despertar no “campo de cultivo”, as plan­tações em que a humanidade era usada como “energia barata” pelas máquinas.

Matrix está aí fora, criando nas mulheres a ideia de que, se elas se submeterem aos ditames que “sempre existiram” e que “incontestavelmente são os verdadei­ros” (em outras palavras, a “realidade expressa”, o roteiro que se aplica sobre as marcas do real), elas estarão seguras para todo o sempre. A Matrix quer fazer acreditar que sem as máquinas (tecnologia/masculino/instituição) nenhuma mulher pode arcar com suas aptidões biológicas. A Matrix não admite que o poder seja repartido ou que a fraternidade seja um modelo factível de relação entre as pes­soas. A Matrix nos diz que a estrutura básica deste mundo não pode ser mudada, sob pena de que esse mesmo mundo venha a ruir.

Ao acordar no mundo real, Neo foi avisado por Morpheus de que a dor que sentia nos olhos se devia ao fato de que nunca anteriormente havia enxergado. Ao ne­garmos a oportunidade de vislumbrar a dura realidade de um sistema de crenças centrado no poder dos que dominam a tecnologia, sucedânea contemporânea da religião, ficamos também cegos às verdades outras que surgem da própria experi­ência feminina com o nascimento. Disse-lhe também que pessoas mais velhas — e talvez aqui “velho” não esteja necessariamente ligado à idade cronológica — dificilmente eram libertadas da Matrix, porque o resultado era invariavelmente ruim.

Algumas crenças ficam tão impregnadas que não esvaecem jamais. Neo, em Ma­trix, escondia seus programas piratas em um livro que retirou da estante. Nesse livro, além de vários discos, havia um maço de notas, mostrando um aspecto mer­cantilista do personagem; era, provavelmente, o combustível para que ele pu­desse subsistir na Matrix. O nome desse livro é Simulacra and Simulation, de Jean Baudrillard. Nele Baudrillard apresenta as teses fundamentais do pós-moder­nismo. A ideia básica é de que o mundo real não mais existe, permanecendo entre nós apenas o seu simulacro. Após a criação da linguagem, o “mundo real” deixou de ser possível, como nos ensinou Lacan, sobrevivendo apenas a sua versão, construída por nós. O parto real não mais existe, apenas a variante que criamos dele, construída pela medicina ocidental contemporânea.

Remontando-nos a outro filme, O Sentido da Vida, no capítulo “O Milagre do Nas­cimento”, os comediantes ingleses do Monty Python nos mostram uma cena de nascimento hospitalar contemporâneo, em que aparece como estrela principal não a mulher parindo, mas a máquina que faz “ping”. Indagados pela angustiada paci­ente do que se tratava tal máquina, explicam, orgulhosos, que essa tecnologia era a que “poderia dizer se o bebê ainda estava vivo”. No caso, era a tecnologia quem ditava as percepções maternas, como na famosa imagem apresentada por Robbie em uma de suas palestras, na qual uma mulher observa o monitor fetal acredi­tando que os batimentos cardíacos que ela escuta são verdadeiramente produzi­dos pela máquina, e não pelo seu bebê. A verdade subjugada pela sua interpreta­ção.

O Dr. Marsden Wagner, da OMS e ativista da humanização do nascimento (que para a minha trajetória funcionou como Morpheus para Neo), costuma contar a história de que, falando para médicos em grandes audiências, solicitava: “Ergam o braço quem dentre vocês já acompanhou um parto domiciliar”. A reação era inva­riavelmente a mesma: em uma plateia de 400 médicos, nenhuma mão se erguia. Aqui aparece a face pós-moderna mais dolorosa da medicina: perdemos total­mente o contato com a realidade do nascimento. Perdemos seu odor, seu clima, sua temperatura e gosto. Nós, médicos, só conhecemos a sua representação, seu simulacro, sua imagem refletida na parede da tecnocracia. Continuando o raciocí­nio do articulista Dino Felluga, no seu artigo Matrix: Paradigma do Pós-Moder­nismo ou pretensão intelectual?, “fizemos um roteiro tão assemelhado com a ver­dade que aquele se justapôs a esta. Hoje em dia, a realidade é que se desfaz por entre as linhas riscadas do mapa”. Mentimos o parto, falseando a natureza.

Minha mais agradável fantasia é imaginar The Farm, no Tennessee, a comuni­dade pós-hippie onde trabalha e mora a parteira Ina May Gaskin, como a Zion de verdade, onde o nascimento pode ser tratado despido das múltiplas capas que o aprisionam no mundo tecnológico. Nesse “laboratório” de afeto e sexualidade apli­cada ao nascimento, já ocorreram mais de 2000 nascimentos desde os anos 70, e a taxa de intervenção é baixíssima (índice de cesarianas de 1,4%), com resultados maternos e neonatais superiores aos melhores centros tecnológicos do mundo. Por que a obstetrícia contemporânea desvia seu olhar desse tipo de realidade? Por mais que continuemos em uma realidade artificial criada pela cultura, como disse Morpheus, “um mundo que foi colocado em frente aos seus olhos para cegá-lo da verdade”, o mundo real continua existindo como “farpa na sua mente que o faz enlouquecer”, demonstrando, através da inquietude, da indignação surda e da inconformidade, a possibilidade de questionar as ideologias dominantes. A sexua­lidade viva que emana de uma mulher parindo, ou a ideia de uma “Xanadu” pós-moderna, em que o parto poderia ser vivido como um processo de empodera­mento feminino e em estado de graça, funcionam como as mais doloridas farpas com que convivo.

Por outro lado, quais as estratégias de mudança no modelo vigente? Como con­vencer os médicos a modificar suas condutas, direcionando-os para uma postura profissional embasada em evidências e centrada nas necessidades de suas paci­entes? Além disso, como se comporta um sistema que se ergue sobre um modelo cartesiano, positivista, capitalista e patriarcal e que coloca um profissional, invaria­velmente mal pago e pressionado por resultados, como seu “ponta de lança”? Tentemos fazer esse médico mudar sua conduta profissional, mostrando que suas atitudes médicas, mesmo que aceitas por seus pares, arriscam a vida de suas pa­cientes e bebês, e ele lhe dirá que, no atual contexto médico e jurídico, apenas os que defendem o parto humanizado e a medicina baseada em evidências é que são condenados.

A realidade do dia a dia nos demonstra que os médicos são também vítimas desse paradigma, criado por todos nós. Nesse modelo, baseado no medo ances­tral da confrontação com o desconhecido, somos levados a criar sistemas de crenças e rituais que nos oferecem a ilusória ideia de controle sobre a natureza. Sobre essas crenças, passamos um fino verniz de intelecto, para que elas fiquem justificadas perante nossa visão racionalista, como nos fala Olivier Clerk. Médicos confrontados com o nascimento humano sentem medo porque esse evento foge ao seu controle, tal qual a erupção de um vulcão desobedece nossas vontades. A forma ritualística de realizar procedimentos obstétricos padronizados produz um senso de ordem cultural que se impõe sobre o caos da natureza, o que nos produz alívio, assim nos falava Robbie Davis-Floyd em Birth as an American Rite of Pas­sage.

Nosso sistema de saúde é completamente aderido à Matrix. Somos governados por um modelo de crenças tecnológico, naquilo que se chama modernamente de “infotecnocracia”, que é a “ideologia que coloca em posição de poder aqueles que controlam a tecnologia e a informação” conforme a definição do antropólogo ame­ricano Peter Reynolds. Ela se comporta como o “sistema operacional” da Matrix contemporânea ocidental. Basta olhar ao redor e perceber isso no nosso quotidi­ano. Mesmo que a biblioteca Cochrane e a OMS despejem toneladas de informa­ção a respeito da forma segura — e barata — de tratar as mulheres, grávidas e puérperas, continuamos atrelados ao sistema mitológico em que fomos inseridos, porque o modelo obedece às premissas básicas desse sistema de crenças. É o que chamaríamos de “mapa” ou “roteiro” do parto, o que Baudrillard chama de “segunda ordem da simulação”, em que o simulacro mascara a realidade. O parto tecnocrático como o conhecemos é uma alegoria do que é em verdade, e só a confrontação com o fenômeno na natureza é que poderia nos livrar do engodo da simulação.

Muitos anos depois, Madalena me ofereceria essa confrontação, permitindo-me a possibilidade de ver outra realidade. Usando a metáfora de Marsden Wagner em Fish Can’t See Water, a experiência com o parto desmedicalizado, fora do con­texto da tecnocracia, seria o salto para além da superfície do oceano, que permiti­ria ao peixe perceber a água em que esteve sempre envolvido. “Fora da infotecnocracia não há salvação”, diz o apologista da tecnologia aplicada ao nascimento humano (e que, obviamente, lucra com ela). Não conseguimos, a não ser com uma quantidade enorme de esforço e sofrimento, nos desvencilhar disso, porque os que se atrevem a sair da Matrix tecnocrática são vistos como he­réticos e perigosos. Em grego, “hairetikós” significa “aquele que escolhe”. Ter a possibilidade libertária de escolher nos torna hereges e, portanto, suscetíveis de perseguições. Curioso, apesar de trágico, é perceber que frequentemente, como Cristo ou Neo, os hereges são apedrejados exatamente por aqueles a quem ten­tam libertar!

“Tudo se resume a escolhas”, disse Neo ao Arquiteto. Escolher. Decidir seu des­tino. Fazer caminhos com suas próprias pernas. Nada mais revolucionário, peri­goso e… herético. Apenas para citar uma ritualística ainda firmemente incorporada à prática médica, temos a episiotomia rotineira realizada nos hospitais de nosso país. Nessa ques­tão específica, o bem-estar ou segurança da paciente não é o fator que mais se considera ao se traçarem protocolos. Se fosse assim, bastaria ler artigos, estudar prós e contras, e tudo se resolveria. Convenientemente, não faríamos uma cirurgia mutilatória que nunca conseguiu provar sua validade como procedimento de ro­tina. Dessa forma, a episiotomia seria realizada de forma ética e em um número muito reduzido de casos.

Não é o que acontece. Diante das evidências contra a sua realização de rotina, que se acumulam há mais de duas décadas, é muito difícil entender porque essa cirurgia é feita em até 95% dos partos no meu país, quando deveria ser feita em menos de 10%. Sem uma explicação de caráter médico, e não caindo na ingênua armadilha do “hábito”, é fundamental entender em que espaço de discussão — técnico, sociológico, psicológico, antropológico — ela pode ser inserida. Robbie, mais uma vez, mostrou-nos o caminho para a compreensão dos rituais que se de­senvolvem nos ambientes hospitalares em se tratando do nascimento humano. Existem inúmeros fatores que nos impulsionam a realizar procedimentos médicos: o mais poderoso de todos é a ritualística. É importante salientar que os procedi­mentos ritualísticos podem ser (e frequentemente o são) ao mesmo tempo simbó­licos e operacionais. Isso quer dizer que o fato de uma episiotomia ter uma expli­cação médica (mesmo que falsa) como proteger a vagina de lacerações e fragi­lidades do assoalho pélvico — não impede que ela seja realizada com um pode­roso conteúdo simbólico.

Fazemos episiotomias ritualisticamente. Também vestimos branco, usamos um jargão hermético, fazemos tricotomias e enteroclismas de forma ritual. O ritual existe no comportamento humano para conformar a realidade a um padrão racio­nal e fenomenológico previamente reconhecido. Realizamos isso no nosso dia a dia, e fazemos isso desde que o mundo é mundo, e desde que temos medo do caótico e do incerto. Essa é a razão básica pela qual lançamos mão de rituais sempre que nos deparamos com a incerteza dos fenômenos naturais. Todos estes são fenômenos dominados por uma instância superior à nossa cons­ciência, mesmo que, nos dias atuais, já tenhamos desvendado alguns segredos que estavam escondidos da nossa razão. Ainda vemos a natureza com medo e assombro. Mesmo assim, a essência desses acontecimentos continua submersa em um oceano de mistérios. Para fugir do pânico que nos assola ao olhar para a face lívida do desconhecido, criamos rituais, que tentam fazer com que esses eventos se ajustem aos nossos padrões de compreensão racional. Assim sendo, acreditamos sinceramente que o sacrifício dos carneiros poderia satisfazer a sede de vingança das tormentas e pensamos que rezar uma “Ave Maria” exatas 75 ve­zes vai fazer nosso time fazer um gol nos últimos cinco minutos da partida.

Da mesma maneira com que afugentamos nosso medo através do recurso da ritu­alística, aplicamos esse fingimento (inconsciente) na nossa arte de curar. Quando falamos de episiotomia, e da complexa ritualística hospitalar, é impossível não entender esses eventos como algo que faça parte de uma grande engrenagem, que visa a perpetuar um sistema de crenças e impedir que outras formas de com­preensão sejam estimuladas. Como visto acima, episiotomias, enemas, afasta­mento da família, roupas de CO, etc. são procedimentos que visam a nos trazer a ilusória sensação de controle sobre os fenômenos da natureza, e a ritualística aplicada tem a intenção de colocar em posição de destaque os profissionais que detêm o poder da técnica e da informação. Essas condutas automáticas e irrefleti­das ilusoriamente parecem modificar o rumo caótico (porque fora do nosso con­trole) do nascimento. Mesmo que as pesquisas demonstrem que não existe liga­ção alguma entre episiotomia e melhora das condições fetais e/ou maternas, a prática médica contemporânea a perpetua de forma ritual, mística, repetitiva e pa­dronizada, e com conteúdo simbólico subjacente. Nada poderia se encaixar me­lhor no conceito de rito.

Parece que a evidência científica, por si só, não produz quase nenhuma modifica­ção importante no nosso comportamento clínico. Esse foi o ponto de partida para a minha inquietude em relação à mitologia e à ritualística em obstetrícia. Percebi claramente que existem fatores muito mais poderosos para o controle dos proce­dimentos médicos do que aquilo que a racionalidade científica nos pode trazer. O ritual é um sistema pré-racional, portanto ligado ao desejo, e por essa razão é tão poderoso e pleno de vigor, mesmo em uma civilização pretensamente “racional”. Por outro lado, é fundamental que tenhamos em mente que os rituais não são es­colhidos aleatoriamente. Sua criação pressupõe a valorização e a perpetuação de valores profundos e ancestrais na nossa cultura.

O médico mantém e reproduz um sistema de valores que o sustenta como figura preponderante na sociedade e que cultiva os valores básicos de uma cultura tec­nocrática, mitológica, consumista, patriarcal e individualista. Médicos também são guardiões de um sistema de crenças que sustenta o mundo em que vivemos. A ritualística envolvida no parto serve aos interesses profundos dos profissionais da medicina, porque cria a ideia de uma necessidade que só pode ser sanada por quem detém um específico saber. Assim empoderados, os médicos tentam de to­das as formas manter uma situação em que se estabeleça a indissolubilidade en­tre o parto e essa tecnologia, por eles dominada. Agem inconscientemente assim, assegurando sua posição e importância social enquanto mantêm o sistema que os sustenta. O parto, que deveria ser um processo de profundo empoderamento fe­minino, acaba se tornando, na maioria das vezes, em um processo de fortaleci­mento dos médicos, das instituições e dos valores tradicionais, mantendo a mulher e o feminino em uma posição inferior e subalterna.

A mulher, relegada a uma posição de passividade e alienação, acaba sofrendo mais tarde, muitas vezes de forma obscura e inconsciente, o resultado dessas in­terferências, através de múltiplas formas: depressões pós-parto, morbidade au­mentada pelas ritualísticas excessivas (doenças, mortes, limitações), mágoas di­fusas, dificuldades na sexualidade, etc. Além disso, enquanto entendermos o con­trole da tecnologia como o zênite do proceder médico, estaremos hipervalorizando no profissional detentor desse poder/saber apenas uma qualidade específica, co­locando em um patamar secundário aquilo que é a alma do ofício médico, qual seja, o contato e o vínculo com os pacientes. Insistentemente, escutamos o atabaque da mídia insuflando em todos nós, habi­tantes da Matrix, a importância do uso de tecnologia aplicada à saúde. As notícias seguem sempre um mesmo roteiro previsível, em que as “novas tecnologias” no combate aos males são sempre as grandes heroínas, mesmo que o impacto des­sas descobertas no grande cenário da saúde mundial seja normalmente pífio. As­sim, ocorreu com a monitorização eletrônica fetal, as ultrassonografias e mesmo a própria internação hospitalar, que nunca comprovou ser superior ao parto domici­liar para as pacientes de baixo risco. Apesar de todas as confirmações científicas dessas realidades, o uso sem limite da tecnologia continua associado à questão da segurança.

“Segurança é a máscara que encobre uma verdade que subjaz: a questão do po­der”, já nos alertava Robbie Davis-Floyd. Enquanto não aplicarmos nosso criti­cismo mais intenso para modificar a forma como enxergamos o nascimento, va­mos continuar a observar o parto de uma criança como algo “feito” pelas institui­ções e corporações, e em seu próprio benefício, em vez de vermos o nascimento humano na graça e magnitude que ele contém. Continuaremos acreditando que a tecnologia desmedida pode propiciar segurança, quando ocorre exatamente o contrário. Hoje em dia, não existe muita dúvida a respeito da necessidade de cui­dados com o nascimento, e poucos se aventuram a defender a completa desas­sistência ao parto. Entretanto, a tecnologia aplicada ao parto apresenta resultados positivos até determinado ponto; a partir daí, o acréscimo de tecnologia faz ape­nas crescerem estratosfericamente os custos e aumentar a morbi-mortalidade materna e neonatal, segundo inúmeros estudos, incluindo aí o da Dra Daphne Rattner. Isso acontece tipicamente com os Estados Unidos, que aplicam esse mo­delo tecnocrático à saúde como nenhum outro país e amargam péssimos resulta­dos de saúde perinatal.

Em uma visão pessimista, misturando George Orwell com Jean Baudrillard, em um futuro possível as mulheres já não parirão seus filhos: eles serão produzidos nas chocadeiras imensas da Matrix. Lá se configurará o apogeu das tecnologias de separação, cortando definitivamente a ligação visceral de mães e filhos, já apregoada por alguns arautos dos novos tempos. Será a “Quarta Ordem do Si­mulacro” de Baudrillard, em que a simulação se torna absolutamente despregada da realidade, não guardando com ela nenhuma relação residual. A pergunta que não queria calar em minhas angustiantes divagações — como Neo, magnetizado pela palavra “Matrix” na tela do seu computador — era: por que é preciso “consertar” mulheres que estão tendo seus filhos? Seriam estes proce­dimentos ritualísticos, realizados pelos médicos nos centros obstétricos, uma es­pécie de batismo, atitudes carregadas de simbolismo que visam a conformar os indivíduos a uma determinada função social? Serei eu um “tecnobispo” a batizar todas as mulheres para adentrarem o mundo da maternidade?”

Depois de algum tempo praticando a obstetrícia, compreendi que jamais realizara qualquer dos inúmeros procedimentos ritualísticos hospitalares também chamados de “rotinas”, por serem comprovadamente necessários, ou porque acreditava nos seus benefícios. Jamais havia embasado essas condutas em evidências claras de sua adequação. Agia tal qual um autômato, governado externamente por um sis­tema invisível, e por isso mesmo muito maior e poderoso. Esse comportamento estereotipado e previsível não era sequer culpa do meu pobre professor de obste­trícia. Ele também estava adormecido, aquecido e nutrido pelo sangue que vinha do coração da Matrix, e só repetira para mim o que lhe fora ensinado. Estava à mercê do sistema, e seus músculos estavam atrofiados demais para que pudesse se movimentar. Eu agia daquela forma, afastando, invadindo, cortando, costu­rando e separando, porque assim a Matrix me dizia para agir; era levado a acre­ditar que as mulheres jamais poderiam parir (ou adentrar a maturidade social) sem que um homem (ou alguém representando o patriarcado) a autorizasse, através das “marcas” no corpo e na alma, estabelecendo um triste paralelo com o simbo­lismo da clitoridectomia, em outra cultura igualmente patriarcal e violenta.

Em Matrix, o filme, estamos todos representados em muitos dos personagens, basta decidir em que parte do filme. Podemos ser o alienado, que nada desconfia das forças poderosas que nos fazem acreditar na tecnologia como uma deusa to­tipotencial, que “enfim vai nos redimir” da nossa impureza e imperfeição. Podemos ser como as pessoas que vão para o trabalho e sentem que existe al­guma coisa estranha no ar, mas não sabem o quê, porque não pararam para pen­sar suficientemente no fato de existirem hospitais com 80% de cesarianas ou que os 5% mais ricos da população do país detêm 50% da sua riqueza. Podemos ser também como o Neo “pobre-coitado”, que vomita, chora, sofre ao ver como o mundo (interno e externo) não é exatamente como pensava ou fanta­siava. Somos muito mais imperfeitos e incompletos do que nossa infinita condes­cendência nos permite enxergar.

Por outro lado, podemos ser o Neo que percebeu que esse mundo feio é o único de verdade que temos, e que é na realidade dolorosa — e só ali — que as modifi­cações podem se processar. Esse Neo que enfrenta os inimigos — internos e ex­ternos — e que percebeu que a luta contra a opressão e a injustiça é o único des­tino daqueles que tiveram a oportunidade de enxergar mais além. Mais cedo ou mais tarde, a vida dentro da Matrix se torna insuportável, pois é da natureza hu­mana o destino de expandir-se. Liberdade é a nossa meta última. Um mundo em que prevaleça a dignidade, o respeito, a cidadania e em que as mulheres sejam vistas com igualdade, princi­palmente no momento mágico e sublime de terem seus filhos é nosso objetivo maior, e para isso qualquer sofrimento vale a pena.

Até mesmo a injustiça.

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Humanização de direita

É possível ser a favor da Humanização do Nascimento e ser “fascista”?

Acho que não, mas é melhor só usar a palavra “fascista” com respeito adequado ao seu conceito. Talvez melhor seria perguntar se é possível ser a favor da Humanização e ser de direita. Existem milhões de matizes que exigem avaliação bem minuciosa. Não se trata de uma postura do “Bem contra o Mal”. A realidade é bem mais complicada do que qualquer limite estabelecido pelas simplificações maniqueístas. Por exemplo, nos Estados Unidos a situação dos humanistas no espectro político é bem interessante no que diz respeito às suas origens no início dos anos 70, onde seu aparecimento esteve ligado aos movimentos “new age” e “espiritualista”. Por esta origem atraiu muitas parteiras “espirituais”, ou “spiritual midwives”. Isso lembra alguma coisa? Pois é…

Além disso, essa fonte atraiu parteiras cristãs, que se opõem ao aborto de forma muito intensa. Algumas criaram o mais importante jornal de humanização do nascimento nos EUA. Outra curiosidade: muitas parteiras espirituais, oriundas dos movimentos “beatnik” e “hippie” são brancas, e foram recentemente atacadas pelas parteiras e doulas negras, que se sentem agredidas pelo seu “racismo estrutural”.

Com isso houve uma cisão entre os movimentos de humanização liderados pela MANA e os fortes grupos identitários de parteria negra. Como é bem sabido, os movimentos contrários ao identitarismo nos Estados Unidos se situam à direita do espectro político.

Conheço mulheres que são favoráveis à humanização do nascimento exatamente porque desejam garantir seu direito de parir em casa, um direito individual mais afeito aos propósitos da direita, já dentro do espectro liberal. O mesmo com o desejo de “homeschooling” ou contra a “obrigatoriedade de vacinas”. Nos meus grupos da Internet existe muito desse discurso que se poderia chamar “libertário”. O mais chamativo dessas comunidades é “Separation of Birth and State”.

Sim, humanização e de direita, contra a ação do Estado nos nascimentos. Assim, é razoável imaginar que pessoas que enxergam o mundo pela perspectiva da liberdade, da autonomia e da livre determinação estejam à direita, contra o reforço do controle estatal e à favor da desregulamentação.

Humanização conservadora. Por quê não??

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A Vingança dos Oprimidos

Recebi com surpresa uma petição via internet contra uma das mais importantes batalhadoras pela humanização do nascimento no mundo, na qual as proponentes a acusam de racismo. As palavras são ásperas, violentas e cruéis, e me oportunizaram uma reflexão sobre a existência de manifestações como estas, em especial no mundo virtual. Foi apenas depois de conversar com alguns amigos e entender o momento político americano contemporâneo fez muita diferença na minha visão do problema.

Existe uma grande insatisfação com o fato de o movimento de humanização do nascimento nos Estados Unidos ser sido criado e liderado por mulheres brancas e de classe média. Para a minha percepção, nada mais natural que isso fosse assim levando-se em consideração as características óbvias desta classe: mais dinheiro, mais tempo para se dedicar a tarefas não pagas, mais acesso a cultura, mais facilidades no mundo universitário e tantos outros privilégios de classe e raça que tão bem conhecemos. Acrescente-se o fato de que a comunidade negra americana não é mais do que 10% da população neste país. Entretanto, o que poderia ser visto como uma ajuda por parte das pessoas privilegiadas para DIMINUIR estes privilégios e tentar aproximar estas categorias sociais é visto por um grupo de ativistas-feministas-negras como uma invasão e uma tentativa de espoliar o protagonismo, seja das desfavorecidas seja das não-brancas. Esse assunto vai e volta e temos sempre que lidar com essa classe de ressentimentos.

Quando eu li as declarações desta ativista e as comparei com os ataques que recebeu em resposta fiquei estarrecido com o desnível absurdo de penalização a que ela foi submetida. É como você roubar um pacote de biscoitos no supermercado e ser sentenciado à morte. A condenação das ativistas, por sua vez, não foi direcionada às suas ideias, suas proposições, sua narrativa ou a frase – infeliz ou não – que tenha dito. Não, a penalidade visa atingir a sua moral, sua história e a sua honra. Não é uma resposta ao estilo “Discordamos de você por sua frase, que pode acrescentar mais um fardo às mulheres negras americanas, vítimas de uma sociedade racista”. Não, a petição deixa claro que esta personalidade do mundo do parto humanizado é uma “racista”, “supremacista branca” (“white supremacist”, tipo Ku Kux Klan) e é por causa DELA (ou de “gente como ela“) que existe racismo na atenção às mulheres nos Estados Unidos. Todavia, bastariam 5 minutos de conversa com essa pessoa para se chocar com o despropósito de tamanha agressividade. Como disse Debra Pascali-Bonaro “there´s not a single racist bone in her body“. Isso me deixou claro que a petição diz muito mais a respeito do ódio, frustração e rancores imensos que emanam dessas pessoas do que de alguma falha cometida pela minha amiga e ativista.

Imediatamente percebi que a petição era parte de uma estratégia de ataque às ativistas históricas que militam na humanização do nascimento. Reli a declaração da minha amiga e, por mais que tenha tentado, não consegui perceber nenhuma declaração inquestionavelmente absurda ou racista, mas uma frase que poderia ser interpretada de diversas maneiras. Lembrei da famosa frase do meu pai sobre um técnico de futebol que estava entrando em evidência. Disse meu pai, tomando um café comigo no shopping: “Contra ele pesa o fato de ser negro”. Quando você tira essa frase do contexto parece que que sua intenção era dizer que “ser negro” é um defeito para alguém que almeja ser técnico de futebol. Entretanto, o que ele queria dizer é que, por ser negro, esse sujeito sofreria muitos preconceitos e teria tremendas barreiras que nunca ocorrem contra brancos que almejam a mesma posição. A mesma frase pode ser lida de duas diferentes formas, de acordo com o DESEJO de quem a lê; pode ser considerada racista por pessoas que preferem atacar a todos para fazer valer seus postulados, mas pode significar o OPOSTO se você quiser contextualizar e – mais ainda – se quiser perceber que a frase foi dita por um combatente na luta contra o racismo.

Depois da conversa com outras ativistas pude entender o contexto americano e perceber que minha colega e amiga foi vítima de um processo que não está acontecendo apenas agora. Ela está sendo usada por uma “patrulha” que tenta atacar o movimento de humanização por suas raízes brancas e de classe média, como se a culpa pudesse cair nas poucas ativistas brancas que resolveram trazer o nascimento digno ao debate.

Minha primeira reação foi pensar? “Quer saber? Não quero mais nenhuma interlocução com essas ativistas. Não aceito debater com fanáticas, com gente que acredita no ódio e na vingança como elementos de transformação positiva e que não se importam em dividir um movimento que já é pequeno e que sofre com ataque dos poderosos toda a hora. Que se ferrem!!”

Depois de alguns minutos, um pouco mais calmo, pensei que existe uma necessidade enorme de diminuir as diferenças entre as classes sociais e as raças em nossa sociedade. A luta dessas mulheres é justa e nobre, e a importância de suas ideias não pode ser sacrificada pelo mau uso que algumas ativistas de hoje fazem delas. O fato de serem portadoras de ódio e negatividade não pode me levar a desconsiderar essa luta – assim como a luta contra o machismo, a opressão, a iniquidade, os direitos sexuais das minorias e tantas outras. Se a mensagem delas é de ódio a minha (a nossa) não pode ser de desprezo, mas precisa necessariamente ser pautada pelo respeito e consideração por suas dores e feridas abertas.

Tenho certeza absoluta que minha amiga, Ina May Gaskin, não merece o tratamento indigno que recebeu. Os ataques direcionados a ela atingem todos os que se preocupam com o nascimento humano e com suas repercussões na sociedade. Ina May é um exemplo de mulher, mãe, avó, ativista e lutadora pela causa das mulheres, de qualquer cor, religião ou estrato social. Estarei ao seu lado sempre, porque a conheço como um dos mais iluminados seres humanos que já tive a honra de conhecer.

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Voar

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Os ânimos ficaram tensos ultimamente e algumas manifestações de selvageria explícita ocorreram por parte de colegas na Internet a partir das iniciativas do governo de coibir o avanço – até então impossível de sustar – das cesarianas. É preciso compreender o momento histórico em que estão ocorrendo. Primeiramente, os valores idealizados pelos proponentes das mudanças são apenas metas distantes pelas quais deveremos nos guiar, sem entendê-las como a obrigação de um valor fixo. Como eu digo há vários anos, este tipo de imposição só poderia nos levar à tragédia. Já não existem mais taxas de 15% de cesarianas, no mundo todo (exceção nos locais onde impera a desassistência), mas isso é em função do medo, da indústria, dos ambientes hospitalares, da pressão e do pânico dos profissionais. Em outras palavras, “não existe sujeito sem cultura e nem cultura sem sujeito“. Somos os algozes e as vítimas do mundo que construímos.

O pequeno universo que nos circunda molda os sujeitos que ali transitam, e estes, dialeticamente, transformam o ambiente que os contém. Em lugares onde a tensão no ar é tão densa que se pode cortá-la com uma faca, os partos serão sentidos de uma forma completamente diferente daqueles que ocorrem onde a suavidade acaricia nossas ações, as pacientes bailam ao som de seus hormônios e a descida do bebê pelo canal materno é embalada pela música que emana de seus gestos delicados. Posso me aventurar a pensar que, houvessem ambientes melhores e as taxas cairiam com muito mais facilidade. Minha ideia – e minha proposta – é cambiar o “campo simbólico” da cultura circundante, e não ingenuamente trocar apenas médicos ou hospitais. A mudança deve atingir lentamente todas as consciências.

Isso explica a razão de a parteira Ina May ter 2% de cesarianas em “The Farm“, porém posso ter certeza que ela teria 15 ou 20% de incidência de cesarianas por “falha de progressão” caso morasse em alguma grande cidade brasileira e tivesse que atender nos hospitais daqui, onde impera o medo e a tensão.

A Holanda também é do mundo ocidental, onde da mesma forma puderam entrar – mesmo que de forma menos violenta – a cultura do medo e a tecnocracia. Até ela sofre as agruras do mundo moderno.

O momento é de muita tensão, os médicos se sentem acuados, pressionados, culpados e desprezados. É como você reclamar do serviço que eles fizeram nos últimos 300 anos e achar que todas as conquistas da obstetrícia poderiam ter um resultado melhor. Isso é escutado como ofensa, e não como um convite à reflexão e à mudança. Alguns profissionais, normalmente os mais limitados, partem para a violência verbal, sem perceber que tais palavras apenas demonstram o despreparo para lidar com sua própria autoestima ferida.

A culpa não é dos médicos, mas da própria medicina e seu olhar objetual sobre os pacientes. Se esta objetualização pode ser entendida em um politraumatizado, ou numa paciente cirúrgica, ela é absolutamente anacrônica e inadequada em uma mulher saudável parindo seu filho. Como eu disse há alguns dias, a melhor metáfora para essa situação na atualidade é imaginar a cena do marido que recebe a notícia de que sua mulher vai deixá-lo.

Passada o susto e o choque da revelação ele, ainda surpreso, exclama:

– Mas porquê? Nada te falta. Tudo que fiz foi por você. Eu me dediquei por anos, trabalhando como um escravo, para que nada faltasse neste lar. Minha dedicação sempre foi para que sua vida fosse melhor, fosse tranquila, e que você pudesse ter seus filhos com segurança. Por quê agora me desprezas? Por quê me jogas fora como um papel velho, um pano imundo e imprestável? O que fiz de tão mal para ser expulso assim? Eu não bebo, não te maltrato e trago tudo para dentro desta casa!! Porque, afinal, você está insatisfeita?

Ela sorri com lábios tristes porque entende sua dor. Sabe que para ele as angústias e desejos – as quais carrega como um pesado fardo – são incompreensíveis. Para seu marido a mulher que sempre teve ao lado era um belo bibelô, uma linda boneca para satisfazer seus olhos. Para isso verdadeiramente se dedicava a ela, oferecendo-lhe o melhor que podia, com todo o seu amor e afinco. Entretanto, durante todos esses anos, mesmo que houvesse uma honesta atitude de ajuda, ele jamais conseguiu olhar aquele relacionamento pelos olhos de sua mulher. Qualquer reclamação de sua bela esposa seria incompreensível, porque a relação com ela sempre foi marcada pela objetualidade. Nunca, por nenhum momento, ele se permitiu perguntar: “afinal, o que você verdadeiramente deseja?“.

Ela se aproxima dele, o abraça e diz:

– Obrigado por tudo. Obrigado por toda a sua dedicação, seu zelo e seu amor, mas agora permita-me voar.

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