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Espiritismo Místico

Minha dúvida é a seguinte: o que teria ocorrido com o espiritismo se houvesse optado por uma vertente científica – a vertente derrotada no final do século XIX, liderada por Angeli Torteroli, no enfrentamento com os místicos? O que teria acontecido com a “Doutrina dos Espíritos” caso tivesse aderido às concepções científicas da época, mantendo-se longe das percepções místicas e religiosas e tornando-se um ramo científico, positivista e experimental de investigação da vida e da comunicabilidade após a morte? Na minha humilde opinião esta escolha poderia ter produzido pesquisadores como os “Ghost Busters”, que se divertiriam fazendo experimentos em laboratórios para investigar fantasmas e mensagens do além, tendo quase nenhuma pervasividade entre a população.

O espiritismo assim desenvolvido seria um ramo quase desconhecido do conhecimento, como o são as ciências parapsicológicas. Ou seja: a vertente mística, cristã/católica e mediúnica do espiritismo, através do processo sincrético de adaptação à cultura brasileira, foi o responsável pela fantástica disseminação dessa mensagem. Todo mundo no Brasil conhece o espiritismo, conhece Kardec, conhece mediunidade e sabe o que é reencarnação. Pela mesma razão, a ligação da homeopatia com o espiritismo foi a responsável por manter a ideia do tratamento homeopático vivo na cultura – apenas porque na sua chegada ao Brasil esteve ligado ao espiritismo, mesmo que nada exista de necessário na conexão entre esses dois conhecimentos.

Desta forma, mesmo que seja justo discordar da forma como o Espiritismo se desenvolveu na cultura, sendo uma espécie de seita católica reencarnacionista e mediúnica, repetindo inúmeros defeitos e problemas das grandes religiões tradicionais (crendices, conservadorismo político, moralismo, conservadorismo de costumes, hierarquias, gurus, burocracia, culto às personalidades, etc.) ainda assim é correto dizer que estas foram as circunstâncias essenciais para a disseminação da mensagem espírita. Sua conexão com o cristianismo foi fundamental para garantir sua popularidade, mesmo que a visão kardequiana seja muito mais universalista – o que permitiria o espiritismo na China ou no Oriente Médio, já que não competem com visões religiosas tradicionais. Não fosse sua ligação com as vertentes mais místicas e a doutrina de Kardec jamais teria o sucesso que teve entre os brasileiros. Essa é uma das contradições mais interessantes para a abordagem espírita.

Muitos espíritas laicos, que combatem a vertente mística do espiritismo, negam a imensa maioria dos livros psicografados como embustes, incluindo toda a obra de Chico Xavier, “e não colocam nada no lugar”. Entretanto, cabe a pergunta: por que deveriam colocar “algo” no lugar? Se acham que é um embuste, por que razão deveriam colocar alguma coisa no lugar de erros, fantasias e até fraudes? Como provocação: “eles criticam ferozmente a TerraPlana mas não colocam nada no lugar”. Ora, colocam sim: o Globo terrestre, assim como as pessoas que combatem a mediunidade de Chico Xavier dizem que os seus livros são obra dele mesmo, e que os espíritos que assinam suas obras são seus tímidos alteregos.

Para outros “A ciência dentro do espiritismo tem um propósito final claro, que é a transformação moral das pessoas”. Sério? Por que deveria ser assim? Desde quando a ciência tem um “objetivo”? Por que deveríamos colocar na pesquisa da sobrevivência da alma um objetivo último de caráter moral? Imagine alguém afirmar que: “a lei de gravitação de Newton tem como finalidade última o aprimoramento moral dos indivíduos e uma vida centrada na caridade”. Não soaria ridículo? Pois assim é… e na minha perspectiva a vida após a morte não é uma pesquisa que objetiva mudar a moral de qualquer um!!!

Para mim, por exemplo, a pesquisa no espiritismo serviria tão somente para mudar a nossa percepção de realidade, acrescentando uma nova dimensão para entender o significado último da vida – caso ele exista – e que não precisa ser utilizada de forma moralizante. Por acaso as descobertas de Darwin serviriam a algum propósito nobre, como “melhorar o mundo”, ou “transformar moralmente” a humanidade? E Freud? E Oppenheimer? Estavam em busca da “bondade” ou da suprema “fraternidade”? Por que achamos que o objetivo precisa ser melhorar ou fazer evoluir a humanidade? Por que não poderia o espiritismo ser um ramo da ciência que procura desvendar este mistério, sem compromissos de caráter religioso, moral, ético, etc.?

Comparo o desbravamento da vida após a morte com a conquista espacial, ou a travessia do Atlântico pelas naus no fim da idade média. Por esta razão, “o conhecimento do outro mundo só se justifica pela utilidade em tornar alguém melhor” não faz sentido algum para mim. No meu entender a descoberta da América, da rota das Índias, ou da vida em Marte não é para trazer a transformação moral da humanidade, sequer para transformar o caráter dos sujeitos humanos, mas tão somente para alastrar o conhecimento humano sobre um campo até então obscuro e misterioso.

Para finalizar, combater os aspectos religiosos do espiritismo é um objetivo nobre. Alguns podem não concordar, mas isso não retira desse específico viés a sua importância. Nada há de necessariamente raivoso nisso. Essa visão teria a mesma função que o combate à politicagem contida nas decisões de juízes, ou à contaminação de ideologias sectárias em organizações que se propõem universalistas. Não se trata, portanto, de “combater por combater”, mas por entender que os aspectos religiosos e místicos contidos no espiritismo são elementos artificiais, enxertados na prática espírita, não contidos na proposta original da doutrina e que não estão em sintonia com a perspectiva laica que Kardec sempre tentou oferecer à doutrina dos espíritos. Claro que pode existir raiva e outros sentimentos menores na iconoclastia de figuras espíritas, mas esta busca, por si só, não pode ser penalizada.

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Obsessão

Acho super curiosa a fixação dos espíritas pelo tema da obsessão, quase sempre tratado como se fosse uma doença contagiosa, algo que se “pega”, um vírus ideacional que se apodera de uma alma pura, como se um indivíduo desavisadamente ligasse a televisão e, por assistir o Big Brother, acabasse atraindo espíritos obsessores (???) que sugariam suas energias e lhe desviariam o caminho. O simples fato de trazer à baila esse tema de forma continuada demonstra que os espíritas ainda acreditam nas “obsessões” como elementos exógenos a produzir desequilíbrio nos sujeitos a elas submetidos.

Ingênuo demais para ser levado a sério…

Primeiro, eu acho que TODOS NÓS somos obsessores de todo mundo ao nosso redor, até de desencarnados. Nossas ações são como ondas de rádio emitidas para todos os lados, que encontram sintonia nas pessoas que estão no nosso raio de ação. Da mesma forma sintonizamos nosso “dial” para captar as ondas que também a nós chegam. Nada de novo em reconhecer que somos captadores e emissores de energias-palavras que podem transformar ou desvirtuar nosso semelhante, certo?

Porém, é evidente que a única forma de impedir as inúmeras obsessões que nos seduzem será sempre através da “reforma íntima”, ou seja, parando de focar nos espíritos que nos assediam (encarnados e desencarnados) e prestando mais atenção em nossas falhas e fragilidades. Uma das formas de fazer isso é através da auto-escuta, pelas terapias e análises.

Por isso eu acredito que a prática espírita de fazer ‘sessão de desobsessão’ centrada no discurso cristão, no palavrório moralista e nos conselhos vazios para espíritos angustiados (dos quais desconhecemos a realidade subjetiva) é infrutífera como processo de cura. Estas cenas me remetem ao filme “O Exorcista”, onde uma menina pura e dócil é tomada por um demônio e tem seu corpo controlado por suas determinações malévolas. Infelizmente, as influências dos outros não ocorrem sem que a porta da sintonia seja aberta – e sempre por dentro.

Somente a reforma do próprio sujeito é capaz de bloquear o acesso a ideias influenciadoras. Infelizmente, é notório o quanto este tipo de exorcismo é sedutor para os condutores do processo em casas onde o mediunismo é reconhecido, basta ver como esta prática é realizada nas igrejas evangélicas com as inúmeras encenações de luta do “ungido de Cristo” contra o “Demônio”.

O caminho da consciência é sempre mais complexo e difícil, mas todos os outros não passam de propostas paliativas ou escapistas, nada mais do que uma “retirada do sofá da sala”, sistemática e repetitiva…

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Espiritismo careta

Uma análise profunda da idolatria que se estimula no cenário espírita brasileiro é uma tarefa urgente a ser realizada pela Academia. Desde figuras populares como Zé Arigó, Chico Xavier até Divaldo Franco que percebemos um traço marcante no espiritismo cristólatra brasileiro: ele sempre foi pródigo na criação de “gurus”, líderes carismáticos que repetem discursos conservadores e moralistas. São comuns os textos carregados de uma visão superficial e maniqueísta da espiritualidade e da reencarnação, cheios de prescrições de evolução espiritual que criminalizam a luta política e a livre expressão da sexualidade, entendidas assim como “desvios obsessivos”. Em verdade, mais do que um achado ocasional, este é o padrão das publicações espíritas.

A adesão de Divaldo Franco – famoso tribuno espírita e médium – à barbárie jurídica lavajatista empresta um apoio fundamental aos tribunais de inquisição que se transformaram as côrtes de Curitiba, com o intuito de atingir a esquerda e os movimentos populares. Por outro lado, esta simpatia do líder espírita mostra a verdadeira face alienada e subserviente da baixa classe média ressentida que constitui seus seguidores.

O espiritismo institucional mais uma vez adere ao conservadorismo moral e político tacanho que sempre o caracterizou – basta lembrar as falas reacionárias de Chico Xavier sobre a ditadura militar de 64. Alia-se ao poder econômico, às elites, aos conservadores, ao judiciário partidário e aos golpes sucessivos à nossa democracia.

Corremos o risco de não ver no futuro nenhuma diferença significativa entre as monstruosidades de Malafaia, Edir e Feliciano e alguns líderes espíritas alinhados com o atraso, o preconceito e a mistificação. Aquela doutrina que, ao descortinar a reencarnação como processo de depuração espiritual, se apresentava como revolucionária e progressista, em verdade se mostra como mais uma seita cristã atrelada aos privilégios, ao moralismo, à tradição (escravista), à família (falocêntrica) e à propriedade (intocável).”

Que Deus tenha piedade de nossas religiões.

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Mediunismo

Algumas perguntas aos espíritas e pessoas de religiões de matriz africanas:

Li o parágrafo de um livro que criticava o impedimento de que espíritos de pretos velhos se manifestassem em casas espíritas. Sei onde isso pode levar.

O espiritismo é uma doutrina de caráter filosófico e de consequências morais. Ao meu ver não é uma religião, mas reconheço a controvérsia. No dizer de Kardec, seu criador, ela é um acessório das religiões, e não mais uma delas. Kardec era cristão, filósofo e pedagogo. Pior: era branco e burguês, o que pode explicar a presença em sua obra – de meados do século XIX – de expressões do mais puro e cristalino racismo. Certo que fora do contexto expansionista e colonialista europeu seus escritos soam como barbaramente discriminatórios. Fica a ressalva dos contextos históricos e circunstanciais. De qualquer forma, o espiritismo e as religiões de matriz africana (Umbanda, Candomblé, Nação, Quimbanda, etc.) compartilham a ideia da comunicabilidade entre planos físico e extrafísico, a “mediunidade”. Mas as divisões de castas brasileiras fizeram com que o fenômeno “branco e europeu” ficasse com Kardec, um intelectual francês, e a manifestação popular ficasse com os negros e os referenciais relacionados com sua origem.

Ora, que profunda falta de perspectiva!! Quanto desprezo pelas forças sociais que condenam grandes massas à exploração ao arbítrio dos poderosos. O espiritismo – por sua origem intelectual, europeia e progressista – poderia ter sido a grande força renovadora das religiões no Brasil, mas se manteve atrelada ao religiosismo. No atual contexto religioso do nosso país, tão desigual e injusto, somente as religiões de matriz africana, por agregarem a massa de pobres e negros da nossa sociedade, têm a potencialidade de reverter a má imagem criada pelas religiões neste país. Só elas – e uma parcela minoritária dos católicos – tem massa crítica suficiente para produzir mudanças no cenário de desigualdade no Brasil. O resto cultiva a compaixão burguesa mais superficial e inócua. A propósito, o sincretismo religioso fez com que a Umbanda surgisse aproveitando dos símbolos e rituais do cristianismo hegemônico e misturando-os com a cultura de África, criando uma riquíssima manifestação religiosa miscigenada e valiosa da cultura nacional. O espiritismo, por seu turno, se manteve mais fiel aos seus propósitos racionalistas e apontando para as elites. Apesar da umbanda ser muito mais católica do que espírita em sua exterioridade, o mediunismo se expressa em ambas, mas com uma clara divisão de classes, cabendo à branquesia as manifestações mais “intelectuais” e à negritude o fenômeno mais popular. A religião mimetiza a divisão da Casa Grande e Senzala. Talvez seja possível imaginar que Zé Arigó, médium famoso dos anos 70, só se tornou famoso porque incorporava um médico alemão – Dr Fritz; fosse um caboclo curador e operador a lhe usar como “mula” e ninguém lhe daria importância.

Entretanto, a crítica a um pretenso impedimento de “manifestações” de pretos velhos me incomodou, em especial por uma crítica que faço ao mediunismo gratuito. Então eu pergunto, sem que nessa pergunta exista qualquer aversão ou preconceito: por que deveríamos dar voz a pretos velhos, ciganos ou outras pessoas falecidas em casas de Umbanda ou Casas Espíritas? Pelo contato e pela evidência do fenômeno? Se é pelos “ensinamentos” por que não chamar o preto velho que mora na esquina para vir falar de sua experiência na terra, suas lutas, suas dores, seus amores e angústias? O que há de especial no seus ensinamentos que se tornam valiosos só porque morreu? Dizer “ame o seu próximo”, “valorize cada minuto de sua vida” ou “cultive a caridade” passam a ter mais valor quando ditos por pessoas mortas?

Qual o real sentido do mediunismo? Receber conselhos clichês que a gente pode facilmente escutar numa mesa de bar dito por um garçom compassivo? Qual o real valor de produzir tais fenômenos? Em quê eles podem ajudar a nós ou aos desencarnados? A simples expressão retorcida de suas falas é – por si só – terapêutica para quem fala ou escuta? Que angústia seria essa que nos leva a procurar pretos velhos para oferecer direção e sentido à nossa vida? O mesmo que nos faz ler o horóscopo, procurar o padre ou consultar a cartomante? Se a crítica do texto é sobre um pretenso “racismo” na escolha dos consultores, então eu me associo. Se for uma crítica à nossa busca por conselheiros que nos digam apenas o que queremos ouvir, também. Entretanto, se for um estímulo ao mediunismo alienante, onde uma instância “mais próxima de Deus” toma decisões por nós, então estou fora.

Deixem os pretos velhos em paz.

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