Arquivo da tag: narrativas

Bolhas

É muito fácil (e até rápido) para um indivíduo com fragilidade emocional tornar-se vítima do seu próprio fanatismo. Dentro da bolha paranoica que criam para si, tudo faz sentido, tudo se encaixa em seu modelo pré-estabelecido. Para estes, existem os “maus e os bons”, e os malévolos são sempre os outros, jamais aqueles que circulam dentro de suas trincheiras; para estes, até as ações mais cruéis – como um genocídio – têm explicações e justificativas. Criam um mundo baseado na hierarquia moral, em fatores intrínsecos da alma humana, e oferecem pouco valor ao mundo real, as lutas cotidianas, as diferenças de oportunidade e os condicionantes sociais. Tal perspectiva acaba produzindo sujeitos apartados da realidade dos fatos, onde a marcha do mundo não ocorre por forças econômicas, geopolíticas ou pela busca de recursos, mas por questões anímicas como a bondade e a fraternidade ou seu contraponto, a maldade e o egoísmo – ou, como dizem, a “falta de Deus”. Por isso a união tão forte dessa direita com as religiões.

Neste processo, o uso da linguagem é por demais essencial para a condução das narrativas. O objetivo não é a demonstração racional da diferença entre modelos econômicos e de governança, mas tratar aqueles que enxergam o mundo de forma diferente como degenerados. Por isso os palestinos são “terroristas”, enquanto a morte de 20 mil crianças que se escondem nas tendas em Gaza não transforma os israelenses em monstros. Por isso a ideia disseminada de que Israel se “defende” quando a realidade joga em nossas faces que são os palestinos os que procuram desesperadamente se proteger de uma ocupação violenta, humilhante e assassina. É desta maneira que a imprensa chama os israelenses nas mãos do Hamas de “reféns”, mas não trata assim os quase 10 mil palestinos feitos reféns nas masmorras imundas de Israel, onde se praticam todas as violações dos direitos humanos imagináveis, que deixariam corados até mesmo os ideólogos nazi e os seguidores de Adolf.

Para sujeitos que defendem o indefensável – como afirmar a culpa dos palestinos pela morte de suas próprias crianças – nenhum argumento racional jamais será suficiente. Dentro de seu sistema de crenças, qualquer apelo à racionalidade é visto como ataque à sua visão de mundo. Portanto, oferecer fatos a quem está envolto em sentimentos e emoções pode soar como uma heresia, um absurdo, um crime hediondo. Com fascistas, portanto, a conversa precisa ser diferente.

Spoiler: não é com amor.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Política

Futebol e suas mitologias

Estudos sobre os significados sociais e culturais do futebol são – sem dúvida alguma – muito necessários, profundos, interessantes e criativos. Por certo que deve haver milhares já feitos e sendo produzidos nos cursos de ciências sociais. Até eu, no meu primeiro livro, descrevia as torres de iluminação dos estádios como “enormes colunas de artilharia para o ataque aos inimigos”. Tudo é metáfora no futebol (até o goleiro, que na minha juventude, se chamava “arqueiro”), e tudo nos mostra o uso do “esportes bretão” para a sublimação dos nossos pendores violentos, e isso se manifesta através da “guerra” entre bandeiras e comunidades.

Torcer por um clube tem a ver com a socialização, a herança simbólica e a produção de laços sociais. Os clubes nada mais são que clãs modernos, cuja história e grandeza são formadas por episódios épicos, elementos fundadores e atos do mais intenso heroísmo – pense na Batalha dos Aflitos, por exemplo, onde um time ganhou – e se tornou campeão – com 7 jogadores em campo, diante de um estádio lotado de torcedores adversários. São histórias recheadas de narrativas trágicas, lendas fabricadas e mitos, como o de Eurico Lara, lendário arqueiro do Grêmio, corroído pela tuberculose, que defendeu um pênalti no Grenal do centenário Farroupilha (1935), expeliu uma lufada de sangue após defender o tiro livre, saiu do estádio direto para o hospital e morreu pouco tempo depois em decorrência dessa doença. Existe algo mais heroico e dramático que isso?

Desculpe, como sou gremista trago as mitologias do Imortal, mas todos os grandes clubes as têm.

Trata-se de uma narrativa moderna de recuperação, derrotas incessantes e vitórias redentoras. O futebol é a mitologia moderna mais elaborada. Tivesse sido inventado há três mil anos e a guerra de Tróia sequer teria existido, e a charmosa Helena teria sido disputada em uma final com turno e returno, gol qualificado, VAR, com direito a pressão sobre a arbitragem e disputa milionária pelos direitos de televisionamento.

Longa vida ao futebol, e abaixo o futebol moderno.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Histórias de Horror

As “Histórias Horríveis de Parto” (gênero literário muito comum na cultura ocidental) via de regra se baseiam em narrativas de terror onde as pacientes são objetos da ação de uma natureza traiçoeira. São histórias de pânico e terror, que são oferecidas às gestantes na medida em que avançam a gestação e, depois, o trabalho de parto.

Na conclusão final destas histórias surgem duas verdades cristalinas: de um lado a defectividade assassina dos corpos fracos e mal feitos das mulheres e do outro lado a capacidades excelsa dos médicos para agir e salvar vidas, que certamente seriam ceifadas caso o nascimento ficasse somente nas mãos delas.

Escutei essas histórias durante 40 anos e até já fui testemunha de casos em que médicos astutos e corajosos efetivamente salvaram vidas, mas posso lhes garantir que na maioria esmagadora das vezes os profissionais se limitavam a consertar os estragos que não existiriam sem a a interferência indevida dos profissionais e das instituições no processo fisiológico do parto.

Acreditar cegamente nas histórias contadas pelos atores que detém o controle sobre o parto é sucumbir ao poder que eles têm de valorar esta narrativa. Este é um caminho certo para a submissão. Ter uma postura crítica diante desse tipo de histórias é importante para olhar o fenômeno do nascimento sem as capas espessas que a cultura construiu ao seu redor.

Deixe um comentário

Arquivado em Parto

Histórias de Parto

Tenho visto muita gente escrevendo ultimamente sobre os “relatos de parto” de forma crítica, em especial no que diz respeito à expropriação da história vivida na primeira pessoa pela sua protagonista. Tais reflexões enfatizam que tais narrativas deveriam pertencer à família privilegiando o ponto de vista de quem permitiu que a história perpassasse as veias, fibras e sangue do seu próprio corpo. Para além disso, criticam a exposição da paciente e a utilização destas histórias como ferramentas de auto promoção.

Apesar da necessária crítica gostaria de recordar que o movimento de humanização do nascimento no Brasil a partir dos anos 2000 se alicerçou na confluência cibernética de milhares de histórias de parto partindo de inúmeros personagens. A estas histórias compartilhadas devemos muito do que construímos.

Acho que este refluxo sobre as narrativas de parto é importante principalmente pelos dois últimos pontos levantados: a questão da privacidade e a publicidade abusiva.

A privacidade é uma questão crucial nos dias de hoje, em especial num mundo em que se esfarela a vida íntima, onde conversas privadas se tornam públicas e a exposição exagerada de questões íntimas gera uma perda insidiosa dos limites entre o público e o privado. Todavia, resguardar a privacidade de um momento sagrado como o parto é essencial para que ele mantenha seu caráter íntimo e familiar.

O abuso de exposição do outro como forma de publicidade do seu trabalho também precisa ser objeto de contestação. Durante os anos que se seguiram ao surgimento do fenômeno das doulas essa era uma prática mais comum do que deveria. Na medida em que o entusiasmo foi se cercando de sensatez este tipo de exagero também foi arrefecendo. Hoje em dia acho que é bem raro.

Entretanto, eu discordo da idéia de que os relatos de parto pertencem somente à mãe. Acreditar nisso seria o mesmo que afirmar que a paixão de Cristo só a ele pertence, ou que a história da conquista da lua só pertence aos astronautas que lá pisaram.

Não. As histórias pertencem a todos, cada qual diante de sua perspectiva do evento. Um médico descrevendo um parto o faz diante de um viés absolutamente particular e distinto, assim como fará a doula ou o pai do bebê. A descrição da mãe é a mais celebrada, mas é um equívoco imaginar que seja a única. Assim é que se constrói uma narrativa: pela paralaxe de muitos olhares em que nenhum é melhor do que o outro, mas se sobrepõem para descrever um fenômeno único diante de múltiplas percepções..

Os relatos de parto pertencem à todos que dele participaram e cada um tem o direito de produzir sua história a partir das memórias e emoções suscitadas. Por outro lado, a preservação da privacidade sobre um evento de tal relevância é condição essencial para o respeito ao nascimento. Se não houver conflito entre estas duas perspectivas então haverá sentido e relevância nas histórias contadas.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto