Arquivo da tag: objetos

Minimalismo

Minimalismo, no meu conceito, é um estado de espírito, uma forma de encarar a vida e o consumo, não um conjunto de regras para serem cumpridas ou levadas ao cabo, como se fosse a “religião da escassez”. Baseia-se na regra dourada de Sêneca, que afirmava que “a pobreza não surge da falta de recursos, mas da multiplicidade dos desejos”. Para haver a dor da falta há que primeiro existir o desejo de possuir.

Somos seres constituídos de forma distinta e complexa, e em nossa arquitetura psíquica dormitam falhas e vazios que, muitas vezes, preenchemos com “cargo”, coisas, badulaques, matéria, comida e emoções. Entretanto, o que te faz falta pode ser irrelevante ao outro. Sempre vai haver alguém que sente mais a falta de algum conforto moderno, algum bem material e mesmo um afeto banal, e não há dúvidas que muitos vão desapegar de quase tudo – até dos amores, enquanto outros ficarão eternamente encarcerados pela penúria.

Mesmo que eu entenda a dificuldade de largar algo, como uma roupa, um carro, um livro, um eletrônico, acredito ser ainda mais necessário – e muito mais desafiador – o desapego das vaidades e das disputas de ego, pois este é o mais complexo de todos os minimalismos. Livrar-se da falsa imagem de si mesmo, desapegar-se do seu orgulho rastejante, abrir mão das vaidades oportunistas são formas fundamentais de retirar matéria acumulada das próprias costas, cujo peso faz atrasar nossa verdadeira missão.

O verdadeiro minimalista não se interessa pelos bens alheios e não faz julgamentos sobre o que é necessário, útil ou adequado aos outros. Espera-se dele que seja minimamente responsável pelas escolhas que faz, para si mesmo e para o planeta.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Objetos

Quase todos as noites ouço meus netos correndo com seus passos miúdos e os pés descalços em direção ao meu quarto. Trazem no rosto o olhar que conheço muito bem: a avidez por alguma novidade, uma conversa, algo para contar da escola ou um bicho diferente que viram perto do galpão de sementes. Mas na maioria das vezes eles apenas dizem em uníssono:

– História!!

Eu sempre reclamo, pois na hora que me pedem eu estou invariavelmente fazendo alguma coisa “importante”, seja estudando para uma prova, escrevendo ou olhando um vídeo. E eu sempre paro tudo o que estou fazendo porque sei que, no meu leito de morte, vou imaginar que todo o dinheiro do mundo seria pouco para poder reviver estes momentos. Melhor vivê-los agora, enquanto ainda é tempo.

Ato contínuo, o menor se volta para a vó e grita poucas palavras, mas que servem como um código para a sessão de aventuras que se aproxima:

– Vovó!!! Chá e bolacha!!!

E lá vem ela com três xícaras de chá de casca de limão (colhido na Comuna) e uma travessinha que ela trouxe do Japão quando fez estágio pela JICA em Osaka. A rotina então se repete: eles tomam o chá enquanto eu conto a história e depois distribuem farelo de bolacha salgada por todos os cantos do quarto. Terminado o capítulo, com o famoso “qua qua qua qua…” decrescente, eles ficam brabos, fazem ameaças, choram e reclamam, mas por fim aceitam ir para casa dormir.

Entretanto, o que mais me chama a atenção são estes objetos aleatórios que ficam marcados nas vidas das crianças, guardados nas memórias mais profundas. Só muito mais tarde reaparecem em suas vidas adultas, já modificados, codificados, transformados. Estes objetos fazem parte do acervo de pequenas coisas do período inicial das nossas vidas, e que depois desaparecem, porém jamais completamente. Ficam adormecidos em algum lugar da mente, para serem trazidos em formas diversas em outros momentos.

Tenho vários destes do tempo em que eu convivia com minha avó materna, a vó Irma. Quando eu passava fins de semanas inteiros na sua casa eu lembro das pequenas coisas, do quarto de ferramentas, do jardim nos fundos, das orquídeas bem tratadas e de tantos outros badulaques.

Não tenho a menor dúvida que estes artefatos ainda me acompanham, mesmo que travestidos de outras coisas, das quais não me desfaço por saber que são parte do simbólico que me constitui.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Abraço, Fabrício…

Fabrício

Abraço, Fabrício…

Sabe o que é desumano?

É quando retiramos as qualidades humanas de um sujeito, sua unicidade e subjetividade, aquilo que o transforma em uma pessoa única. É quando ele deixa de ser alguém, e passa a ser uma “coisa”.

Ontem testemunhamos um fato raro no futebol. O jogador Fabrício do Inter, após ser vaiado por uma parte da torcida, investiu contra ela com gritos, insultos e gestos obscenos. Uma cena lamentável de violência e descontrole. Ato contínuo, foi expulso pelo juiz e tirou a camisa do seu clube. Arremessou-a ao solo e, mesmo sendo contido pelos colegas de profissão, rumou célere para a saída do campo, sinalizando com gestos que jamais voltaria. Boa parte da torcida colorada, em especial aquela que o estava vaiando, vibrou com a sua expulsão e a saída. O futebol, haja vista sua má fase, pouco perdeu. Mas e o nosso senso de humanidade?

Poucos dias atrás, uma outra desgraça, desta vez atingindo o (ex) todo poderoso José Dirceu, foi tratada com deboche e escárnio por centenas de internautas. Quando do anúncio de seu AVC (Acidente Vascular Cerebral) inúmeros comentários depreciativos surgiram nas redes sociais, fazendo troça com a doença do ex-ministro. Com os candidatos e a presidenta, o mesmo. O ministro Guido Mantega, em visita a um hospital, foi brutalmente hostilizado por pessoas na recepção. As figuras públicas perdem a sua condição de humanas, e passam a ser meros personagens, sem vida, história, subjetividade ou porvir.

Desumanizar é tirar do sujeito sua essência humana. É coisificá-lo para o nosso gozo, seja ele qual for. É olhar para uma mulher e reduzi-la a peitos e bunda, para um homem e torná-lo apenas força, poder e dinheiro. Um jogador de futebol vale apenas para o nosso gozo, sem que seus sofrimentos, sua vida, suas fragilidades e sua história sejam levadas em consideração.

O jogador Fabrício, soube-se hoje, tem um irmão que está preso, e outro que já morreu pelas mesmas razões: tráfico de drogas. Sofria pressão desumana de torcedores que achavam que ele não estava jogando o quanto devia. A pressão também chegava de uma “crônica esportiva” espetaculosa, insensível e grosseira, que ressalta ainda mais a objetualização dos jogadores, tornando-os marionetes de seus conceitos e alvos fáceis para suas piadas de gosto duvidoso. Por mais que se entenda que as gratificações monetárias para os jogadores são muito altas (para uma elite restrita e minúscula, como no caso do Fabrício) também é verdade que a tensão para cumprir metas, nunca errar, jamais falhar, lutar como um gladiador, oferecer o sangue, destruir a própria saúde em nome de uma bandeira é uma tarefa pesada demais para qualquer um, e mais ainda para meninos de origem pobre.

Não foram poucos os jogadores que pensaram em suicídio. Outro famoso jogador do Internacional, quando jogava no exterior, longe da família, sem falar o idioma local, sem amigos e sem referências, subiu no alto de um prédio e por pouco não se arrojou de lá, acabando com sua vida. Teve mais sorte do que Fabrício.

Fabrício explodiu, rompeu a corda. Diante de tanta tensão acumulada ele não aguentou a(s) pressão(ões). Não suportou o desprezo da torcida por quem se dedicava ao limite e jogou tudo para o ar. Todavia, quando o que ele mais precisa é de compreensão e de uma palavra amiga, ele recebe deboche, críticas, mais violência e desprezo. O objeto Fabrício passa a ser desimportante e, mais ainda, incômodo. “Joguem fora essa peça, ela já não nos serve mais.

Fabrício precisa de um abraço. Se serve o abraço de um gremista, aqui vai. Erga a cabeça, olhe para frente, pense na sua família, tente se acalmar. Existe um grande futuro ainda possível, se você puder ultrapassar este momento.

Vai passar, vai passar…

1 comentário

Arquivado em Pensamentos, Violência