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Nostalgia

Sim, é verdade que idealizar as antigas gerações é um traço comum de qualquer sociedade. Temos a mania (quem não?) de começar frases com a famosa “No meu tempo…”, e depois fazer rasgados elogios às brincadeiras, ao trabalho, à cidade, à família e às relações de amizade de outrora. Isso porque a idealização das gerações passadas obedece a mesma lógica da idealização da infância.

Fazemos isso por mecanismos psíquicos bem simples. É muito comum retirar dos primeiros anos de vida o medo, o horror e o desespero que caracterizam a infância, um período da vida onde a crueza das emoções nos assalta sem anteparos e proteções. O pânico que sentíamos de situações corriqueiras é apagado da memória como forma de proteção do Eu. Da mesma forma, mantemos na mente as brincadeiras, o amanhecer e o convívio com a família entre as mais belas imagens do filme da nossa infância, mas cortamos dele as cenas de abuso, as surras, o medo, a tristeza, a solidão, a insegurança, etc. Sobram em especial as cenas bucólicas e as fugazes alegrias compartilhadas. Da mesma forma o ideal da “família feliz” do passado não passa de um mito, pois que esta construção por vezes escondia infelicidades e frustrações sob o manto desta estrutura social.

Por certo que nas infâncias vividas na brutalidade e no ambiente de terror e ameaça – como nos “filhos da guerra” – essas memórias podem assumir um tamanho desproporcional, mas não é delas que falo, e sim da infância comum. Aliás, para essas crianças do trauma e da dor, o fato de terem sobrevivido já torna o mundo de hoje um paraíso.

Falamos dos casamentos de antigamente como “cases de sucesso”, e criticamos o caráter frágil das relações atuais. Todavia, mulheres e homens de antigamente não eram mais felizes do que hoje. Para ambos faltavam opções, em especial porque até poucas décadas atrás os relacionamentos eram muito mais fatos sociais do que uniões pautadas no amor – algo bem recente na história do planeta. Como diria Contardo Calligaris, “O casamento sempre foi um sucesso, o que atrapalha é o amor”. Se para as mulheres do passado era um terror viver ao lado de um homem violento, para os homens também era terrível continuar dormindo com alguém que os desprezava – afetiva e sexualmente. Para ambos a falta de opções era brutal, e os novos tempos ofereceram a eles a possibilidade de uma vida mais livre, mas com o risco inerente aos relacionamentos mais frágeis. Se os casamentos eram mais duradouros no passado isso se referia apenas à forma desse laço social – rígida e incoercível – mas não ao conteúdo amoroso e erótico que poderia brotar dessa relação.

Idealizar o passado é, portanto, inevitável pela seletividade das nossas memórias. Entretanto, é necessário entender os contextos e as dores que surgem do progresso. É fundamental compreender as perdas inerentes a qualquer salto tecnológico assim como dar-se conta do quanto deixamos de viver em plenitude com a natureza ao nos envolvemos na modernidade. Porém, o saudosismo não é uma ferramenta adequada para corrigir nossas rotas, pois que esconde o joio para nos mostrar apenas o trigo.

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Quando o inverno chegar

Quando o inverno chegar passarei minhas letras tortas ao papel e por todas as horas do dia, inclusive quanto o sono me alcançar e pelo chumbo das pálpebras me passar uma rasteira. Até mesmo quando a fome corroer minhas entranhas com sua acidez; os sonhos serão meu alimento. Não deixarei nenhuma lembrança intocada e nenhuma memória infensa à volúpia dos olhos. Não permitirei que as ideias, em especial as incômodas e as estúpidas, permaneçam reclusas em minha mente. Quando o inverno chegar, oferecerei a elas a liberdade que me faltará e o espaço que desejaria. Darei às minhas palavras a alforria, garantindo a elas o que meu corpo perdeu.

Jean Simon Laurent, “Entre les murs”, (Entre muros), Ed. Paschoal, pag 135

Jean Lauren foi num escritor francês nascido em Nouakchott na Mauritânia em 1905. Filho de pai militar francês e mãe mauritana, chegou à Paris em 1910 quando seu pai foi transferido para o Ministério da Defesa francês. Cursou direito em Paris e formou-se com lauda em 1931, vindo a trabalhar com direito migratório. Especializou-se na questão da Argélia e viajou diversas vezes à colônia francesa, emprestando total solidariedade à causa argelina. Tornou-se amigo pessoal de Albert Camus e grande divulgador da obra de Franz Fanon. Mulato, homossexual e anti colonialista, foi preso em Marselha em 1957 acusado de auxiliar na entrada ilegal de magrebinos na França. Escreveu vários livros, romances e livros sobre os direitos dos imigrantes, e na prisão escreveu ” Entre les Murs”, uma espécie de “De Profundis” da língua francesa, onde fala de suas paixões, suas lutas e sua história, e não se furta de falar abertamente de sua homossexualidade. Morreu de tuberculose na prisão em 1961, no mesmo ano da morte de seu amigo dileto Albert Camus.

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Objetos

Quase todos as noites ouço meus netos correndo com seus passos miúdos e os pés descalços em direção ao meu quarto. Trazem no rosto o olhar que conheço muito bem: a avidez por alguma novidade, uma conversa, algo para contar da escola ou um bicho diferente que viram perto do galpão de sementes. Mas na maioria das vezes eles apenas dizem em uníssono:

– História!!

Eu sempre reclamo, pois na hora que me pedem eu estou invariavelmente fazendo alguma coisa “importante”, seja estudando para uma prova, escrevendo ou olhando um vídeo. E eu sempre paro tudo o que estou fazendo porque sei que, no meu leito de morte, vou imaginar que todo o dinheiro do mundo seria pouco para poder reviver estes momentos. Melhor vivê-los agora, enquanto ainda é tempo.

Ato contínuo, o menor se volta para a vó e grita poucas palavras, mas que servem como um código para a sessão de aventuras que se aproxima:

– Vovó!!! Chá e bolacha!!!

E lá vem ela com três xícaras de chá de casca de limão (colhido na Comuna) e uma travessinha que ela trouxe do Japão quando fez estágio pela JICA em Osaka. A rotina então se repete: eles tomam o chá enquanto eu conto a história e depois distribuem farelo de bolacha salgada por todos os cantos do quarto. Terminado o capítulo, com o famoso “qua qua qua qua…” decrescente, eles ficam brabos, fazem ameaças, choram e reclamam, mas por fim aceitam ir para casa dormir.

Entretanto, o que mais me chama a atenção são estes objetos aleatórios que ficam marcados nas vidas das crianças, guardados nas memórias mais profundas. Só muito mais tarde reaparecem em suas vidas adultas, já modificados, codificados, transformados. Estes objetos fazem parte do acervo de pequenas coisas do período inicial das nossas vidas, e que depois desaparecem, porém jamais completamente. Ficam adormecidos em algum lugar da mente, para serem trazidos em formas diversas em outros momentos.

Tenho vários destes do tempo em que eu convivia com minha avó materna, a vó Irma. Quando eu passava fins de semanas inteiros na sua casa eu lembro das pequenas coisas, do quarto de ferramentas, do jardim nos fundos, das orquídeas bem tratadas e de tantos outros badulaques.

Não tenho a menor dúvida que estes artefatos ainda me acompanham, mesmo que travestidos de outras coisas, das quais não me desfaço por saber que são parte do simbólico que me constitui.

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Wish you were here

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Eu sempre soube que tinha uma mente infantil, mas Freud me ensinou que não devo me culpar (muito) por isso. Quando viajo, em especial, relaciono coisas, lugares e objetos com pessoas. Acho que é a solidão, mas até quando viajo acompanhado tenho essa mania. As pessoas ao meu lado não tem a obrigação de se encantar com as mesmas coisas que eu, fazer as mesmas associações ou se ater àquele específico aspecto de um fato ou acontecimento que atraiu minha atenção. Não há como pedir a elas que se adaptem ao meu giro mental ou emocional.

Por isso penso em pessoas. Vejo algo e penso: “Fulano gostaria de ver isso e tenho certeza que ele teria uma ótima observação a fazer“. “Fulana gosta desse escritor, a adoraria mostrar esse livro para ela“. “Sicrana gosta de sentar diante de uma paisagem assim e simplesmente contemplar enquanto fuma um cigarro. Gostaria que ela estivesse aqui“. (essa última é Robbie)

Isso me faz pensar que nenhuma experiência para mim tem valor absoluto, por si só. Ela precisa ser contada, descrita, desenrolada como um sonho, que se constrói e organiza na medida em que se conta, usando o material onírico bruto e disforme que sobrou em nossa mente.

Agora mesmo, sozinho num banco de metal em frente ao Starbucks já passaram à minha frente mais de uma dúzia de amigos com quem gostaria de dividir um comentário ou fazer uma pergunta.

Ou somente olhar para as árvores em volta sem dizer coisa alguma. Ou dizer bobagens; também serve

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Merecimento

São-joão

Caminhava ao seu lado apressando meu passinhos de criança para acompanhar suas pernas compridas. O ano era 1965, o mês novembro. Não contava mais do que cinco anos de idade. Porto Alegre não tinha mais que meio milhão de habitantes. Poucos carros ousavam cruzar suas esquinas e bondes amarelos da Carris ainda riscavam os paralelepípedos das ruas vazias. Os congestionamentos chegariam apenas 20 anos depois.

Andávamos, eu e meu pai, pela Av. Salgado Filho, perto de onde, três décadas depois, eu teria meu consultório. Na frente do Cinema São João passamos por uma banca de jornais onde, além das Revistas Manchete, Fatos & Fotos, Realidade e da fotonovela Sétimo Céu era possível comprar a Folha da Tarde e o Correio do Povo. Além disso podiam-se ver perdurados nas paredes do “stand” os bilhetes da Caixa Econômica Estadual.

Além das bancas, as loterias eram vendidas por ambulantes, que gritavam suas profecias nas esquinas do Centro. “Mil novecentos e quarenta, quem nasceu nesta data?”, gritava o ceguinho com a bengala em uma mão e a tripa de bilhetes na outra. “Olha o bilhete da sorte, gurizada medonha!!” tornou-se o bordão famoso na voz poderosa do vendedor, que perambulava em frente a Casa Slopper, imortalizada na música “Miss Suéter”, de Bosco e Blanc.

Minha atenção dividiu-se entre a mão segura e firme do meu pai e as cartelas coloridas penduradas na banca. A promessa era clara e insofismável: compre um bilhete e fique rico. Um premio que daria acesso a toda as felicidades estampadas nas publicidades que desde cedo caíam sobre minha cabeça de menino.

– Pai, disse eu, por que você não compra um bilhete? Se sair o seu número você pode ficar rico, e se você ficar rico pode comprar tudo, tudo, tudo que tiver no mundo e mais todas as coisas do universo. Compra vai…

– Acho que não, disse ele, sem diminuir o passo e sem desviar a atenção para os bilhetes coloridos.

– Mas pai, se você ganhar podemos ter tudo, comprar tudo.

Somente então ele diminuiu o passo e olhou para mim. Sua resposta foi em uma frase curta e breve.

– Eu acho que nenhum dinheiro tem valor se não for fruto do seu trabalho.

Aquela frase simples, de uma certa forma, selou um destino. Em verdade, nunca podemos saber ao certo o impacto que uma frase, ação ou atitude vai produzir na vida de uma criança. A frase, dita em um despretensioso passeio pela cidade, permaneceu meio século em minha memória. Sua energia sobreviveu por décadas talvez porque ela resumia, de uma forma honesta e concisa, a postura ética que meu pai seguia. Para ele só seria lícito colher o que se plantou, sejam frutos saborosos ou os espinhos que os cercam.

Quando lembro desse evento penso que estas frases soltas em nossa memória são os minúsculos quadriláteros coloridos que compõem o caleidoscópio de nosso mundo psíquico. Somos constituídos por estas pequenas lembranças, cuja força e intensidade moldam nosso caráter.

Por esta singela razão cuide o que diz diante dos pequenos. Talvez suas palavras sejam mais importantes do que você imagina, e são, em verdade, os alicerces para a construção daquela personalidade que aos poucos se constitui.

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Memória

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Tenho uma memória condizente com a minha idade. Isto é: uma porcaria. Nomes de ruas, atores de Hollywood, nomes de antigas pacientes e seus filhos e títulos de filmes me fogem à lembrança com muita frequência. Por sorte eu pergunto algumas coisas pra Zeza, o que ajuda um pouco. Não que ela tenha uma boa memória, mas os “black spots” dela são diferentes dos meus. No “conjunto” nós dois juntos temos uma boa memória.

Eu gostaria de ter a memória prodigiosa do meu irmão Roger sobre jogos do Grêmio nos campeonatos gaúchos dos anos 80, ou a memória da minha filha Bebel para qualquer coisa, porém não tenho estes dons. Entretanto, minha memória é seletiva e peculiar.

Tenho uma memória visual muito boa, e eu mesmo me surpreendo com ela. Há alguns dias repeti com surpresa um desses momentos. Estava no shopping, na “praça de alimentação” (nome pomposo para refeitório ou comedouro) quando, distante uns 15 metros de onde eu estava, um senhor careca se ergueu da cadeira e encaminhou-se para pegar sua bandeja. Esteve o tempo todo de costas para mim. Nesse instante, vendo-o caminhar, um sinal acendeu em minha memória.

– Esse cara estudou comigo na escola.

– É médico? perguntou Zeza.

– Não, respondi, ele estudou comigo no segundo grau, e eu não o vejo há mais de 40 anos.

Quando voltou com sua bandeja pude ver seu rosto, mas esta imagem apenas confirmou minha impressão inicial. Eu o reconheci pelo jeito de caminhar, a forma como esconde a cabeça entre os ombros, como encolhe os braços a cada passo e como gira a cabeça sem que o corpo acompanhe. E vejam… ele é calvo agora, mas na época da escola ostentava uma longa cabeleira.

A memória me parece composta de fragmentos que apenas fazem sentido quando justapostos. As coordenadas físicas do meu colega, quando colocadas lado a lado, levaram a um ponto único e especial no mapa da minha memória. Quando o ponto foi descoberto girou a chave do reconhecimento. E isso sem que fosse necessário ver seu rosto!

Passei o almoço pensando nas peculiaridades da memória porque antes de chegar à cafeteria quase esbarrei em um bela menina de sorriso meigo que foi uma paquera de escola quando tínhamos 15 anos. A mesma simpatia e timidez cativantes, o mesmo rosto redondo com covinhas. Eu a reconheci pelo sorriso e o jeito de olhar, baixando o queixo e olhando de forma reservada, de baixo para cima. A única dificuldade, e o que efetivamente me impediu de cumprimentá-la, foi que ela tem realmente 15 anos, e eu inequivocamente envelheci. A imagem que vi era apenas uma projeção paralisada há 40 anos. Será que ela congelou seu corpo nas últimas 4 décadas e acabou de ser desperta do seu sono criogênico? Será a menina que vi o clone que fez de si mesma?

Nunca saberei. Ela passou e apenas a lembrança permaneceu. Queria perguntar a ela como a vida vida a tratou, que plantas semeou, que amores, filhos, ideias e sonhos colheu. O que fez ela com a vida que ganhou?

O nome? Não lembro. Tenho uma memória péssima.

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