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Pudor

Há uns 15 anos escrevi aqui no Facebook uma frase que causou irritação em muitas pessoas. Ela dizia simplesmente: “Das virtudes femininas a que mais me atrai é o pudor“. Parecia ser um elogio ao bom comportamento, à moral burguesa ou à sacrossanta instituição do patriarcado. Não; tratava-se tão somente do reconhecimento do valor da privacidade, da intimidade e da importância de manter certas coisas reclusas e guardadas para si. Falava da importância de reconhecê-las como elementos pessoais, para que não perdessem seu valor na diluição produzida pela distribuição gratuita aos olhares afoitos. Uma mulher que sabe fazer isso, provocando a intensa ansiedade em quem tenta desvendá-la, conhece os encantos e os segredos da sedução.

Mas vejam, não se trata de uma cartilha de comportamento ou um protocolo de conduta, apenas a confissão daquilo que toca, estimula e cativa a minha atenção. “O pudor é a mais inteligente de todas as perversões”, diz o personagem do filme “Amarelo Manga”, ao cruzar com a protagonista, e frase encerra inúmeras conexões com a forma como ligamos nosso desejo. Nelson Rodrigues entendia bem desse assunto ao colocar tantas personagens tímidas e pudicas em suas novelas. Talvez também para ele esta condição seja um poderoso gatilho para o encantamento.

A famosa escritora de pornografia feminina Cassandra Rios, quando instada a descrever um homem sensual e provocante, deu uma resposta simples e direta: “Um homem completamente vestido, preferencialmente de farda”. Se fosse a mim perguntado sobre a mulher ideal, minha resposta seria: “aquela que mantém guardados seus segredos de forma que nunca seja possível desvendá-los por completo, mas que nos permite gastar uma vida inteira ao seu lado procurando pelas respostas”. 

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Privacidade

Gal Costa era casada com Wilma, e com ela tinha um filho. Entretanto, negava-se a falar publicamente sobre o assunto. Apesar de ser algo de conhecimento popular, ela nunca “saiu do armário” publicamente, declarando-se abertamente homossexual. Algumas pessoas chamaram sua atitude de “auto preconceito”, típica de alguém que não se aceitava. Outros elogiaram o sigilo, exaltando a importância da inviolabilidade da vida privada.

Esse diagnóstico é arriscado. Não há como saber o que exatamente a fez manter privada sua orientação. Pode ter sido por vergonha, assim como pode ter sido motivada por pudor. Ahhh, o pudor, o mais belo (e raro) dos atributos em uma sociedade saturada de hiper exposição.

Talvez a escolha por manter fechado esse aspecto de sua vida seja a simples postura de valorizar sua arte e não permitir que sua sexualidade ocupasse mais as manchetes do que o seu cantar. Muitas mulheres voluptuosamente bonitas se sentem constrangidas ao notar que sua beleza ofusca seus outros talentos, escondidos atrás de uma formosura estonteante. Alguns atores e atrizes ficam até feios de propósito com o objetivo de demonstrar virtudes para além da beleza, como o fizeram magistralmente Tom Cruise em “Trovão Tropical”, Charlize Theron em “Monsters”, Jared Leto em “Capítulo 27” e Christian Bale em “O Maquinista”. Talvez Gal desejasse que sua música fosse a razão única para ser admirada.

A tese que mais me seduz é de que ela pode ter tentado tão somente proteger seu amor, que seria um alvo fácil da imprensa de escândalos. Manter incógnito seu afeto pode ter o objetivo singelo de garantir que sua parceira não seria perseguida, constrangida e invadida pelas hordas de gente interessada em puro voyeurismo de celebridades.

Não há como saber o que realmente leva as pessoas a esconder uma parte tão significativa de suas vidas. Além disso, não há como agradar um público sedento por identificações. O julgamento destas atitudes vai depender sempre de elementos afetivos. Se você não gosta da pessoa vai dizer que ela foi covarde e que a exposição de sua vida amorosa ajudaria outras pessoas a não sentirem vergonha de amarem igualmente desta forma “especial”. Já se você a admira, vai preferir acreditar que todos temos o direito sagrado à privacidade, e que o exercício deste direito por parte dela demonstra o valor que dá à sua arte, impedindo que seja eclipsada pela imprensa que sobrevive de fofocas.

Como sou um sujeito reservado, entendo perfeitamente o silêncio de Gal Costa. Responderia da mesma forma a qualquer intromissão que julgasse indevida. “Não estou vendendo exposições da minha privacidade. Ofereço minha arte e minha emoção. Caso não a queiram, não me peçam um escândalo em troca”, seriam minhas palavras. E acho que foi exatamente o que Gal tentou dizer….

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Pudor

Há alguns anos, quando a exaltação da imagem e da individualidade ainda engatinhavam na Internet (antes do Instagram), eu escrevi uma frase provocativa no Facebook. Apesar de ser um convite ao debate, foi uma frase sincera, já que sempre foi a minha real percepção: “De todas as qualidades femininas, a que eu mais acho atraente é o pudor”. Sim, eu sei, era para provocar e para transgredir, fazendo um percurso no contrafluxo da cultura. Claro que muitas pessoas entenderam como um “conselho” para que as mulheres fossem “recatadas”, o que estava longe da verdade. Não se tratava de uma regra geral, uma prescrição ou uma análise de valor. Era tão somente o reconhecimento de uma característica minha, pessoal e subjetiva: o pudor é, para mim, atrativo. Pudor é sexy…

Entendo o pudor como a tendência a proteger a intimidade do indivíduo das invasões e dos comprometimentos. Na Grécia e Roma antigas, o conceito de pudor confundia-se com a modéstia, e para estas virtudes havia uma deusa, Aedos ou Aidôs. Em louvor a esta divindade existe um altar em Atenas e dois santuários em Roma. Ela – a modéstia – é uma das virtudes mais atacadas na modernidade, uma das mais desprezadas, sendo até confundida com falta de amor próprio. Para mim ela está mais bem representada na modéstia de Pitágoras:

“A modéstia de Pitágoras é muito sábia, pois que a profundeza e a dificuldade das verdades supremas, assim como a fraqueza da natureza humana, “escrava sob tantos pontos de vista”, são causa de que a sabedoria “não seja um bem recebido pelo homem a título de posse” ou de propriedade, isto é, um bem que ele possa empregar de modo inteiramente livre”. (apud Maritain)

O grande líder da Revolução chinesa, Mao Zedong, já nos dizia que “Só progride quem é modesto. O orgulho nos obriga a dar passos para trás.” Já o pintor e pós-impressionista francês Paul Cézanne mostrava que a modéstia, em verdade, nos aponta para a percepção de nosso lugar no mundo ao dizer que “A consciência da nossa própria força faz-nos modestos.” Por fim, o escritor e enciclopedista Charles Pinot Duclós escreveu que “A modéstia é o único esplendor que se pode acrescentar à glória. Ela é um véu transparente, que atrai e fixa os olhares”. Acho interessante debater a modéstia em um mundo de exaltação individualista e diante dos debates que sempre surgem a partir dos enfrentamentos entre o ocidente e o oriente. Passei a pensar sobre os véus exatamente por esta perspectiva: o que é mais “moderno” e em consonância com a liberdade, expor-se para todos ou mostrar-se apenas para quem você mesmo escolhe?

Hoje em dia eu, ao percorrer o Youtube, vejo a manifestação de atores, subcelebridades, personagens da mídia e pessoas comuns manifestando a absoluta falta de reserva no trato de sua vida íntima. Vejam, não se trata de abordar qualquer assunto – como sexualidade, política, feminismo, liberdade, direitos humanos, etc – mas da exposição desabrida da SUA intimidade. Mulheres descrevendo de forma realista e pormenorizada suas relações sexuais, homens falando de suas funções orgânicas da forma mais grosseira possível em uma exaltação escatológica, gente descrevendo as relações familiares (muitas vezes abusivas) sem qualquer reserva, expondo seus ódios, suas fantasias, suas vergonhas e seus amores para o mundo. Sem nenhum pudor.

Confesso que este tipo de exposição me incomoda, mas não se trata de “proibir” ou mesmo de “condenar”. Posso saudar a liberdade que temos de fazer estas exposições, mas ao mesmo tempo questionar qual o sentido do absoluto despudor. A quem interessam estas manifestações que rompem totalmente os limites entre a vida pública e privada? Muitos, dirão, movidos pela curiosidade mórbida, a mesma que nos faz diminuir a marcha do carro ao passar por um acidente. Sim, mas que serventia tem essa abertura da vida íntima para quem se expõe? Além da fama fugaz, o que sobra de sujeito a ser desvendado quando não há mais nenhuma intimidade a ser desvelada? Há alguns anos uma amiga me disse algo que me fez questionar minha posição sobre o “despudor”.

– Tenho um segredo que jamais contei para ninguém, e acho que não gostaria de morrer com ele. Posso lhe falar o que é?

Ela me contou o seu segredo, e o guardo até hoje. Entretanto, o fato de ser o guardião de sua história, algo que lhe produziu alívio e paz, me tornou muito mais próximo dela e de sua história. Fosse um relato corriqueiro, do conhecimento de todos, talvez não produzisse tamanha conexão. A modéstia, o pudor, a escolha precisa para quem se aventurar na exposição de suas coisas mais íntimas é o que produz essa sensação de ser especial para alguém.

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Big Brother

Não sei se há respaldo legal para a aplicação de vigilâncias panópticas em centros obstétricos, onde as grávidas em trabalho de parto desfilariam desnudas diante de câmeras, exibindo-se involuntariamente a um observador à distância. Alguns dizem que este controle já é usado em alguns hospitais.

Entretanto, se isso for fato e houver garantias legais para tal, qual o problema? Qual seria a novidade em invadir desta forma o mundo privativo do nascimento na perspectiva da biomedicina patriarcal?

Posso garantir que, se essa pergunta for feita para 10 médicos obstetras, 9 deles vão olhar o interlocutor com cara de assombro, como a não entender do que se está falando. Para quem não consegue entender que “episiotomia é violência obstétrica“, como exigir que entenda a nudez das pacientes na perspectiva delas mesmas, e não de quem as atende?

Via de regra, a resposta a este questionamento será: “Como assim? De onde tirou essa ideia?“, para logo depois arrematarem: “Vocês enxergam maldade em tudo“…

O corpo das mulheres, ao olhar da medicina, é dessexualizado; um corpo real, tornado des-animado para assim oferecer proteção à atuação dos profissionais. Monitorar grávidas desnudas não parece, aos olhos da medicina, configurar uma invasão da intimidade ou da privacidade.

Entrar em um hospital para parir significa perder sua condição de cidadã e sua autonomia, e abrir mão dessas “frescuras” de intimidade, pudores e privacidade. Estas necessidades, tão humanas e banais, ficam no guichê do hospital, junto com os documentos e a carteirinha da Sulamérica. Assim, não causaria nenhum tipo de surpresa se o “big brother” obstétrico achasse normal, natural e benéfico vigiar corpos-máquinas desnudos fazendo seu trabalho de procriação.

Qual o sentido dos corpos já deserotizados pelo sistema de atenção ao parto reclamarem e questionarem a perda de sua privacidade?

Big Brother is always watching you...

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Pudor

Uma vez eu disse uma frase no meu Facebook que ajudou a piorar minha fama. Na verdade era a pura expressão de uma percepção que eu tinha de mim mesmo, e não dos outros. Mesmo assim, levei paulada. A frase era até bem simples: “De todas as virtudes de uma mulher a que mais me atrai é o pudor“.

Evidentemente eu falava de uma perspectiva subjetiva e bem pessoal, mas algumas preferiram tomar isso como uma afirmação prescritiva e, como de hábito, choveram afirmações redundantes como “a mulher se veste como quiser”, ou as previsíveis “mulher se veste para si e não para os outros”. É óbvio que se veste como quiser; hoje em dia quem ousaria questionar esse direito? Também é certo  que se veste para si mesma, mas sempre em função do olhar do outro.

Apesar das contrariedades, mantive o que disse até porque não se tratava de uma “opinião”, mas de um sentimento, absolutamente pessoal, que fala de mim e não das mulheres. Também não acredito que haja uma maneira “correta” ou justa de se vestir, e esta liberdade vai desde o nu total à roupa de uma marquesa francesa do século XVII. Não faço mais julgamentos sobre a forma como os outros se cobrem.

Entretanto, o pudor é o mistério que sussurra. Ele provoca e instiga ao invés de oferecer sem luta. Produz uma mobilização interna que vai além do olho, e se acomoda nos porões obscuros de nossa imaginação. Por isso casei com a mais recatada das mulheres, a mais reservada e cuja alma, ainda hoje, guarda segredos a serem perseguidos. E acreditem, o pudor foi o gatilho.

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