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Surdez

Acabei tomando contato com a medicina americana em diversas ocasiões, seja ao consultar com um terapeuta “holístico” em Cleveland há uns dez anos, seja pelos inúmeros contatos que tive durante as consultas a que fui convidado a assistir de amigos meus que moram por lá.

Eu já descrevi anteriormente as minhas impressões sobre a assistência médica americana, que pode facilmente ser considerada a mais tecnocrática das práticas de saúde do mundo, entretanto, pensei em mais uma vez descrever minhas ideias. Para a medicina americana – ou estadunidense – o ápice da atenção é oferecido através do acesso e uso da tecnologia – o mito da transcendência tecnológica. Quando mais sofisticados os testes e tratamentos, mais valorizados são os médicos pela cultura como um todo – e isso inclui médicos e pacientes. A adesão ao paradigma exógeno de doença e adorcista de terapêutica é explícito e propagado como superior: tecnologia é sinal inequívoco de qualidade.

Para além desse paradigma existe um afastamento quase religioso dos profissionais em relação aos pacientes. A vida do médico fora do ambiente das consultas é algo interditado àqueles. O cenário onde se encenam os encontros são os únicos locais onde os médicos serão acessíveis. Lembro vividamente do assombro do marido americano de uma paciente que atendi em Porto Alegre quando ofereci a ambos um cartão onde constavam os telefones da minha casa e o meu celular. “Eu nunca vi isso em toda a minha vida“, disse ele assombrado.

Os consultórios padrão de médicos americanos ficam em “centros profissionais”, um modelo multiprofissional que tentam implantar no Brasil também. São salas gigantes onde muitos funcionários trabalham, desde as recepcionistas até as “auxiliares de médicos”, que são profissionais formadas para dar assistência ao trabalho de consultório. São elas que medem seus sinais vitais – vestidas com as indefectíveis roupinhas de bloco cirúrgico – fazem perguntas típicas da anamnese, escrevem suas queixas, avaliam sua receita anterior e anotam tudo em sua ficha. Saem da sala com um sorriso e avisam que o doutor em breve chegará.

Minutos depois chega o(a) medico(a) acompanhado(a) por esta assistente, a qual segura o tablet com as anotações na mão. Fica claro pela sua postura e atitude que a conversa não vai demorar mais do que 5 a 10 minutos. Também é óbvio que as consultas obedecem um modelo “fordista” de linha de montagem. Enquanto a auxiliar aplicava o questionário o médico estava em outra sala, com outra auxiliar, e enquanto nos atendia outra auxiliar já preparava a próxima paciente. Via de regra, o médico dá uma olhada superficial nas anotações da assistente (queixas, drogas, exames, etc) e faz algumas perguntas absolutamente simples sobre o caso. Faz a consulta de pé, na frente da paciente, com a fantasia típica de médico (avental, estetoscópio no pescoço, canetas, brilhantina no cabelo, perfume, etc). Quase nunca olha nos olhos; 70% do tempo olha para a ficha.

Quando minha amiga explicou que eu era “um médico do Brasil visitando o país” apenas sorriu como que a dizer “poderia ser o Papa, não faz diferença alguma”. Não foi arrogante, sequer antipática, apenas agiu como se eu não estivesse ali. E pela conversa, minha presença não faria mesmo nenhuma diferença. Inobstante a especialidade do profissional a consulta é absolutamente técnica, objetiva e específica, nenhuma questão pessoal, afetiva ou emocional é tangenciada, por mais que estes temas sejam evidentes na queixa principal.

Qualquer pergunta que seja de outra especialidade – por exemplo, perguntar para um gastroenterologista sobre o aparecimento de feridas nos pés – é rechaçada imediatamente com a indicação para procurar um colega. Não se misturam as especialidades. A consulta termina com a paciente sendo orientada a passar no guichê para pegar a receita, a nova solicitação (gigantesca) de exames e os remédios, que são vendidos ali mesmo.

Para um profissional com formação em homeopatia, como eu, ou que fez um longo percurso pela psicanálise – onde uma consulta pode durar 60, 90 minutos divagando por inúmeros pontos significantes da vida do paciente – o modelo técnico das consultas americanas é chocante. Olhar para um paciente como sendo formado por órgãos estanques e desconectados, com um corpo fatiado em especialidades, medicado de forma ostensiva, desconsiderado enquanto sujeito, objetivado e coisificado em seus constituintes químicos e hormonais, é uma experiência impressionante e chamativa.

Não posso dizer que esse é o pior modelo de atenção à saúde que eu já vi, até porque não me sinto em condições de ser o juiz desse certame. Todavia, a incapacidade de enxergar a energia vital imanente do corpo que sofre, o laço etéreo e espiritual que une os significados aos sintomas e o sofrimento psíquico como ferramenta diagnóstica que denuncia as características últimas do sujeito é para mim um desperdício brutal da arte médica.

Se é verdade que “aquilo que o paciente traz como sintoma é seu verdadeiro tesouro”, a surdez contemporânea aos lamentos profundos das almas é o mais claro sintoma da doença da Medicina. Que não sejamos também nós surdos à dor que ela tão evidentemente nos mostra.

Veja mais sobre “Medicina Americana” neste outro post publicado em 2017.

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Vigilância fetal

Sobre vigilância fetal:

Minha pergunta é simples, até singela: haverá uma justificativa comprovada dos benefícios da vigilância ostensiva sobre o bem estar fetal se forem retirados todos os condicionantes tecnocráticos da assistência ao parto?

A ausculta fetal faz parte do cenário da assistência ao parto, assim como os exames de toque sequenciais e sistemáticos. Estes últimos só agora – e muito timidamente – começam a ser questionados. Já a ausculta se mantém intocada e impávida. Ambos os exames produzem poderosas mensagens subliminares: o profissional é quem diz do andamento do parto, e estabelece o bem estar do bebê. Só ele tem o livro de códigos para saber o que houve, quanto falta e se tudo está bem. As mulheres e seus maridos são passivos observadores da tradução que o profissional faz a partir destes sinais. Um poder gigantesco, acreditem…

Porém, sempre houve em mim uma dúvida corrosiva sobre a real necessidade destas invasões, ou quais os limites desta intervenção. Se fosse possível eliminarmos o stress, o isolamento (físico e psíquico), o medo, o pânico induzido, a separação, as drogas indutoras, os anestésicos, a linguagem agressiva e a própria hospitalização – ápice da objetualização da gestante – continuaria sendo válido o tratamento do bebê como “bomba relógio”, prestes a explodir? Qual o real percentual de bebês que produzem transtornos perceptíveis em partos livres do artificialismo da medicina atual? Talvez ninguém tenha essa resposta…

Quem sabe esta ação panóptica sobre o bebê se justifica apenas pelo ordenamento tecnológico que o antecede?

Será esta ausculta o resultado natural que criamos para remendar o estrago anterior criado pela profunda desnaturalização do parto pelas culturas contemporâneas?

Parto desnaturalizado = punch 1
Vigilância fetal = punch 2

Ou…

A polícia brutal que temos e a vigilância sobre pretos e pobres não é o resultado da sociedade de classes? Eliminadas as castas e a brutalidade de sua injustiça quanto ainda precisaríamos de polícia?

Creio que tratamos como necessidade o que é, em verdade, a criação artificial derivada de uma deturpação.

Não é?

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Cultura do medo

The nurse relaxing Jerald before the milk challenge during the Labor Games.

Em “Media Representations of Pregnancy and Childbirth: An Analysis of Reality Television Programs in the United States”, os pesquisadores Morris e McInerney (2010) descreveram a resultados de sua análise de conteúdo de 85 reality shows que retrataram 123 nascimentos, exibidos nos EUA no “Discovery Health” e no “The Learning Channel” em novembro de 2007, concluindo que “os corpos das mulheres eram tipicamente exibidos como incapazes de dar a luz um bebê sem a intervenção médica “. (Ways of Knowing about Birth – Robbie Davis-Floyd, no prelo)

Não é de se admirar que, na cultura contemporânea, o parto seja visto como a “crônica de um desastre anunciado”. A sociedade, através de seus meios de controle social (a televisão em especial), cria e amplifica a ideia central da defectividade feminina e sua extremada dependência da ciência e da tecnologia para superar seus desafios fisiológicos. Nesta abordagem, os heróis são sempre os médicos e a tecnologia, responsáveis últimos pelo resgate das pobres e frágeis mulheres de sua natureza imperfeita e traiçoeira. Nos filmes, documentários e séries, a gestação é quase sempre retratada como um momento dramático, perigoso e causador de tragédias. Como dizia meu obscuro professor na residência, “uma grávida é um equilibrista nas alturas sobre a corda bamba, e vocês são a rede“. Por que tanto espanto quando as mulheres descrevem o parto como algo que lhes causa terror e medo? A quem cabe a culpa por uma “cultura de medo” sobre o nascimento?

A fragilidade do organismo das mulheres e sua incapacidade de parir com segurança sem a intervenção patriarcal da obstetrícia são mitos que sobrevivem ao tempo, mas cuja disseminação não se expressa num vácuo conceitual. Pelo contrário; são parte essencial do controle dos corpos, o biopoder e a dominação patriarcal sobre a sexualidade feminina.

A mudança na forma como entendemos o parto nas sociedades ocidentais não se fará pela simples disseminação de informação de qualidade, como ingenuamente acreditam os racionalistas. Esta transição é um processo cultural, e só se dará obedecendo os movimentos de fluxo e contrafluxo de qualquer outro fenômeno social. Na atual conjuntura, a abordagem intervencionista da obstetrícia ocidental ocorre por meio de um acordo mútuo entre as mulheres e seus médicos, que se baseia nos valores fundamentais e na abordagem geral da vida inserida na cultura tecnocrática.

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Free Birth

“Free Birth” se refere às mulheres no mundo ocidental que voluntariamente abandonam o sistema de saúde e decidem parir livremente, por sua conta e risco. Minha ideia é de que tal abandono dos recursos médicos (com o qual não concordo) é consequência da negligência do modelo biomédico contemporâneo para com as necessidades básicas (fisicas, psicológicas, sociais, emocionais e transcendentais) das mulheres, algo que os médicos sequer conseguem perceber em função de estarem à deriva no oceano paradigmático da tecnocracia.

Ou, nas palavras da antropóloga Wenda Trevathan, este afastamento está baseado “na falha do sistema médico de muitas nações industrializadas em reconhecer e suprir as reais necessidades das mulheres que atravessam o rito de passagem chamado parto”.

“Parto Livre” é o sintoma; a distância do sistema médico do que desejam as mulheres para si e para seus filhos é a doença.

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Medicina e capitalismo

Sempre que visitei os Estados Unidos da América acabei acompanhando amigos em suas visitas aos seus médicos. Certamente já encontrei com mais de dez desses profissionais, entre jovens e velhos e de inúmeras especialidades e nacionalidades. Alguns aspectos em comum me chamam à atenção entre todos os atendimentos:

  1. Os consultórios são mortos. Não há vida. São padronizados, frios, inespecíficos. Parecem entrepostos na estrada onde se vende junk food. Quando se chega à recepção poderíamos imaginar ser uma agência de seguros, um posto do correio, uma secretaria de escola ou uma repartição pública. Muita propaganda nas revistas médicas, nas paredes, nos panfletos. A recepção é gigante, maior do que qualquer consultório onde já trabalhei. A burocracia é uma coisa por demais chamativa. Mesmo antes da consulta o paciente precisa preencher um extenso formulário onde já escreve suas queixas, os remédios usados, as doenças já registradas no sistema. Por isso pedem tanto que o paciente chegue no mínimo meia hora antes da consulta – que nunca ocorre na hora.
  2. Muitos funcionários. Atrás do guichê de vidro sempre umas 4 funcionárias com computadores, fichas, papéis do seguro. Impressoras, desktops, scanners, e tudo o que a tecnologia moderna oferece. Todas usam modelitos verdes de hospital, roupas que aqui são usadas apenas em blocos cirúrgicos.
  3. A primeira etapa é sempre uma pré-consulta com uma funcionária (auxiliar médica) que faz perguntas “sim-não”, numa entrevista ao estilo  boleano, sobre fumo, drogas, gestação, abortos, alergias, etc. e que vê sua pressão, peso, etc. Depois de alguns (às vezes muitos) minutos chega o(a) doutor(a). Toda essa espera, e a ritualística para aguardar o profissional, garantem um caráter solene à chegada de sua santidade, o médico.
  4. A consulta dura poucos minutos e tem um formato absolutamente técnico. O profissional não faz nenhum tipo de anotação; tudo é feito pela sua secretária ao lado, com uma ficha ou um tablet no colo. Nenhum nível de empatia com o paciente; nenhum assunto delicado é abordado. Não há espaço para qualquer tema que não seja específico da sua especialidade. Não há lugar para uma conversa franca, muito menos para a emoção. Há uma ausência total de privacidade, e por isso minha presença foi sempre tolerada. Afinal, que mal haveria em testemunhar uma consulta que sequer arranha a crosta dos sintomas que encobrem verdades inconvenientes?
  5. Capitalismo e tecnocracia por todos os lados. Em nenhuma consulta se falou especialmente de dietas, saúde emocional, afetos, exercícios ou estilos de vida; apenas drogas, testes e procedimentos. Na saída do consultório passa-se por um balcão de venda de produtos da especialidade. Sim, eles vendem os produtos que eles mesmos prescrevem.
  6. O sofrimento humano, com todas as sutilezas, especificidades, paradoxos, contradições e subjetividades cabe em uma palavra: stress. “Esse sintoma está muito relacionado ao stress“, dizem, mas ao mesmo tempo afastam qualquer proximidade com o tema. Não interessa se stress é a morte que se anuncia, a perda de dinheiro, ressentimentos, mágoas, tristezas ou ódio; para estes profissionais nada disso ajuda a entender o quadro. Pelo contrário, apenas atrapalha. Existe uma separação absoluta dos aspectos emocionais, sociais, psíquicos e espirituais das questões clínicas debatidas na consulta; são dois mundos completamente apartados.
  7. As consultas duram 15 minutos, se tanto. Objetividade e eficiência industrial. Os pacientes parecem submetidos a uma esteira de produção. Pode-se ver a dupla médico-assistente sair de uma sala para a próxima, onde outro paciente já o aguarda, e assim sucessivamente, como em um carrossel. Os custos que observamos em cada canto, na suntuosidade asséptica das salas e no grande número de profissionais, precisam ser pagos de alguma forma. O ritmo de entrada e saída de pacientes é frenético. Entra por uma porta e no final sai por outra, mas não sem antes passar no balcão das compras. O modelo nos lembra as atrações da Disney: quando saímos do brinquedo – ainda hipnotizados pela fantasia da atração – entramos na lojinha se suvenir. Aliás, “suvenir” vem do francês souvenir “lembrar, vir à mente”, do latim “subvenire”. Esse suvenir é para lembrar ao paciente de voltar e manter o ciclo de dependência.
  8. Receitas recheadas de drogas. Muitas fórmulas para aviar nas farmácias. Muita publicidade de medicamentos. Estas drogas, por sua vez, produzirão seus desajustes específicos que vão requerer mais drogas, mais testes, mais consultas, mais gastos, retroalimentando o sistema, enriquecendo médicos e indústria farmacêutica, e expoliando os pacientes de sua autonomia. Um ciclo vicioso que só termina com a morte, quando então poderemos dizer “Fizemos de tudo“.

Se eu acredito que o sintoma é a voz de uma alma que pede para ser escutada, cuja expressão é a maior riqueza de um paciente, por certo que tais consultas são mordaças tecnológicas para impedir que os clientes possam falar de suas vidas e de suas dores. A verdade do paciente é sistematicamente obliterada. Pouca coisa poderia descrita como mais contrária aos pressupostos básicos da arte de curar do que impedir que a dor encontre uma via de escape nas palavras. Olhando para os olhos marejados da minha amiga diante das palavras insípidas do médico à sua frente eu me compadeci e por momentos imaginei que ela poderia interromper o solilóquio enfadonho e tedioso do especialista e murmurar…

Rosebud, doutor

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Minha outra vida

Minha carteirinha do “hebdo” em Paris, 1998. Essa foi a primeira etapa da minha vida, o que eu poderia chamar de “minha vida passada”. Até esta data eu não havia conhecido pessoalmente nenhum profissional do parto que fosse minimamente humanizado. Havia um professor da faculdade de medicina que se auto proclamava assim, mas hoje ele seria descrito como um “tecnocrata envergonhado”, mas jamais um verdadeiro entusiasta da humanização. Este tipo de profissional é também chamado (por Marsden Wagner, em especial) de “liberal”. Em geral não desprezam suas ideias e nem calam suas palavras, pelo contrário, eles até lhe escutam.

Eu também acho um horror esse excesso de cesarianas, mas veja que nosso hospital é de referência“, dizem. “Também tenho pensado em diminuir episiotomias, e hoje só as faço quando vejo que o períneo está para romper“, explicam. “Todos aqui sabem que sou a favor do parto normal, claro”, gabam-se.Sou a favor da humanização, mas cada um na sua função. Não acho certo enfermeiras atendendo parto no século XXI“, esclarecem eles. Esse professor atendeu o parto de uma familiar próxima e tudo o que fez foi repetir o padrão que por tantas vezes o vi, timidamente, criticar: ocitocina, litotomia, episiotomia, fórceps de “alívio”, corte prematuro, afastamento do RN. Um perfeito liberal…

Levou muito tempo para que eu percebesse que a grande barreira a vencer são as muralhas do ego. O drama que o “tecnocrata bem intencionado” tem pela frente é abandonar o suporte que o olhar dos seus iguais lhe oferece. Poucas tarefas são mais difíceis na vida de um médico do que questionar os valores de seus mestres. Como São Francisco saindo nu da Igreja, para suplantar estes desafios é preciso mergulhar no inferno de si mesmo e suportar a solidão que inexoravelmente virá. Meu olhar nessa foto é o retrato fiel de uma arrogância juvenil misturada com ingenuidade e esperança, marcas que eu ainda carregava na alma. Minha mais tola característica era acreditar que a verdade, por si só, seria capaz de mudar o mundo. Não…. ela é a base para essa transformação, mas só poderemos enxergar sua face brilhante se permitirmos que a névoa dos interesses se dissipe e seu sorriso apareça em todo seu fulgor.

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Crise médica

A crise de objetualização dos pacientes ocorre em todos os campos da medicina: em todos eles se percebe a tendência para uma relação impessoal, fria, objetual e mecânica. Isso ocorre porque nos dias atuais a tecnologia intermedeia nossa relação com os pacientes. Nossa troca não é mais direta, entre seres humanos e iguais; ela passa a ser comandada por uma força maior e mais poderosa: a promessa redentora e teleológica da tecnologia. Com isso nossos pacientes não são os receptáculos diretos de nossa ação, mas os subprodutos dos arranjos entre nosso saber e o diálogo que estabelecemos com os recursos tecnológicos.

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Tecnocracia

robo_humanoide

Muitos amigos – em especial os liberais de direita – apregoam que a administração pública seja entregue aos técnicos, pessoas que “conhecem profundamente seu trabalho”, seja ele a saúde, a administração, a defesa, a aviação, etc. Assim .. médicos para o Ministério da Saúde, banqueiros para a economia, administradores para a Fazenda, militares para a segurança, advogados para a justiça. Em outras palavras, “tecnocratas que não se deixam contaminar pelo cheiro do povo“. Viram que eu disse médicos? Porque não enfermeiros? Ora … porque na tecnocracia vale o poder e a visão que os poderosos desejam ver implementada.

Os que assim se posicionam pensam a coisa pública como sendo uma máquina que se pode ajustar, da mesma maneira com um mecânico arruma um automóvel. Esse é o erro típico da direita positivista e ingênua: a incapacidade de ver a sociedade como algo mais complexo do que uma máquina. Um estado, dos menores municípios aos conglomerados de países, é um organismo composto por seus inevitáveis choques e pressões, o que extrapola a simplicidade de um mecanismo sem vida. Um estado é um corpo animado, onde nós somos as células. O erro dos positivistas é imaginar haver uma forma “certa” de administrar e gerenciar estruturas complexas como os governos, como se fossem máquinas sem vida. Isso é impossível, em especial a tarefa de apaziguar seus infinitos conflitos.

Uma escolha política é apenas procurar alguém com a mesma visão política de quem chegou ao poder. Como, porque, onde e quanto investir em uma determinada pasta ou região. Isto é completamente diferente do conceito de CONCHAVO. Política nada mais é que a arte de gerir o bem comum. As escolhas precisam ser políticas nos altos escalões, podendo ser meramente técnicas nos baixos. Até um diretor de hospital precisa ser político, mas o chefe do bloco cirúrgico pode ser técnico. Afinal, ele apenas receberá as ordens e as cumprirá da melhor maneira possível.

Pobre do Brasil se for entregue aos “técnicos” e infeliz de qualquer país que despreze a política como comandante suprema das aspirações do seu povo.

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Alma

fingindo (1)

“É exatamente no momento em ela se mostra na radicalidade do feminino levado ao extremo, quando o corpo se enche de alma e suplanta sua arquitetura de carne e veias, é que surge o ponto cego, o significado obscuro, misterioso e incompreensível para aqueles que assumem a visão tecnocrática do parto.”

Jamais entenderão.

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Capitulação à Tecnocracia

humanização do parto

A atenção anacrônica e tecnocrática de pré-natal faz, SIM, a cabeça das mulheres em direção a uma cesariana, ilusoriamente colocada como “salvadora”, e quanto a isso não resta dúvida alguma. Existem vários estudos comprovando tal evidência, entre eles o estudo de Potter, da universidade do Texas, realizado no Brasil no início dos anos 2000. Nessa investigação fica demonstrado que – tanto no serviço público quanto no privado – as mulheres optam pelos partos normais em sua grande maioria. Entretanto, ocorre uma transformação – pela ferramenta do medo – no pré-natal, fazendo com que os índices se invertam. As mulheres tem sua autoestima profundamente abalada, ou mesmo destruída, durante a preparação para o parto, e os mitos da barriga perigosa, e da “mulher bomba-relógio” acabam vingando. O resultado é o desastre das cesarianas desmedidas, que nos coloca na “barbárie” do intervencionismo.

Quanto aos riscos do parto normal, da cesariana e dos partos domiciliares eles todos existem. Não existe nada no mundo com “risco zero”. Lembre que um parto é um evento humano, e por ser humano é carregado do risco natural, assim como é andar de carro ou avião, ou mesmo sair de casa para comprar leite na mercearia. Toda nossa vida é cercada de probabilidades de algo ruim possa ocorrer. O que podemos fazer é cultivar atitudes que diminuam tais chances. Desta forma, parir no hospital é TAMBÉM igualmente arriscado, bastando para isso que você perceba que o simples passo para dentro de um centro obstétrico significa uma chance de 85% de sofrer uma grande cirurgia como é a cesariana, que na grande maioria das vezes (no caso brasileiro) é absolutamente desnecessária do ponto de vista clínico e obstétrico. Triste é constatar de forma inequívoca que esta cirurgia foi INDUZIDA pelo discurso dos profissionais, o qual deixa as mulheres apavoradas diante de um evento natural e fisiológico como parir, que foi ultrapassado com valentia e confiança por quase todas as suas ancestrais. Criou-se um medo bizarro e inusitado na cultura, fomentado pelas instituições que LUCRAM com a angústia das mulheres e com suas dúvidas artificiais sobre suas reais capacidades de gerar e parir com segurança, as quais foram implantadas em suas almas pelo sistema de saúde contemporâneo iatrocêntrico, etiocêntrico e hospitalocêntrico

Todavia, se uma mulher está carregada de medo e insegurança, jamais será melhor desistir e se entregar ao sistema. Não, pelo contrário. Aí está a demonstração de uma fragilidade, a qual nenhuma cesariana poderá consertar. Se a mulher está mergulhada em suas desconfianças sobre si mesma, este é o momento certo para enfrentá-las, e não para entregar-se de forma alienada a um profissional qualquer. Médicos servem para guiar e auxiliar, e não para tomar decisões sobre sua vida. “Liberdade é nossa meta última”, me dizia um querido colega na época da residência, ao me explicar que o medo nos aliena, aprisiona e acovarda. Enfiar a cabeça no chão, entregar suas escolhas a outrem, desconfiar de si mesmas e atirar-se à aventura intervencionista nunca fará com que as mulheres alcancem os altos fins de suas existências. Pelo contrário: vai mantê-las atreladas a um discurso que, se as liberta do jugo masculino, as mantém presas à tecnocracia e a ideia contemporânea da defectividade essencial de seus corpos.

A capitulação à tecnocracia no parto é o primeiro dominó a cair na maternagem. Depois acataremos o afastamento do bebê, a vacinação extemporânea, a fórmula, os alimentos com conservantes e assim por diante. A sedução da manipulação da vida por interesses de outra ordem será sempre presente, e cada vez com mais intensidade. Dar um basta a isso nunca é tarde. Porque não começar a reforçar uma adormecida cidadania logo ao abrir o teste de gravidez positivo à sua frente?

Somente a liberdade e a autonomia darão às mulheres o destino grandioso para o qual foram criadas.

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