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Mudanças

Fiquei sabendo da entrevista de um economista brasileiro que, num determinado momento de sua vida, abandonou as teses neoliberais que sempre o guiaram e passou a enxergar a sociedade por uma perspectiva mais humanista, valorizando as relações pessoais, a simplicidade e a necessidade de um mundo mais justo e equilibrado. Movido pela curiosidade, fui assistir.

O título era chamativo: Me arrependi, e o entrevistado era o economista José Kobori. Na entrevista, ele conta como passou de um profissional conectado ao catecismo financeiro tradicional para se tornar um crítico do modelo econômico surgido após a era Reagan. Minha curiosidade era pelo caminho que ele teria percorrido para alcançar o extremo oposto de seu antigo pensamento. Que tipo de leitura o convenceu? Teria conhecido Marx, quiçá foi tocado pela leitura de Lenin, Trotsky ou algum socialista contemporâneo, como Harvey?

A resposta não me surpreendeu, pois que eu já intuía que tais mudanças raramente ocorrem mediante epifanias de ordem intelectiva. Quando Nia Georges e Robbie Davis-Floyd estiveram pesquisando profissionais da humanização do nascimento no Brasil, para saber as razões de sua mudança paradigmática na direção de um modelo contra-hegemônico e humanista, as respostas oferecidas por inúmeros profissionais deixaram as suas motivações expostas: todos haviam passado por dramas pessoais, afetivos, emocionais, que os fizeram enxergar a realidade de forma distinta daquela que tinham até então. Não foi a leitura de um livro, ou uma aula na faculdade; foram fatos, quedas, solavancos emocionais, muitos deles doloridos e até vexatórios, que os levaram à mudança.

José Kobori, o economista até então liberal, foi preso na onda de justiçamentos da Lava Jato. Pela descrição que li do seu caso, tratou-se de uma prisão abusiva, absurda, autoritária, sem provas e baseada em vingança. Ele sofreu várias ameaças de morte e foi perseguido por organizações criminosas envolvidas em propinas com governos estaduais. Entretanto, naquela época ninguém ousava questionar os métodos medievais e abusivos da República de Curitiba, tanto a imprensa – apaixonada por figuras nefastas como Moro & Dalanhol – quanto as instâncias superiores do judiciário. Ele foi mais uma vítima dos linchamentos judiciais que mancharam a lisura da justiça brasileira.

E foi esse drama pessoal, e os quase três meses em que esteve injustamente preso, que o fizeram rever seus valores. Quando foi finalmente solto, havia perdido tudo que havia conquistado em termos materiais e foi obrigado a começar do zero. Como tinha experiência como professor, começou a dar aulas pela internet, desta vez mostrando os equívocos do modelo neoliberal. Todavia, foi sua experiência na prisão que abriu as portas para uma visão mais abrangente da sociedade. Lá encontrou assassinos e criminosos comuns, conheceu os sistemas de poder da prisão e teve de se adaptar a essa nova realidade. Entretanto, o que mais lhe chamou a atenção foi que na prisão havia pessoas, como quaisquer um de nós. Boas pessoas, pessoas ruins, egoístas, fraternas, inteligentes e limitadas, culpadas e inocentes; todo o tipo de ser humano, exatamente como havia conhecido fora de lá. Foi então que começou a questionar a justiça social, a fraternidade, a equidade e até a meritocracia, um mito por tanto tempo acalentado que agora desmoronava diante dos seus olhos. Depois dessa vivência traumática, sua vida se transformou.

A mesma experiência teve Miko Peled, filho de um general israelense que foi herói na guerra de 1967. Já entrando na idade madura, teve a oportunidade de debater a questão da Palestina com amigos palestinos que encontrou fora de Israel, o que lhe permitiu abrir os olhos e enxergar o mundo sem a viseira do sionismo. Foi do sofrimento originado da confrontação de suas antigas crenças com as aspirações de liberdade do povo palestino que conseguiu enxergar uma realidade alternativa. Foi sentindo em si a dor da ocupação, recebida pela voz embargada de seus amigos palestinos que descreviam os horrores do apartheid, que a mudança se tornou possível. A partir desse encontro, ele transformou sua vida e assumiu como missão pessoal a luta pela Palestina Livre e pelo fim do regime sionista.

Nesses exemplos fica evidente a veracidade de um antigo axioma: “Não há como mudar racionalmente uma crença surgida da irracionalidade”. A única maneira de mudar posturas recalcitrantes é por meio da abordagem emocional, afetiva e pessoal. Mais do que entender o problema, é preciso senti-lo, e só assim será possível conhecer uma verdade superior. Essas experiências, muitas vezes difíceis e dolorosas, como a prisão no caso de Kobori, ou a morte de uma sobrinha num ato de terrorismo, no caso de Miko, são preciosas por serem fantásticas alavancas de transformação pessoal, desde que possam ser absorvidas de forma construtiva e criativa. O mesmo se pode dizer dos abusos da Lava Jato. A dor que o país ainda experimenta pelos desmandos jurídicos deveria servir como uma lição cívica para que nunca mais se repitam. Esperamos que assim seja.

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Frida

O amante de Frida ligou para a casa dela mas seu marido Diego estava ao lado. Quando reconheceu a voz do amante ela imediatamente desligou.

Diego, desconfiado, perguntou:

– Quem era, Frida?

Ela, tentando dissimular a tensão, respondeu:

– Não era nada… era Trotsky.

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O bolor do pão

Igor Sidorov, preso na brutal prisão siberiana de Tobolsk pela recusa em pagar os pesados impostos que ameaçariam a própria sobrevivência de sua família, encontrou seu companheiro de cela Fiódor Vasilev, um dos presos mais antigos de Tobolsk. Este era um homem de feições rudes, cabelos e barba negra, testa olímpica e nariz bem desenhado. Seu encarceramento foi causado por assoviar a Internacional Socialista durante uma parada marcial da Guarda prussiana, considerado como um desrespeito e uma atitude conspiratória contra o Czar e sua família. Igor puxou a cadeira à frente de Fiódor parecendo angustiado. Este manteve-se atento ao pedaço de jornal que tinha à sua frente.

– Tovarish Fiódor, sabe das notícias do “salão”?

“Salão” era como se referiam os presos à sala contígua ao escritório do diretor, um amplo ambiente de parede de pedras cortadas, escuro e frio, onde o diretor recebia de forma ameaçante os recém-chegados na famosa prisão czarista.

– Nada me foi dito, Igor. Se tens algo na me falar, desembuche ou me deixe desfrutar o jornal e o bolor deste pão azedo, cortesia de Nicolau.

– O diretor Petrov foi deposto, tovarish. Demitido. Afastado por ordens diretas do Czar. Dizem que essa atitude tem a ver com o escândalo das bebidas e a relação disso com Viktor Gruchenko. Corrupção, troca de favores. Nicolai me disse que do setor norte é possível observar as carruagens e a guarda postada em frente ao portão principal. Nosso martírio pode estar chegando ao fim, Fiódor. As torturas, os espancamentos, as mortes terão um fim!!

Com os olhos marejados de emoção, agarrou os braços do amigo e os sacudiu, imaginando ser possível injetar-lhe ânimo através dos dedos descarnados que seguravam a roupa suja e puída do companheiro. Fiódor, tomou a última gota de chá e retirou com a ponta dos dedos a mancha esverdeada que cobria seu pedaço de pão. Olhou seu amigo no fundo de seus olhos negros e falou com voz pausada:

– Esse pão não fica menos infectado apenas por tirar o bolor que o cobre; isso apenas diminui nosso nojo do visível, mantendo intacto o universo invisível de impurezas que o contaminam. Tirar um diretor corrupto apenas nos oferece a ilusão de um benefício, o espaço de alívio entre o horror de agora e o próximo espancamento. Porém, a dura realidade é que se mudam as moscas para que a merda permaneça intacta. Cruzou as mãos sobre a mesa de madeira escura e, ainda olhando firme nos olhos de Igor, completou:

– Não se deixe enganar pela ilusão dos sentidos mais grosseiros, tovarish. Somente teremos paz quando não houver mais prisões e não houver mais injustiça, e não apenas por melhorarem a índole dos nossos carrascos.

Levantou-se e saiu a caminhar em direção à porta. De longe, Igor ainda pode escutar a música que Fiódor assobiava. Sem dúvida, a Internacional.


Bóris S. Gregoriev, “ночь волков” (A Noite dos Lobos), ed. Vostok, pág. 135

Bóris Sergueievich Gregoriev é um escritor russo dedicado aos romances históricos, em especial aos acontecimentos do final do século XIX que culminaram com as revoluções proletárias de 1905 e 1917, a queda do Czar e a execução de sua família. O livro “A Noite dos Lobos” trata da prisão de fuga de prisioneiros da famosa prisão de Tobolsk, onde esteve também preso o escritor Dostoiévski. No livro um grupo de prisioneiros políticos, liderados por Fiódor Vasilev fogem da prisão para criar uma brigada de conspiracionistas anarquistas para a derrubada do Czar. Esta intentona anárquica recebeu dos historiadores a alcunha de “A Noite dos Lobos”, que acabou de forma fatídica no “massacre da Catedral de São Basílio”, com a morte de todos os participantes, mas com o desaparecimento de seu líder, Fiódor Vasilev. Sua figura mítica de revolucionário suscita dúvidas até hoje, e para muitos historiadores sua reaparição no cenário das disputas teria sido constatada por várias testemunhas durante a revolução de 1917, existindo a forte suspeita de que ele se tornou um dos principais conselheiro militares de Trotsky. Boris Gregoriev nasceu em Petrogrado em 1942, escreve em várias revistas culturais e é casado com Olga Gregorieva, com quem tem dois filhos, Ivan e Natália.

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