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Religião e conservadorismo

As mensagens de espíritas preocupados com a ascensão do fascismo e com a popularidade de um candidato* que elogia torturadores só fazem sentido porque historicamente a cúpula do espiritismo nacional é reacionária e autoritária. De Chico a Divaldo, passando pelos generais da FEB (Federação Espírita Brasileira), nunca tivemos um espiritismo brasileiro que não fosse próximo e admirador dos poderes instituídos – da ditadura à lamentável “República de Curitiba”. As demonstrações de afeto de Chico com a ditadura de 64 e de Divaldo com a turma de magistrados que golpearam a democracia estão acima de qualquer dúvida.

Com exceção das religiões de matriz africana – umbanda, candomblé, nação – as grandes religiões brasileiras são dos colonizadores: religiões brancas, de classe media, burguesas e conservadoras, incluindo-se aí o espiritismo. Nas três décadas em que circulei pelo universo dos espíritas brasileiros nada reconheci de diferente dos modelos de outras seitas cristãs. O mesmo moralismo, um machismo sutil, meritocracias, hierarquias, aristocracias, espíritos “do bem” – semelhantes aos “cidadãos de bem” deste plano – culto às personalidades, entidades das “trevas”, seres angelicais, uma crítica sistemática à livre expressão da sexualidade, um culto à “família patriarcal” e um número sem fim de informações subliminares que nos conduziam a reconhecer os “espíritos superiores” como a elite branca e aburguesada da nossa sociedade.

Para além disso convivi com o ufanismo infantil propagado entre os espíritas pela obra “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho” (sobre ela escrevi aqui) que descrevia o nosso país de 60 mil homicídios por ano, assassinatos de transexuais, feminicídios e estupros incontáveis e a distribuição de renda mais perversa do hemisfério sul como “a nação escolhida por Jesus para carregar no coração sua mensagem de amor“.

As religiões são construções humanas e refletem seus valores e crenças. Uma “religião” como o espiritismo (que segundo o próprio Kardec não é, mas se expressa como se fosse), surgida no seio da classe média brasileira, obrigatoriamente viria a refletir sua visão de mundo e suas perspectivas. A umbanda, nascida do sincretismo entre o cristianismo e os ritos africanos, surgiu na marginalidade (à margem) da classe média do país, trazendo para o seu seio as populações pobres, negras, os homossexuais e os desvalidos. Se existem cultos no Brasil que têm a nossa cara e nosso jeito, sendo representante dos mais elementares valores populares, estes são os afro-brasileiros.

Inobstante a mensagem espírita pretender-se mais moderna e abrir espaço para a permeabilidade de seus postulados com a ciência, seu veículo – a classe média branca e urbana – acabou lhe conferindo um aspecto conservador e moralista que em nada se diferencia das seitas cristãs em nosso meio. Não é de surpreender, portanto, que meus amigos espíritas de ontem venham hoje a abraçar as bandeiras conservadoras, em um direitismo que se aproxima do antipetismo mais radical e onde suas ideias encontram eco nas palavras do inominável líder fascista.

A modernidade da “fé raciocinada” que Kardec propunha esbarrou na caretice de quem levou adiante suas propostas. Infelizmente, o espiritismo jamais conseguiu mudar a imagem conservadora e moralista do cristianismo tupiniquim.

* Esse texto foi escrito ainda quando Bolsonaro era candidato

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Cristãos e a opressão

Dos rios dizemos violentos mas não dizemos violentas às margens que os oprimem“. Brecht

Esta é a face mais triste das religiões: transformar os fiéis em cordeiros manipuláveis pela mídia e pelo capital, fazer com que acreditem que a resistência à opressão não é legítima ou digna, tornando cada cidadão em um servo robotizado carregando um crucifixo para que ele mesmo seja, por fim, pendurado. Talvez seja um pagamento justo para sua alienação. Não esqueçam que este Cristo a quem tanto adoram era um revolucionário que deu a vida pela libertação de seu povo, e não um babaca conformista que baixava a cabeça para os poderosos.

Seja cristão e combata a opressão!!! O cristianismo, via de regra, acaba com o senso crítico, a visão política e a cidadania em nome de uma teleologia de direita, alienante, aristocrática e sem uma visão coletiva. Essa é a parte mais triste das religiões: imaginar que a luta pelos direitos deve estar subjugada a uma falsa visão pacífica de Cristo, quando em verdade sua vida foi uma luta constante contra a opressão.

“Não se faz uma revolução com tapinhas nas costas”, como dizia Sheila Kitzinger. Se algumas pioneiras não fossem suficientemente ousadas, quebrassem padrões morais e estéticos e botassem “pra quebrar” as mulheres estariam ainda hoje indo à missa, bordando e conversando sobre receitas.

Alguém aí acha que as conquistas dos trabalhadores surgiram através de abaixo assinados ou conversas amigáveis com os patrões? Claro que não. Direito não se ganha, se conquista. Se tiver que ser incendiando carro que seja. Trabalhadores bem comportados vão para o céu; os corajosos vão à luta!

Apenas para lembrar a necessidade de lutar:

Não precisa lei trabalhista, ora, basta negociar. No circo romano onde estava escrito que era o leão que comia as pessoas? Podia ser o contrário, por que não? Havia espaço para livre negociação, e se esta não ocorria era por culpa do radicalismo das pessoas e não pela força superior ou ferocidade dos felinos“.

A propósito, uma realidade chocante: recente pesquisa nos Estados Unidos (!!) revela que 43% dos entrevistados tem uma visão positiva do socialismo e apenas 32% do capitalismo. É aqui, no centro mundial da ideologia capitalista, onde a queda do sistema será mais ruidosa.

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Armário aberto

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Durante a minha infância eu fui educado no cultivo de valores morais e espirituais cristãos, como a honestidade, o perdão, a fraternidade e uma visão teleológica de “evolução espiritual”. Poderia ter sido Rock n’ Roll, Elvis ou Stones, mas foi Allan Kardec. Nada contra nenhuma das possibilidades, mas isso tem um pouco de responsabilidade pelo que eu me tornei.

Em 1973 estávamos em plena ditadura militar e nessa época eu contava 13 anos de idade. Foi nesse período que moldei o meu coração vermelho, mesmo mantendo minha camiseta azul, preto e branco. A falta de liberdade e a sensação de constrição social começavam a gritar mais alto do que a visão perseverante, cristã, patriarcal e claramente conservadora que as vertentes religiosas – todas – ensinam nas entrelinhas dos versículos bíblicos e mensagens de Chico Xavier. Minha adolescência, que coincidiu com a entrada na escola médica, produziu esta guinada à esquerda aliada a uma visão social, já na própria medicina, que me acompanha até hoje.

Pois em 1973 eu tinha um amigo que morava há poucas quadras de minha casa e com quem conversávamos muito. Filho de uma família austera de alemães (a classe média de Porto Alegre é de “alemães” em sua maioria), seu pai era veterinário e ele tinha apenas uma irmã. Creio que foi por convite dele que fomos assistir o primeiro “filme proibido” no falecido cinema Carlos Gomes. Claro que no meio da sessão de “chanchada” brasileira – e antes de conseguir ver os almejados peitos descobertos da protagonista – a Polícia deu uma batida e todos os “dimenor” foram expulsos do cinema. O que poderia ser uma vergonha para nós foi motivo de orgulho, pois, mais do que uma sessão de cinema, participamos de uma aventura policial. Quem diria que naquela época seriam necessários pequenos crimes como este para ver inocentes mamilos. Pois este amigo, um certo dia, veio conversar sobre política comigo. Não era um assunto comum; era um tabu. Falamos da ditadura, do AI5, da falta de eleições e outros temas dentro da perspectiva de dos meninos entre 13 e 14 anos. O que fez essa conversa se tornar inesquecível é que os argumentos do meu amigo eram muito parecidos com os que a direita brasileira usa até hoje. A meritocracia ingênua, o culto ao “Cidadão de Bem”, a pobreza como escolha, o sucesso reservado aos competentes, a miséria como natural e a reação a este modelo como “ação criminosa”. Entretanto, em dado momento, diante dos meus argumentos de que a educação seria capaz de melhorar as condições de vida e fazer o Brasil alcançar níveis de civilização como na Europa, ele me respondeu:

Isso é inútil, Ricardinho. O filho do ladrão será ladrão e o filho deste também. São valores que se perpetuam nas gerações que se seguem. Não há solução. É como meu pai sempre diz: tem que colocar uma bomba na favela, explodir tudo, acabar com esses vagabundos e começar tudo de novo.

Fiquei por instantes calado e, um pouco tempo depois, ainda chocado, perguntei: “Teu pai disse isso mesmo?” Ele aquiesceu com a cabeça e continuou explicando porque achava que a “solução final” era o único caminho, mas a partir de então eu já não consegui escutar mais nada. Não podia acreditar que as pessoas pensassem assim. Os valores ingênuos de tolerância e amor ao próximo que recebi na infância não me permitiam aceitar um argumento desses sem me espantar. Nos despedimos e acho que nunca mais falamos sobre esses assuntos. Passamos décadas sem nos ver e hoje sei que ele milita em grupos de extrema direita. Nesse ponto ele tinha razão; o filho saiu ao pai, e o filho do filho tem a cama das ideias prontas para se deitar.

O que me fez lembrar essa história foi o fato de que, nos anos 70, uma ideia genocida e preconceituosa era contada apenas na família, com o rádio ligado, no meio do jantar e não saía dali a não ser por uma inconfidência de meninos. Era feio e socialmente condenável ser fascista, ter pensamentos totalitários e sem nenhuma noção sobre a gênese social da pobreza. Eu acho que a proximidade com a II Guerra Mundial e os horrores do nazismo nos ofereciam essa possibilidade de vergonha. Alguns combatentes vivos e seus depoimentos mantinham a história viva entre nós.

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Sobre essa transmissão transgeracional de valores eu lembro da imagem de crianças de 6 anos em Topeka, no Kansas, participantes da Westboro Baptist Church que carregam cartazes tipo “God Hates Fags” (Deus Odeia Gays). Não há como uma criança odiar homossexuais por seus próprios valores ou seu entendimento das “escrituras”. Estas atitudes só podem ter sido geradas através dos pais. Assim o ódio – tanto como o amor – pode ser ensinado para as crianças desde a mais tenra idade.

Entretanto, há alguns anos vi um documentário sobre adolescentes que conseguiram se libertar do torniquete mental do fanatismo fundamentalista da família que controla esta igreja, provando com isso que as duas proposições coexistem: as frutas não caem longe das árvores, mas é possível sair de perto delas através da informação e da ampliação dos horizontes. E isso tudo munido de muita coragem. Hoje em dia essas vergonhas se foram, o horror nazista pode ser “questionado”, o darwinismo social está em alta, a perseguição às minorias está liberada, questiona-se abertamente o estado laico, Bolsonaro é “mito” e o fascismo pode, finalmente, sair da toca depois de 70 anos de hibernação.

Um comentário como o do meu amigo de infância? Sim, ontem de tarde, no bar da esquina, entre uma cerveja e uma gargalhada.

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