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Suprema corte

Tenho, há muitos anos, uma curiosidade: ao mesmo tempo em que Gilmar Mendes questiona a formação do juiz que fala “conje“, e desconfia do concurso público que o admitiu na magistratura, lembramos que este mesmo juiz, ainda muito jovem, foi convidado a ser assessor da ministra Rosa Weber no STF. Esta ministra foi a mesma que protagonizou o monstrengo jurídico do “não tenho provas, mas a literatura me permite”, um contorcionismo usado uma única vez e apenas para condenar um político que era o “Ficha 1” para suceder Lula na presidência do país. Por que um sujeito nitidamente desqualificado atingiu postos tão altos em tão pouco tempo? Quem está por trás desse personagem?

Mas minha pergunta não deve fazer pensar que tenho simpatias pela Suprema Corte. Até um relógio parado acerta duas vezes por dia. Por isso não aceito a moda atual da esquerda gratiluz identitária que se expressa pela exaltação de ministros da Suprema Corte. “Te amo STF”, dizem eles para qualquer atitude violenta do Xandão. Só pode ser piada. Até o Dudu Bananinha alertou: “As esquerdas ainda não notaram que é da esquerda que virão as próximas vítimas?”.

Então o autoritarismo do STF agora pode ser aplaudido porque a decisão aparentemente está em sintonia com nossos sentimentos de vingança? Esquecemos o silêncio do STF para o impeachment ilegal de Dilma? Vamos passar pano para as ilegalidades inconstitucionais cometidas nos julgamentos de Lula, que só não destruíram o Brasil pela sorte de termos uma VazaJato? Por acaso seria justo ter um “Serjomoro Vermelho” para nos vingar, burlando as regras do judiciário para nos beneficiar? Ou será que ainda acreditamos na ideia de que a justiça burguesa poderá nos salvar?

Será que não percebem que a mão que (agora) afaga é a mesma que (logo em breve) apedreja?

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Intocáveis

Eu vi sem surpresa as imagens da carreata fracassada e melancólica protagonizada por Deltan Dalanhol em Curitiba após ser defenestrado do seu mandato de deputado. Vi também a minguada manifestação que contou com ícones do direitismo fascistoide brasileiro convocada para a mesma cidade. Ao ver as cenas constrangedoras eu pensei que esta é a imagem mais completa e definitiva da debacle da Lava Jato. Quem imaginou que haveria milhares de pessoas nas ruas apoiando o líder, outrora poderoso, da Lava Jato também sucumbiu à ilusão que durante anos foi estimulada pela mídia sobre os promotores “intocáveis” do Ministério Público de Curitiba.

Eu tenho uma perspectiva bem pessoal sobre o fato. Quando vejo Deltan indignado, gritando para ninguém em cima daquele carro de som, eu lembro da pergunta que ele fez ao público do Jô Soares quando convidado ao seu programa, ainda no auge da popularidade da operação. Disse ele, dirigindo-se à plateia: “Quem acredita que a Lava Jato vai mudar o Brasil?”. Quase ninguém levantou o braço, assim como quase ninguém estava na rua a lhe dar suporte depois de sua queda. Deltan é vítima de uma ilusão sobre si mesmo, sobre seu poder e também sobre a transcendência de sua “missão”.

Deltan foi vitimado por um ego inflado que fugiu do controle. Ele se acreditava um mensageiro de Deus, um “messias”, um templário da Ordem de Cristo para combater os monstros da corrupção. Para isso – uma tarefa inquestionavelmente nobre – não seria errado atropelar as regras, descumprir as leis, burlar as normas, fazer acertos espúrios com nações estrangeiras, aceitar bilhões para a criação de um “instituto” de combate à corrupção e atacar inimigos políticos com as armas da lei e o poder que lhes foi delegado – leia-se lawfare. Vejo esse personagem recente do drama polìtico do Brasil como alguém que se acreditava um “intocável” – uma referência ao filme de Brian de Palma de 1987 sobre os promotores que prenderam Al Capone em Chicago. A diferença é que o alvo dos ataques dos intocáveis tupiniquins era o maior estadista do mundo contemporâneo, e os crimes a ele imputados eram criações fraudulentas com motivação política. Não sobrou pedra sobre pedra do PowerPoint mais infame da história recente do Brasil

Não vejo Deltan como um bandido, apesar de acreditar que cometeu vários crimes. Vejo-o principalmente como um fanático, alguém cuja visão em túnel lhe retirou a perspectiva do compromisso com as leis. Entendo-o guiado por uma crença cega em sua Verdade, certo de estar lutando pela limpeza de nossa sociedade das impurezas da corrupção. Desta forma, a imagem que mais me parece adequada para entender sua trajetória é de um Torquemada, um sujeito cuja fixação nos dogmas e no combate ao pecado o levou às maiores crueldades e atrocidades contra seus semelhantes. Assim, quanto mais pretendia lutar contra o Mal e o Erro mais se aproximava deles, da mesma forma que o sujeito puritano se sente atraído e magnetizado pelas obscenidades que acredita combater.

Não tenho nenhuma alegria em ver a destruição pública de ninguém, incluindo esse rapaz de bochechas rosadas. Meu sentimento foi de genuína tristeza ao ver no que se transformou alguém outrora tão poderoso – e, vejam, seu calvário ainda está apenas no início. Por outro lado, jamais haverá uma verdadeira depuração do mal causado pela operação Lava Jato sem que esses promotores e o juiz que estiveram à sua frente sejam devidamente punidos. Também acredito que sem colocar a corrupção da imprensa Corporativa como partícipe ativa nessa fraude não haverá real progresso civilizatório. Por mais triste que seja esta queda não há como seguir em frente sem corrigir o erro e a destruição que estes indivíduos causaram ao país e a tantas pessoas por eles indevidamente atacadas.

Que esta tragédia brasileira sirva de lição a todos nós.

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Religião e conservadorismo

As mensagens de espíritas preocupados com a ascensão do fascismo e com a popularidade de um candidato* que elogia torturadores só fazem sentido porque historicamente a cúpula do espiritismo nacional é reacionária e autoritária. De Chico a Divaldo, passando pelos generais da FEB (Federação Espírita Brasileira), nunca tivemos um espiritismo brasileiro que não fosse próximo e admirador dos poderes instituídos – da ditadura à lamentável “República de Curitiba”. As demonstrações de afeto de Chico com a ditadura de 64 e de Divaldo com a turma de magistrados que golpearam a democracia estão acima de qualquer dúvida.

Com exceção das religiões de matriz africana – umbanda, candomblé, nação – as grandes religiões brasileiras são dos colonizadores: religiões brancas, de classe media, burguesas e conservadoras, incluindo-se aí o espiritismo. Nas três décadas em que circulei pelo universo dos espíritas brasileiros nada reconheci de diferente dos modelos de outras seitas cristãs. O mesmo moralismo, um machismo sutil, meritocracias, hierarquias, aristocracias, espíritos “do bem” – semelhantes aos “cidadãos de bem” deste plano – culto às personalidades, entidades das “trevas”, seres angelicais, uma crítica sistemática à livre expressão da sexualidade, um culto à “família patriarcal” e um número sem fim de informações subliminares que nos conduziam a reconhecer os “espíritos superiores” como a elite branca e aburguesada da nossa sociedade.

Para além disso convivi com o ufanismo infantil propagado entre os espíritas pela obra “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho” (sobre ela escrevi aqui) que descrevia o nosso país de 60 mil homicídios por ano, assassinatos de transexuais, feminicídios e estupros incontáveis e a distribuição de renda mais perversa do hemisfério sul como “a nação escolhida por Jesus para carregar no coração sua mensagem de amor“.

As religiões são construções humanas e refletem seus valores e crenças. Uma “religião” como o espiritismo (que segundo o próprio Kardec não é, mas se expressa como se fosse), surgida no seio da classe média brasileira, obrigatoriamente viria a refletir sua visão de mundo e suas perspectivas. A umbanda, nascida do sincretismo entre o cristianismo e os ritos africanos, surgiu na marginalidade (à margem) da classe média do país, trazendo para o seu seio as populações pobres, negras, os homossexuais e os desvalidos. Se existem cultos no Brasil que têm a nossa cara e nosso jeito, sendo representante dos mais elementares valores populares, estes são os afro-brasileiros.

Inobstante a mensagem espírita pretender-se mais moderna e abrir espaço para a permeabilidade de seus postulados com a ciência, seu veículo – a classe média branca e urbana – acabou lhe conferindo um aspecto conservador e moralista que em nada se diferencia das seitas cristãs em nosso meio. Não é de surpreender, portanto, que meus amigos espíritas de ontem venham hoje a abraçar as bandeiras conservadoras, em um direitismo que se aproxima do antipetismo mais radical e onde suas ideias encontram eco nas palavras do inominável líder fascista.

A modernidade da “fé raciocinada” que Kardec propunha esbarrou na caretice de quem levou adiante suas propostas. Infelizmente, o espiritismo jamais conseguiu mudar a imagem conservadora e moralista do cristianismo tupiniquim.

* Esse texto foi escrito ainda quando Bolsonaro era candidato

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