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Birthright

Lembrei hoje de um colega da escola médica porque na época da faculdade ele fez a conhecida viagem de “intercâmbio” de jovens para Israel – chamada de Taglit, ou Birthright Israel – que muitos, se não todos, judeus de classe média faziam ainda quando bem jovens. Quando voltou estava transformado, com incontido patriotismo por Israel. Perguntei a ele, por curiosidade, qual sua opinião sobre a região, o país, as guerras, a construção da nação e sua experiência com o povo de lá. Ele me descreveu detalhadamente sua perspectiva sobre o “conflito” na Palestina, trazendo uma visão totalmente enviesada, que é exatamente para o que servem estas viagens com a juventude judaica: produzir uma lavagem cerebral profunda, para introduzi-los na narrativa sionista.

Na sua explicação escutei todos os clichés que me acostumei a ouvir a partir de então sobre “um povo sem terra para uma terra sem povo”, “a guerra dos bárbaros árabes contra os bravos judeus”, “os heróis da independência”, “a villa in the jungle”, “a única democracia entre ditaduras sangrentas” etc. Outra coisa que me chamou a atenção foi sua visão sobre “Sabra e Chatila“. Ele estava em Israel exatamente na época da invasão e ocupação do sul do Líbano, quando ocorreu o massacre do campo de refugiados palestinos por milícias cristãs libanesas. Na madrugada do dia 15 de setembro de 1982, o Exército de Israel ocupou Beirute Ocidental, mesmo depois de se comprometer a não fazê-lo, tendo como contrapartida a saída da OLP para a Tunísia. “Tão logo a ocupação foi concluída, as tropas israelenses – comandadas por Ariel Sharon – cercaram os campos de refugiados de Sabra e Chatila. No dia 16 de setembro, o alto comando israelense autorizou às tropas falangistas cristãs, sedentas de sangue, a entrarem nesses dois campos de refugiados para realizar uma chacina contra a população civil que ali vivia, concretizando a vingança pela morte do ultradireitista Bachir Gemayel, presidente do Líbano ocupado”. (Breno Altman, vide mais aqui). Um filme muito interessante sobre este massacre patrocinado por Israel (entre tantas outras atrocidades) é a animação “Valsa para Bashir“. 

Tão logo voltou ao Brasil, sua explicação sobre o massacre que ocorreu tão próximo de si, está em plena sintonia com as narrativas sionistas que percorrem o campo simbólico até hoje. “Permitimos que dois inimigos nossos – libaneses e palestinos – se matassem mutuamente. Onde está a falha ética? Eles que se entendam”, explicou-me, de forma altiva. Na época eu nada sabia sobre a causa Palestina, o Nakba, e a resistência da OLP. Também acreditava que Yasser Arafat era um “terrorista”, que os árabes eram selvagens e que os sionistas desejavam a paz; por ignorar tantos aspectos importantes do conflito, lembro com vergonha de ter concordado com vários dos seus argumentos. Afinal, como poderia contestar, quando toda informação sobre a região na época era filtrada por uma imprensa claramente imperialista e favorável ao colonialismo?

Hoje resolvi olhar no seu Facebook para saber o que ele pensava sobre o massacre de agora, os 30 mil palestinos mortos, as crianças amputadas, o horror do genocídio contra a população civil, a limpeza étnica e, sem surpresa, percebi que ele se mantém aferrado ao preconceito sionista, usando palavras de ordem que vão desde “os palestinos não existem”, “vamos destruir o Hamas”, “eles morrem porque usam crianças como escudos humanos” e até “é imoral comparar o holocausto com essa guerra”. E, claro… não poderiam faltar os ataques a Chomsky, todos os judeus que apoiam a Palestina e os indefectíveis ataques ao presidente Lula e à esquerda, pelo crime de se posicionarem contra o mais brutal massacre contra civis do século XXI. O Birthright cumpriu seu objetivo, e manteve um sujeito prisioneiro de uma ideologia racista e supremacista desde a juventude até quase a velhice. Não há como não reconhecer a potência de um modelo que engessa mentes utilizando o holocausto como fonte de inspiração e identidade.

Com tristeza percebi que a faculdade de Medicina não é capaz de criar profissionais capazes de um olhar crítico sobre a sociedade, prontos para enxergar esta profissão de uma forma mais abrangente e complexa do que as simples tarefas operacionais de classificar, diagnosticar doenças e aplicar sobre os pacientes as drogas que nos ensinaram a prescrever. Acabamos sendo o sustentáculo de uma sociedade capitalista e patriarcal, sem perceber o quanto disso se reflete nas próprias doenças que tentamos tratar. Meus contemporâneos do tempo de escola médica, com raríssimas exceções – acreditem, ser de esquerda na Medicina é uma posição muito solitária – se tornaram conservadores em sua grande maioria, sendo alguns deles despudoradamente reacionários e fascistas, cuja paixão pela humanidade – a arte de curar e o questionamento das razões últimas que produzem as doenças – foi esquecida no banco de uma sala de aula da faculdade, durante uma classe de fisiologia, há muitas décadas.

Só me cabe agora lamentar…

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Greve de médicos

Em um seminário de fisiologia há 35 anos passados o nosso velho professor se dirigiu aos últimos 6 alunos que demoravam a sair da sala depois de encerrada a aula.

– Deixo a vocês um breve conselho: depois de se formarem em nenhuma hipótese façam greve.

Caminhando em direção ao bar pelos corredores da velha faculdade de Medicina debatemos o conselho do mestre. Metade de nós pensava que ele se referia a uma questão ética sobre a medicina e a saúde. Não caberia àqueles que cuidam do mais nobre objetivo – a vida e sua manutenção – paralisar o seu ofício por razões corporativas. Não seria moralmente lícito impedir o acesso à cura ou ao alívio dos sofrimentos apenas por dinheiro. “Está no código e no juramento!!”, diziam. A outra metade achava que ele se referia à inutilidade da greve como mecanismo de pressão em uma área repleta de representantes das elites e da burguesia diplomada. “Greve de janotinhas engravatados?”, diziam os outros, fazendo muxoxo.

Na semana seguinte aguardei o fim da aula e, não aguentando mais a dúvida, resolvi perguntar ao professor a razão para o seu rechaço aos movimentos paredistas na área da saúde. Expliquei a ele que metade de nós achava que sua manifestação se referia a uma questão ética e outra metade à dificuldade de mobilizar e manter uma greve com representantes da burguesia. Uma disputa, em última análise, entre o idealismo e o materialismo.

Diante da minha pergunta inusitada e fora do escopo da aula recém terminada, o velho mestre soltou uma risada e explicou.

– Nenhuma das duas. A razão é meramente estratégica.

– Como assim? perguntei…

– Ora, meu caro, quando os médicos entram em greve os pacientes melhoram. Quer propaganda pior do que esta?

Este foi meu primeiro contato com a Medicina Quaternária, muitos anos antes de se tornar modinha.

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Atenção Especial

Conversa real ocorrida há uns 20 anos entre o Dr. Fulano, chefe do serviço X do hospital universitário, e o Dr. Sicrano, professor recém admitido e examinador da banca de residentes do serviço Y do mesmo hospital.

– Oi Dr Sicrano, como vai? Aqui é o Dr Fulano, tudo bem?
– Tudo, o que manda professor?
– Pois tu sabes que amanhã é a entrevista do meu sobrinho para o serviço de vocês e eu precisava que vocês dessem a ele uma atenção especial. Sabe como é, certo?
– ……
– Alô?
– Professor, o que o Sr. quer dizer com “atenção especial”?
– Ora Sicrano, não se faça de desentendido. Você sabe como as coisa funcionam aqui na Universidade.
– Desculpe professor, mas eu não sei. Poderia me explicar, por favor?
– Veja o seu próprio caso. Foi admitido como professor em um concurso há pouco mais de um ano. Havia vários candidatos qualificados, tão bons quanto você. Todavia, foi seu o nome escolhido. Certamente você teve uma atenção “carinhosa” dos seus colegas de banca, não lhe parece?
– Não sei do que o Sr. está falando Dr. Fulano. Que eu saiba fui admitido pelos meus méritos e meu currículo acadêmico. Não tive nenhuma vantagem indevida para chegar chegar onde estou.
– Ora Sicrano, agora está sendo cínico comigo? Lembre de uma regra que é muito usada aqui: uma mão lava a outra. Não é muito saudável bancar o íntegro e o honesto comigo pois logo na esquina precisará também de um favor. Pense nisso. Você está recém começando; não construa uma carreira feita de inimizades e desavenças. Avalie com cuidado o meu sobrinho e muito obrigado.

CLIK

Nesse ponto aparece o Dr. Beltrano, jovem professor e colega do Dr.Sicrano.

– Que houve Sicrano?
– Não vais acreditar. Dr. Fulano me ligou agora pedindo explicitamente para avaliarmos positivamente a entrevista do seu sobrinho amanhã. O tom foi quase de ameaça. Que absurdo…
– Hummmmm
– Hum o quê, Beltrano?
– Vais arrumar uma briga com um velho professor por causa de um “detalhe” como esse? Que diferença faz para nós quem será o próximo residente? Para que criar essa animosidade e esse clima ruim? Pensando bem, uma mão realmente lava a outra e daqui a pouco podemos precisar de uma ajuda dele no conselho da faculdade. Diz aí, qual o nome do sobrinho?
– Não ouse…
– Credo, que radicalismo…

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Negros

FMUFRGS 1985

Esta é a foto da minha formatura há 29 anos, na cidade de Porto Alegre. Tenho boas e más lembranças desta época, mas vejo que alguns dos meus colegas mantiveram um espírito crítico e uma visão positiva da profissão, apesar das agruras causadas pela “máquina de moer carne” da escola médica. Todavia, como se pode ver na imagem, não há nenhum negro representado na turma que posou para a foto na escadaria da velha escola médica. Aliás, durante os anos que frequentei a faculdade de Medicina conheci apenas um, que era sobrinho de um famoso político e que acabou também por seguir a carreira do tio. Nenhum outro negro, sequer mulato, compartilhava aquele espaço conosco. Claro, havia porteiros, serventes, auxiliares do biotério, faxineiras, e esses eram mais escurinhos. De resto todos brancos, claros, alvos e cristalinos. O que poderíamos entender do sofrimento de um negro?

Lembrei uma aula de quando eu estava no terceiro ano de medicina passando pela cadeira de semiologia. No ambulatório de clínica da universidade nos dividíamos para atender os prontuários que repousavam sobre a mesa. Nosso grupo ficou composto de 3 alunos, e a nós coube examinar um homem negro de meia idade, cujas queixas se perdem na névoa do tempo. Depois de feita uma anamnese, verificados os sinais vitais e colhida a história biopatográfica chamamos o professor para nos ajudar na continuação do atendimento. Nosso professor, já falecido há muitos anos, adentrou a sala e, ao notar que se tratava de um negro, disparou:

Queridos alunos. Quando temos pacientes “pardos” temos que pensar em três diagnósticos principais: hipertensão, escabiose e gonorreia. Já perguntaram sobre isso?

O senhor jazia deitado na mesa de exame e se manteve imóvel. Àquela época, passados mais de 30 anos, esta atitude não teria a mesma repercussão que hoje, mas mesmo assim eu fiquei estático e chocado. Olhei para o paciente deitado à nossa frente coberto com uma bata branca e esperei sua reação, enquanto eu me cobria de “vergonha alheia”. Passados alguns instantes sua atitude acabou sendo a pior possível, a mais terrível, a mais violenta e a que, por isso mesmo, mais me marcou.

Não, ele não se levantou e golpeou o professor. Sequer dirigiu-lhe palavras de indignação. Não, ele não reclamou do rótulo de promíscuo ou sujo. Ele também não tentou aclarar a situação, explicando as reais razões pelas quais ele procurava o serviço de medicina interna do hospital da universidade. Não, ele não mandou o professor se calar.

Ele apenas baixou o olhar, olhou para mim e tristemente sorriu.

Em seu sorriso eu podia ler toda a resignação com sua condição de negro, a qual nenhum de nós poderia jamais entender. Ser tratado dessa forma em um serviço público – que deveria entendê-lo e ampará-lo, acolhê-lo e tratá-lo sem julgamentos – era apenas mais um capítulo em sua longa história de humilhações cotidianas.

– De que adiantaria me indignar, jovem? disse ele em pensamentos durante seu breve sorriso amargo. Por acaso eu seria entendido? Tens alguma esperança de que o velho professor poderia entender o que é a dor de ser a vida inteira considerado inferior, sujo e indolente? Achas mesmo, menino, que meu sofrimento poderia ser captado, processado e transformado em empatia por alguém que nunca entendeu o que é nascer com “a cor errada”, ou ter o “cabelo ruim”? De que adiantaria gritar, esbofetear, reclamar ou sair correndo? De nada, meu jovem, de nada. Para vocês deixo apenas meu sorriso dolorido e meu silêncio. Talvez algum de vocês possa um dia entender o que significa nascer pintado de preto num mundo que só aceita o branco.

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Medicina e Medo

Medicina e Medo

Fiquei sabendo que a Faculdade de Medicina da UFRGS, assim como a de Pelotas, foram reprovadas na avaliação do governo. Acredito que esta reprovação nada tem a ver com insuficiência de notas, mas com o boicote realizado pelos alunos contra a realização da prova. Isso me faz lembrar um incidente acontecido no hospital onde fiz a minha residência, há muitos anos.

Naquela época, em uma universidade de Porto Alegre, foi estipulada uma prova para avaliação dos residentes da GO. Após uma reunião com os residentes de 1º, 2º e 3º anos, a referida prova foi solenemente boicotada pelos mesmos, ainda que houvesse a promessa de que nenhuma nota viria a ser publicada.

Eu entreguei minha prova – neguei-me a boicotar – e fui falar com o professor responsável. Disse a ele que poderia publicar a nota com meu nome em letras garrafais na porta do departamento. Se minha insuficiência existia queria reparti-la com todos os responsáveis: eu mesmo e quem deveria estar me treinando. Nada disso ocorreu, e o assunto morreu por aí. Não houve avaliação da residência médica, pelo menos naquele ano.

Entretanto, sempre fiquei com dúvida sobre as razões pelas quais meus colegas celebraram a ideia de boicotar uma avaliação. A desculpa “oficial” era de que a residência médica, por ser tão “falha” no treinamento que nos oferecia, não tinha condições morais para nos avaliar. Discordei imediatamente desta ideia. Talvez fosse justo dizer que o sistema não poderia nos “CULPAR”, mas tinha a obrigação de nos avaliar, até para ter elementos para aquilatar as suas próprias falhas no processo de ensino. Nossa atitude, entretanto, refletia mais do que indignação com a falha pedagógica e a escassez de treino. Mesmo sendo justo o descontentamento com a ausência total de professores para nos ensinar a atenção ao parto, coisa que era realizada por residentes mais antigos e contratados desinteressados, nossa ação continha elementos inconscientes e não revelados.

Sim, havia muito mais do que o meramente manifesto nas palavras e atos superficiais. Existia, em verdade, um sentimento de profundo medo com a avaliação que pudesse ser feita sobre o nosso desempenho. Havia o pânico de que nossa verdadeira capacidade fosse desvelada, escancarando os meninos e meninas que se escondiam por debaixo de jalecos brancos, estetoscópios no pescoço, receitas decoradas, protocolos rígidos e infinitas fórmulas dialéticas de dissimular a nossa mortal insegurança. Havia um temor de que a construção arrogante e falsa de nosso saber fosse exteriorizada, mostrando nossos pés de barro.

A negativa dos alunos mais festejados – medalhas de Ouro no quesito “universidade” – em realizar uma prova que demonstraria objetivamente a sua qualidade ou competência segue a mesma linha. Muito mais do que um protesto contra o ensino – que até pode ser verdadeiro, como era a negligência do corpo docente em minha época com relação ao ensino da atenção ao parto – existem elementos mais profundos que podem dar conta da negativa peremptória em realizar a a avaliação.

Medo explica. Só o medo pode nos garantir o elemento essencial para entender. Oferecer aos outros a imagem da nossa incapacidade é sempre um ato heróico. Expor com bravura nossas fragilidades e temores é algo que dificilmente encontramos em meninos recém saídos das fraldas da universidade.

No famoso artigo “Obstetric training as a rite of passage” de Robbie Davis-Floyd existe um parágrafo que explica muito sobre o medo, a tensão constante, a angústia e a “visão em túnel” que o residente desenvolve sobre este tema.

“A maioria de nós entrou para a faculdade de medicina com ideais muito humanitários. Eu sei que cheguei dessa forma. Mas todo o processo de educação médica faz você desumano. Eu vi colegas totalmente devastados quando não sabiam uma resposta A coisa toda pode torná-lo bastante deformado. Eu acho que é aqui que os sentimentos começam, quando você sente que alguém lhe deve alguma coisa, porque você realmente, você sabe, você bloqueou uma boa parte de sua vida. Pessoas perderam namorados e namoradas, noivas e casamentos. Houve algumas tentativas de suicídio. Assim você esquece o resto da sua vida. E então, no momento em que você começa a residência, você termina por não se preocupar com nada além das mais recentes técnicas que você pode dominar e quais os sofisticados testes que você pode executar.”

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