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Bate boca

Acho curioso como as brigas entre celebridades são tratadas por nós. A última treta é esta dos últimos dias envolvendo o jogador Neymar e uma atriz aposentada que mora em Portugal. Creio que a gente erra quando espera destes sujeitos muito mais do que são capazes de oferecer. Neymar é um craque do futebol, um dos maiores jogadores que este país já produziu. Poucos futebolistas do mundo poderiam estar na mesma prateleira que ele. Dito isso, ficar acompanhando as fofocas da sua vida pessoal é uma enorme perda de tempo, e um brutal click bait de franco atiradoras que desejam notoriedade com esta polêmica.

Enquanto cidadão, Neymar é um claro produto de seu meio: um sujeito pobre tornado rico que se identifica com os valores burgueses. Todavía, quando olhamos para seus colegas de profissão, quem escapa dessa sina? Quem reconhece de onde veio e tenta mudar essa realidade – sem ser através de doações pontuais e caridade midiática? Entretanto, este não é um comportamento exclusivo de jogadores de futebol. Conheço meninos muito pobres e ambiciosos que cursaram medicina e hoje são fiéis defensores de Bolsonaro e da extrema direita, fazendo pouco caso das pessoas sue se encontram no mesmo extrato social de onde vieram. As posições empresariais de Neymar são características de “boleiros” cheios de dinheiro e sem qualquer perspectiva ecológica e social. Sua parceria com Luciano Huck, um neoliberal aecista e bolsonarista, associado a tudo que se relaciona com a direita mais retrógrada deste país, é uma conexão absolutamente natural. Bizarro mesmo é encontrar jogadores de esquerda ou defensores da justiça social.

Ademais, as pessoas que agora o atacam são tão ou mais socialmente irresponsáveis do que ele. Moristas e lavajatistas de primeira hora, abraçaram o fascismo bolsonarista com todo o fervor. Expõem suas aventuras sexuais na Internet, confessam o uso de drogas diariamente ao mesmo tempo em que acusam o jogador de ser um “mau pai”. Ora, façam o favor; mesmo que seja verdade, tudo isso não passa do conhecido “roto que fala do rasgado”.

O erro, mesmo que seja difícil admitir, é esperar de simples jogadores de futebol e atrizes de TV que sejam algo além do que seu talento específico lhes permite. Pedir para Neymar que seja um bom cidadão, mesmo virado de costas para o Brasil, é inútil. Ele joga futebol; não exijam dele nada mais que isso. Pedir para uma artista em crise profissional (como ocorre com muitas atrizes lindas quando a idade chega) que tenha consciência de classe, empatia com o povo brasileiro (autoexilada na Europa) e bom senso político é pedir muito mais do que é capaz de oferecer. Esses bate bocas servem para garantir publicidade a estas personalidades, mas nesta equação somos essencialmente massa de manobra, conduzidos a tomar posição e levados a assumir um lado, mesmo quando se trata de pessoas cujas semelhanças em termos de alienação ultrapassam em muito qualquer diferença que possa existir.j

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Diversidade

Há 40 anos passados eu trabalhava como interno (estudante de medicina) em um pronto socorro privado da capital. Em uma oportunidade, enquanto conversava com a recepcionista em meio a um plantão monótono de fim de semana, vi um casal se aproximar da recepção trazendo uma criança ao colo.

– Meu filho está com febre. Preciso uma consulta. Vocês atendem pelo INPS?

O INPS é o antigo SUS. O casal e seu filho estavam vestidos de forma muito simples, algo pouco usual para um serviço privado em um bairro nobre da cidade. A secretária olhou para mim e sorriu com o canto da boca, como que a dizer “mais um daqueles”.

– Não atendemos pelo INPS, somente de forma particular. A consulta custa 5 mil cruzeiros.

O casal se olhou e sequer explicou que não teriam dinheiro. Resignados, limitaram-se a perguntar onde haveria um hospital público. A secretária apontou a direção e eles saíram com o filho febril nos braços.

– Todo sábado aparece um “cabeção” com esse tipo de pergunta, disse a secretária.

Cabeção, na gíria médica da época, representava o “sujeito pobre”. Alguns outros médicos tratavam esse personagem por “jacaré”, talvez por reclamarem muito, serem “boca grande”. Eu sempre recordo desse fragmento de história porque ele me ensinou algumas coisas relevantes, e a mais importante delas é a ilusão de pertencimento. Eu conhecia aquela secretária; ela era mãe de duas crianças e solteira. Ganhava um salário muito baixo e morava na periferia da cidade. Apesar disso, olhava com ares de superioridade para as pessoas do seu mesmo estrato social que apareciam inadvertidamente no ambulatório. Porém, por estar numa posição de relativo poder, e rodeada de profissionais da medicina, se considerava superior aos “cabeções” que, por ingenuidade ou desinformação, vinham procurar um serviço vedado à sua classe social. O fato de ser oriunda das classes populares não produzia a empatia que se poderia esperar; em verdade, muitas vezes esta condição produz o inverso: a identificação com o opressor.

Esta história se conecta com outras percepções que desenvolvi na minha vida. Uma delas é o meu repúdio às soluções cosméticas que jamais atingem a fonte dos problemas. Colocar uma pessoa das classes trabalhadoras em uma posição de relativo poder não significa garantir um atendimento mais empático, e a história está repleta de exemplos do quanto estas ações são apenas dissimulações para manter inalterada a estrutura social. Para alguns ainda é difícil entender porque a esquerda radical repudia o identitarismo, mas o veto ao cessar fogo em Gaza sendo dado, pela segunda vez, por um negro (representando um país majoritariamente branco) é mais um excelente exemplo. Diante da potência avassaladora do imperialismo, a cor da pele, a origem, os dramas compartilhados e as raízes são impiedosamente pulverizados. O sujeito, seja qual for sua identidade, será objeto de manipulação pelas forças reais que comandam a nação. A ideia de que negros, gays, trans, mulheres e quaisquer outros que se julguem oprimidos fariam a diferença pela sua representatividade é ingênua – no mínimo – mas é usada para dar a ideia de que sua escolha sinaliza as tão sonhadas equidade e diversidade na sociedade. Puro diversionismo macabro; na verdade os cordéis continuam sendo manejados pela elite exploradora; mudamos apenas a cor e a vestimenta dos marionetes. Nada muda, nada se transforma, mas oferecemos a suprema encenação para que os poderes sigam intocados.

Repito o que digo há décadas: se a representatividade tivesse valor neste nível, a entrada das mulheres na atenção ao parto – como ocorreu de forma marcante nas últimas décadas – teria um efeito revolucionário na assistência ao nascimento. Afinal, mulheres atendendo mulheres e criando entre elas uma sintonia fluida e natural, faria brotar a empatia redentora entre as cuidadoras e suas pacientes. A migração feminina para a obstetrícia deveria produzir uma marcada transformação no cuidado, diminuindo, até quase a extinção, qualquer resquício de violência obstétrica institucional. Essa era, para quem se lembra dos debates dos anos 90, a esperança compartilhada por muitos profissionais da nascente corrente da humanização do nascimento. Nada disso ocorreu. O que se viu na entrada do novo milênio foi que essa esperança era falsa, e a mudança simples no gênero dos atendentes não produziu nenhuma alteração perceptível nos níveis de abuso e violência no parto.

As taxas de violência e abusos praticadas por profissionais na atenção ao parto, sejam eles homens ou mulheres, são praticamente idênticas. O peso da medicina e a pressão corporativa são muito mais fortes que a identidade. O jaleco branco, a caneta “Parker” e o estetoscópio pendurado no pescoço são mais relevantes do que sua história, sua origem social ou sua identidade. Também por isso havia negros na polícia racista da África do Sul, árabes no exército sionista e pobres e negros nas forças de repressão brasileiras nos inúmeros massacres perpetrados contra a população negra e pobre das periferias brasileiras; a farda pesa mais do que a cor da pele.

Que isso nos sirva de lição na luta contra os preconceitos e a exclusão: a luta precisa ser compartilhada, sem diversionismo. A grande revolução será em torno da luta de classes, não das cores, dos gêneros e dos jeitos de ser. Não existe emancipação de mulheres, negros, gays, etc. que não passe pela revolução contra o capitalismo, atingindo a sociedade de classes e eliminando as barreiras sociais.

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Lágrimas Seletivas

LAGRIMA

Nossas lágrimas só vertem quando conseguimos nos identificar com os dramas que a vida apresenta. A tragédia só dói se for em nós, real ou imaginária. Se um jogador de futebol tem uma filha com problemas médicos milhares de torcedores vão ao estádio doar sangue. É fácil se identificar com alguém que conhecemos e podemos entender seu sofrimento. Se um terremoto destrói cidades inteiras na China como poderei me identificar e sofrer? É preciso que haja mínima conexão identificatória. Brancos europeus caindo de avião são parecidos comigo (que sou branco e também ando de avião), mas negros trancafiados como escravos são sub-humanos, quase animais. Professor universitário apanhando em delegacia na ditadura vira filme; preto e pobre apanhando, nem B.O. Enquanto não enxergarmos TODOS os humanos como iguais estas distorções continuarão acontecendo, e nossas lágrimas serão seletivas.

Porque nos assombramos com os coreanos que comem carne de cachorro? Porque nos horrorizamos com a morte de baleias e golfinhos? E porque não fazemos o mesmo com peixes (tubarões em especial), gado, porco ou aranhas? Porque elegemos alguns animais cuja morte achamos inadmissível que ocorra em nosso benefício, mas para outros não estabelecemos a mesma simpatia? Porque existem fundações para a proteção de baleias, mas não de lagartixas?

Minha resposta é que protegemos a NÓS mesmos, e não os animais. É nossa dor identificatória que queremos aliviar. Um cachorro me parece mais humano, mais parecido conosco que um peixe. Se for possível a identificação, aí sofremos, mas esta identificação vai ocorrer se encontrarmos naquele animal algo semelhante a nós. Num cão tal processo parece muito mais fácil de ocorrer do que em um molusco. É a dor que sentimos que pretendemos afastar, e não a dor por ser ele um animal indefeso. Quando o avião com os europeus cai no oceano isso nos maltrata porque fica simples e fácil a nossa identificação com o sofrimento das famílias envolvidas: também temos famílias brancas e que andam de avião. O mesmo não ocorre em um cargueiro cheio de negros fugitivos trancafiados em um porão.

Quando os americanos matavam vietcongues na Ásia Menor nos anos 70 isso era sentido pela opinião pública americana, mesmo que secretamente, como “matar formigas”. O documentário “Corações e Mentes” daquela época mostrava os políticos americanos se esforçando ao máximo para desumanizar o povo do Vietnã, exatamente porque, assim transformados, ficava mais fácil aceitar seu aniquilamento sistemático.

Desumanizar é fundamental para levar adiante qualquer projeto macabro de destruição. Judeus, negros e os palestinos foram sujeitos ao mesmo tipo de monstruosidade.

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