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Jornalismo isento

Uma conhecida jornalista, da maior rede de televisão brasileira, ao prestar homenagem ao dia das mulheres, apontou solenemente seus dedos para as “mortes de mulheres israelenses cometidas pelo Hamas”, sem que uma palavra sequer fosse dita sobre as milhares de mulheres mortas pela fúria assassina sionista que ocorre agora em Gaza, no primeiro genocídio televisionado pela humanidade. Também não fez referência ao fato de que as mulheres palestinas são executadas há décadas, e números de mortes seriam ainda mais tétricos se acrescentarmos aquelas que pereceram nos 75 anos de ocupação brutal de Israel, que se iniciou no Nakba e perdura até hoje. Mas é claro que sabemos o quanto de blindagem se produz sobre jornalistas de grandes emissoras. Não há como criticá-las publicamente sem pagar um alto preço, pois é fácil ser acusado de misoginia e/ou racismo – pelo menos na perspectiva dos identitários. Aliás, está é uma das razões (além da qualidade profissional) para as empresas jornalísticas apostarem no identitarismo, pois esta estratégia cria uma barreira bem sólida contra as notícias enviesadas que veiculam.

A mesma estratégia ocorre na representatividade política onde as ações mais brutais e destrutivas do imperialismo são comunicadas por negros (ou “afro-americanos”), basta lembrar a recente negativa de cessar fogo comunicada pela embaixadora americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, uma diplomata negra que afirmou que o veto americano à proposta ocorreu por este não citar o “direito de Israel de se defender”, sem explicar que, pelas leis internacionais, apenas o país ocupado tem o direito de se defender das agressões dos invasores. É evidente que esta desculpa esfarrapada tem o claro intuito de manter viva a guerra, levando adiante a limpeza étnica sobre a palestina e tornando realidade a “solução final” que a mesma diplomata acabou citando – em um curioso e horrendo “lapso” – algumas semanas depois.

“Ahhh, mas eles apenas cumprem ordens. Eles somente reproduzem o que os seus superiores lhes determinam”. Estes argumentos que isentam de culpa os jornalistas que oferecem seu rosto às notícias ou os representantes políticos que comunicam atrocidades se baseiam, por um lado, na tese da neutralidade da imprensa, que seria apenas um veículo imparcial dos fatos e por outro lado na cadeia de responsabilidades que coloca os representantes como apenas aqueles que comunicam as decisões. Sabemos da impossibilidade de uma imprensa positivista, baseada em fatos concretos e sem qualquer viés; não existe jornalista sem lado que apenas “cumpre ordens”. Também não há embaixadores sem opinião e sem valores morais. Usar como defesa a impossibilidade de se insubordinarem às determinações dos seus superiores é inaceitável. Os jornalistas que representam uma empresa francamente engajada nos interesses americanos e com evidentes interesses de proteger Israel, o sionismo e o apartheid na Palestina, assim como os representantes legais deste poder transnacional são responsáveis pelas atrocidades que escondem e pelas ações de terror que disseminam.

Ora, essa desculpa não pode mais ser aceita. Um policial que só prendesse negros dizendo estar cumprindo ordens também é responsável pelo racismo de suas ações. Ninguém é obrigado a cumprir ordens ilegais ou que ferem a decência. Qualquer sujeito a quem fosse exigido veicular mentiras ou narrativas sectárias poderia se negar a cumprir estas ordens, por um mecanismo de “escusa de consciência”. Sua condição de empregados não pode levar ao extremo aceitar e reproduzir qualquer mentira ou desinformação como se não fosse dono de sua consciência, como que transformado em um mero megafone humano das ideias de quem representa.

Aliás, “eu só cumpria ordens” foi o que mais se ouviu em Nuremberg, mas ninguém se tornou inocente usando esta estratégia. Caso um oficial alemão oferecesse como justificativa as ordens recebidas de seus superiores, ficando sem alternativa para desobedecê-las, não foi aceita a possibilidade de absolvição, mas apenas de redução de pena. Da mesma forma, um jornalista que aceita narrativas enviesadas na condução de um noticiário torna-se responsável pelos danos a que elas estiverem vinculadas. A responsabilidade do jornalista ocorrerá sempre que ele foi fonte ou veículo de uma notícia ou opinião.

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Representações

Pensem por esta linha: se a representatividade fosse realmente determinante para a mudança dos modelos não seria de esperar que a entrada de mulheres na obstetrícia (onde hoje já são a maioria) deveria transformar as práticas de atenção ao parto de forma que se tornassem mais humanizadas? Ou seja, com tantas médicas mulheres atendendo partos, não deveriam os nascimentos ser mais centrados na autonomia das mulheres, na vinculação com a saúde baseada em evidências e na abordagem interdisciplinar do evento? E por que isso não ocorreu? Por que a prática obstétrica se mantém violenta e “iatrocêntrica” (centrada no médico) a despeito da entrada massiva de mulheres na profissão?

Ora, esse fenômeno ocorre por razões até simples de entender. As mulheres que entram num ofício caracteristicamente masculino como a obstetrícia que opera na lógica da intervenção (ao contrário da parteria, que é essencialmente feminina e opera na lógica do cuidado) adaptam-se à ideologia hegemônica, tornando-se veículo de uma ordem de poderes e de uma ideologia que mantém o poder nas mãos dos médicos. Nessa ideologia os corpos das mulheres precisam ser controlados e domesticados, retirando-se deles a natural energia selvagem e criativa. Via de regra, não se observa nenhuma diferença marcante na atenção prestada por homens e por mulheres no que diz respeito às práticas condenáveis como episiotomia, posição de litotomia, Kristeller, corte prematuro de cordão, cesarianas, etc. Da mesma forma, na atenção médica ao parto não há diferença alguma entre homens e mulheres quando avaliamos as boas práticas e as posturas que estimulam a humanização. Portanto, as obstetras mulheres claramente se adaptam ao sistema de poderes no qual se inserem e não foram – até então – capazes de transformá-lo pela identificação de gênero que teriam com as gestantes.

Da mesma forma, uma mulher negra representando o imperialismo, como Linda Thomas-Greenfield, que vetou o acordo de paz da guerra de Israel contra os palestinos, jamais se posicionaria ao lado das populações negras (ou não brancas) que lutam contra o sistema imperialista, a opressão, o apartheid e a violência de Estado que ela própria representa. Ela também se adapta ao sistema que a abriga, tornando-se uma emissária dos interesses imperiais, e não uma mulher negra em posição de comando. Sua negritude e sua feminilidade desaparecem diante da magnitude de sua posição.

Pois é exatamente por isso que esse modelo de representatividade, que é apregoado e disseminado pela direita – mesmo a direita travestida de esquerda identitária – é uma falácia. Esta estratégia divisionista foi criada pelos “neocons” americanos para produzir a divisão da classe operária entre suas múltiplas identidades – pretos, gays, mulheres, transsexuais, etc. – oferecendo a estas identidades uma pífia representatividade, enquanto mantém intocados os poderes do capitalismo e obstrui a luta de todos nós – a luta de classes. Em troca oferece uma fatia do bolo para essas personagens, mantendo os milhões de representados na mesma condição de miserabilidade e exclusão.

Não existe possibilidade de avançar nas lutas por uma sociedade equilibrada através desses truques narrativos. Assim como mulheres, negros, gays etc. assumem a roupagem do poder que os acolhe, suas ações serão sempre reflexo desse poder, e não das identidades que carregam.

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